Como leitor de jornais, sou um quase fanático apreciador de boas entrevistas. Mas não são poucos os dias em que, nos pelo menos dois jornais diários que leio, não encontro uma só entrevista que valha a pena ler, daquelas em que se cede espaço e relevância de autor de conteúdo a alguém que tem o que dizer, pode dize, quer dizer e sabe dizer.
Assuntos importantes não faltam, nem conflitos polêmicos, nem questões sem respostas, a exigirem debate e elucidação. Por isso, causa estranheza e lamentos a ausência de boas entrevistas. É certo que não faltam matérias recheadas de falas ‘aspeadas’, em textos com estrutura de pequena ou média reportagem, que se repetem na monotonia de formas imutáveis, impostas pela tradição ou pelo manual – o que dá no mesmo.
No estilo preponderante, esses textos da monotonia diária das formas alternam parágrafos com resumos descritivos do repórter ou do redator e parágrafos com falas curtas de fontes. São as chamadas reportagens de citações, em que as falas da fonte mais servem à forma do que ao conteúdo. A monotonia se desdobra pelos principais jornais, que se repetem nas formas, nos fatos e nas fontes citadas. Parecem peças saídas de um só molde, jornais gerados na mesma pauta. E porque se imitam reciprocamente, perdem-se nessa mesmice até mesmo os traços de criatividade que aqui e ali se manifestam.
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Em suas formas mais nobres – aquelas em que se dá voz plena ao entrevistado –, a entrevista poderia ser o grande diferencial da mídia impressa, em relação ao paradigma televisivo que sufoca o jornalismo de hoje, no que se refere às formas.
Essa tal reportagem de citações, por exemplo, construída com a intercalação de resumos descritivos do repórter e falas de fontes, segue o modelo de uma forma de noticiar imposta pelo telejornalismo. Aliás, nos textos diários dos jornais, não são poucas as falas que simplesmente reproduzem frases de efeito ditas na véspera para o noticiário da televisão, pelos personagens da pauta jornalística. O que significa dizer que nem é preciso sair da redação para fisgar as tais ‘aspas’ que as rotinas de hoje tanto exigem, nas redações dos meios impressos. Basta ligar a televisão…
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Sempre que faço comparações entre os grandes jornais brasileiros e os de outros países, vejo no uso da entrevista um dos diferenciais qualitativos que mais chamam a atenção. Principalmente no que se refere à discussão política, a entrevista aprofundada serve, na grande imprensa internacional, como ferramenta da polêmica e da elucidação. Graças à entrevista, a cobertura diária dos grandes jornais franceses (por exemplo) escapa da superficialidade que tanto nos amargura no jornalismo brasileiro. Nesses jornais, e nessa função, a entrevista soma-se ao papel desempenhado pelo articulismo, que, em especial nos regimes parlamentaristas, tem influência decisiva na discussão pública.
Como no Brasil quase nada se discute a partir do articulismo, haveria um lugar de relevo a ser ocupado pela prática da grande entrevista, em cima do principal tema ou do principal acontecimento da pauta diária.
A complexidade dos confrontos da atualidade, em especial nos cenários políticos (mas não só), justificaria plenamente um esforço de criatividade e inquietação jornalísticas, em favor da entrevista. Nenhuma outra espécie de texto tem a eficácia da entrevista, tanto para os efeitos do desvendamento e da elucidação, quanto para o incremento da polêmica e da divergência, ingredientes indispensáveis à democracia e à cultura.
Além do mais, a entrevista é uma espécie de texto que propicia o requinte expressivo do jornalismo – tanto na vertente intelectual, porque a entrevista lida essencialmente com idéias e emoções de quem tem sabedoria para socializar, quanto na vertente estilística, pois certamente a entrevista é uma forma narrativa especialmente eficaz para a mediação jornalística.
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A indesejável ‘arte’ de fraudar
Mas entrevista não é só uma questão de estilo e forma, Ela deve expressar a verdade das conversas e dos entrevistados. Isto é: não pode ser uma fraude. E essa é uma boa razão para o alongamento do texto, para que falemos das liberdades e dos limites que balizam, ou deviam balizar, o trabalho jornalístico de narrar conversas.
Já passei, algumas vezes, pelo constrangimento de ver publicadas, e a mim atribuídas, afirmações e idéias que não correspondiam nem ao que dissera nem ao que pensava. Em um ou outro caso, distorções propositais, maldosas, com o propósito de me prejudicar. Na maioria dos casos, porém, as distorções resultavam do livre exercício de um comportamento profissional em que a incompetência se mistura à irresponsabilidade, coisa nada rara nos usos e costumes do jornalismo brasileiro.
Há, até, uma história engraçada, inesquecível, de entrevista concedida a uma repórter do velho e bom Jornal da Tarde. Ela adorava escrever textos de sabor literário. E usava liberdades estilísticas que por vezes iam bem além dos limites recomendados pelos manuais de redação. Além disso, era minha amiga.
A repórter me procurou para colher a minha opinião sobre a música e a poesia de Chico Buarque de Holanda. Com clareza, sinceridade e alguma elaboração conceitual, falei-lhe das emoções que me levavam a gostar sempre mais das canções de Chico Buarque, a cada vez que o ouvia cantar. Pois no outro dia, no texto fluente e bonito da minha amiga repórter, lá estavam, em discurso direto, dramatizadas pelo eficaz e saudoso travessão, declarações que não fizera. Com idéias que não eram minhas, mas dela. Do que realmente lhe dissera, nada aproveitara.
Depois, se justificou: ‘Sabe, eu tomei a liberdade de dar tratamento poético ao lado subjetivo do que você disse’… Ou seja: fraudou a nossa conversa.
Sem liga
Eis aí um sinal de algo lamentável que marca o jornalismo brasileiro e que jamais compreendi: o desembaraço com que alguns repórteres se apropriam do que lhes é dito pelos entrevistados.
Acredito que essa lógica de apropriação (o que o entrevistado me disse me pertence…) estimula distorções, tanto nas formas discursivas indiretas, construídas por enunciados constatativos (ele/ela disse, pensa, fez…), quanto nas formas do discurso direto, nas quais ao entrevistado se concede voz própria, para que assuma espaços e ação de sujeito na narração.
Claro que não devemos cair na leviandade das generalizações. São muitos os bons profissionais, praticantes de jornalismo intelectualmente honesto. E esses sabem que, quaisquer que sejam as formas da recriação literária da conversa havida, jamais se frauda a verdade do entrevistado – que nem sempre está no ipsis litteris do que é dito. Freqüentemente, a verdade do entrevistado está no âmago da emoção ou da idéia não expressada ou mal expressada.
Quando assim é, e para que se alcance e se preserve a verdade do entrevistado, há que saber usar e articular as artes do bem narrar, graças às quais o narrador se pode assumir e impor como autor do texto. Mas artes que jamais devem ser usadas para subordinar o entrevistado ao narrador, fraudando a verdade da entrevista. Jornalismo e fraude não fazem liga. São coisas excludentes.
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Jornalista e professor