Ela é mulher, ela é negra, ela é ministra. Matilde Ribeiro, ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, pode se orgulhar de fazer parte de um reduzidíssimo grupo de mulheres que comete o pecado mortal de chegar ao poder. E pode dizer, com orgulho, que chegou lá embora faça parte de dois grupos altamente discriminados: as mulheres e os negros.
E, talvez por isso, deveria ser triplamente cuidadosa ao escolher palavras em suas aparições públicas. Sua declaração à BBC na terça-feira (27/3) conseguiu fazer com que a ministra ganhasse espaço em toda a mídia, o que não tinha acontecido em quatro anos de governo.
A frase ‘não é racismo quando um negro se insurge contra um branco’ vai custar muito caro à ministra. Acusada de incitar o racismo (até pediram sua cabeça), Matilde Ribeiro vai precisar de um milagre para ter outra chance de ganhar o mesmo espaço na mídia que conquistou no fim de março. Como a imprensa parece ter uma predileção especial por destacar mulheres apenas quando elas saem da linha (exceção feita às que ajudam a reforçar o mito da mulher-objeto), as chances de Matilde Ribeiro entrar para a história como a ‘ministra racista’ são muito grandes.
Solidariedade e tolerância
O erro da ministra foi na escolha das palavras. O erro da imprensa? Não ter aproveitado a oportunidade para tentar descobrir se os negros brasileiros ‘se insurgem contra o os brancos’. Mostrar opiniões – de quem dá razão à ministra ou de quem pede que ela seja demitida – é muito pouco, nesse caso. Teria sido um bom momento para a imprensa discutir a existência – ou não – do racismo no Brasil e mostrar que, se não é por racismo, qual será a verdadeira razão para os negros estarem entre a maioria dos pobres no Brasil. Seria o caso de relembrar, por exemplo, a notícia divulgada em março de 2006, que também teve – sem nenhuma repercussão – a mesma ministra Matilde como personagem:
‘A ministra da Secretaria da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, disse nesta sexta-feira, 27 [de março de 2006], em Ribeirão Preto, que foi importante a declaração do ministro da Saúde, Agenor Álvares, que admitiu a existência de racismo no atendimento a negros no Sistema Único de Saúde (SUS). ‘Acho importante que tenha um ministro, de uma área tão estratégica para inclusão e igualdade, que admite que o racismo é real e se aplica em todas as áreas da política pública’, comentou ela. ‘Cabe aos governos identificar essa realidade e combatê-la.’
Na quinta-feira, o ministro da Saúde admitiu que há racismo no atendimento a negros no Sistema Único de Saúde (SUS) durante sua participação na abertura de um seminário em que foram discutidas as bases para a nova Política Nacional de Saúde da População Negra, no Rio de Janeiro. Álvares disse que essa discriminação se reflete em diagnósticos incompletos, exames que deixam de ser feitos e até na ausência do toque ao paciente, ao citar uma pesquisa feita pela Fundação Oswaldo Cruz. ‘Esse racismo cria condições muito perversas que temos de combater fortemente. Queremos construir uma nova cultura e criar valores de solidariedade e tolerância em relação à população negra’.’ [Estadão Online, 27/10/2006]
Sem meias palavras
Comparando o noticiário da imprensa em 2006 com o de agora, é natural que se questione a reação da mídia. Quando o ministro (homem branco) falou do problema, a notícia passou despercebida. O ministro estava apenas reconhecendo fatos e procurando soluções. E a discriminação, se existe, é um problema para o governo resolver. Quando a ministra escolhe palavras de forma inadequada, ‘está incentivando o ódio racial’. É de se perguntar se a reação foi apenas porque no cargo que ocupa ela jamais poderia ter dito o que disse ou se há algo mais nessa história.
O antropólogo João Batista Borges Pereira, em declaração publicada no Globo Online (28/3/2007), esclarece:
‘A sociedade brasileira vive na ilusão de uma democracia plena, onde todos vivem em harmonia e as diferenças nunca são explicitadas. A fala dela choca por isso. Porque desafia este clima muito melindroso, no qual as pessoas entram com muita cautela. A ministra Matilde começou a falar numa linguagem que, no Brasil, é tida como um pouco politicamente incorreta. Este tipo de coisa pode criar uma impressão muito ruim a este Brasil que busca a harmonia, não o ódio racial. É como se houvesse um acordo tácito e todos falassem de maneira mais harmoniosa, cautelosa em emitir opiniões sobre o assunto.’
O simples fato de existir uma secretaria de governo só para tratar da igualdade racial deveria ser suficiente para a imprensa perceber que o problema existe e que, se existe, tem de ser tratado sem meias palavras e sem medo das palavras.
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Jornalista