É democrático estabelecer limites legais para as mensagens de publicidade? Ou será censura?
De tempos em tempos, essas perguntas vêm à tona. Agora, por exemplo. No mês passado, seria votado no Congresso Nacional, em regime de urgência, um projeto de lei, encaminhado pelo governo, que resultaria em restrições à propaganda de cerveja. De repente, por um acordo de parlamentares, a urgência foi retirada do projeto e, até agora, não há mais previsão de data para a votação. A manobra reacendeu as velhas perguntas. Uns invocam a liberdade de expressão e dizem que qualquer restrição é censura. Outros exigem que o Estado imponha limites. Quem tem razão?
Na terça-feira (10/60, o debate ganhou novo fôlego com a realização do Primeiro Fórum Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária na Comunicação Social, em Brasília. Quem controla a publicidade? Quem protege a sociedade e as crianças de eventuais excessos dos comerciais? Organizado pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, o fórum girou em torno da experiência de auto-regulamentação do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), que completa 30 anos agora em 2008.
Sem dúvida, a prática pioneira do Conar tem muito a ensinar aos comunicadores, mas não se pode esperar que o órgão dê todas as respostas. Sendo uma entidade enraizada no mercado anunciante, representa os interesses desse mercado. É uma parte, portanto. Nesse sentido, quando combate desvios ou abusos de alguns anúncios – e efetivamente os combate –, ele o faz para proteger, mais do que a sociedade em geral, a credibilidade da propaganda, ou, em outras palavras, para proteger o negócio da propaganda contra seus próprios abusos.
Objetivo único
Nada de errado com isso, evidentemente. Trata-se de uma ação altamente educativa e legítima. Com efeito, é legítimo que dirigentes do Conar se insurjam contra qualquer tentativa de restringir a veiculação de anúncios. Defendem o vigor do mercado que representam, e fazem isso de boa-fé. E com bons argumentos. Alegam, por exemplo, que o direito de anunciar é a contrapartida do direito fundamental do consumidor à informação. Segundo advogam, qualquer restrição à propaganda agrediria, indiretamente, o direito fundamental à informação, constituindo uma modalidade de censura.
O argumento merece atenção. De fato, a tradição democrática assegura o direito do cidadão à informação. Esse direito só é uma garantia fundamental porque, desde o advento da democracia moderna, o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Por isso, e não por outro motivo, o cidadão tem o direito de estar devidamente informado, pois só assim será capaz de delegar, fiscalizar ou mesmo exercer o poder.
Aí é que entra a liberdade de imprensa: ela é indispensável para que o cidadão tenha acesso a informações independentes sobre o poder. Independentes: para estar à altura do direito à informação a imprensa não se pode deixar capturar pelos tentáculos do governo, dos partidos ou do poder econômico. É por isso que se diz que a imprensa só é imprensa quando é livre.
A publicidade preenche esses requisitos? A resposta só pode ser não. Para começar, ela é um discurso interessado. É parcial. É unilateral. Enquanto o jornalismo leva notícias ao cidadão para que este forme livremente sua própria vontade – os melhores cânones do jornalismo recomendam sempre que ele não se arvore a direcionar a formação da vontade do cidadão –, a publicidade tem o único objetivo de convencer o público a comprar mercadorias ou serviços. A imprensa se realiza quando a sociedade a conduz. A propaganda, quando a sociedade lhe obedece. São totalmente distintas.
Uma e outra
É verdade que, não raro, o jornalismo se deixa seduzir pelo proselitismo – e, aí, afasta-se de seus ideais. Ainda assim, no entanto, mesmo se rebaixa nesse desvio, ele não se iguala à propaganda. O jornalismo, bom ou mau, aflora dos debates naturais do espaço público – refletindo versões, opiniões, doutrinas e narrativas diversas – e a ele retorna. Nasce da opinião pública e para ela se dirige. De outro lado, a propaganda se organiza como operação de venda, seus fins são comerciais, ela se dirige ao consumidor, não ao cidadão. O seu discurso é a fala do vendedor. Tanto que as mensagens publicitárias são difundidas em espaços e horários pagos: os anunciantes compram fragmentos do olhar e da atenção do público para oferecer a ele suas mercadorias. É óbvio que, se prestasse atendimento a algum direito do leitor ou do telespectador, a publicidade não teria de comprar minutos do seu olhar.
Em suma, por melhor que seja, a publicidade não se subordina ao direito fundamental à informação. Ela serve, sem nenhum demérito, aos objetivos de venda do anunciante. Isso não significa que a propaganda não deva ter assegurada a sua liberdade – ela a tem, indiscutivelmente, assim como os vendedores a têm. Significa apenas que a sociedade, assim como tem o direito de limitar, por lei, a circulação de certas mercadorias, também tem o direito de limitar, legal e democraticamente, segundo critérios transparentes, a propaganda de certas mercadorias – pois a propaganda é parte da operação de venda dessas mercadorias. Isso não configura censura à imprensa nem fere o direito à informação. Limites à publicidade, desde que democraticamente adotados, não reduzem o grau de liberdade de um país. Muitas vezes, a ausência de limites é que produz distorções.
Sem publicidade, disso todos sabemos, não há imprensa livre. Por isso mesmo, é bom que uma não se queira passar pela outra. A separação clara de papéis sempre foi, é e será vital para ambas.
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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007