A Comissão Nacional da Verdade terá uma missão difícil e complexa. Pretende-se que sete cidadãos, com um número de auxiliares e com recursos financeiros ainda não divulgados, produzam em dois anos uma narrativa sobre “graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1985. Em outras palavras, crimes cometidos com pretexto político, principalmente – mas não apenas − por agentes do Estado brasileiro.
[São os seguinte os nomes indicados pela presidente Dilma Roussef, anunciados na quinta-feira (10/5): Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha.]
Desde logo, para bem de todos e felicidade geral da nação, deve ficar claro que o prazo de dois anos, se for cumprido, não será observado nem por cidadãos, nem por organizações, nem, e isso é o decisivo, pelos meios de comunicação.
Imagine-se que em maio ou junho de 2014 a Comissão da Verdade dê por concluídos seus trabalhos e apresente um documento com lacunas, fios soltos, pontos controvertidos, como será inevitável. Quem obrigará qualquer pessoa, instituição ou empresa jornalística a dar-se por satisfeita e declarar encerradas suas inquietações e caladas suas indagações?
Da perspectiva temporal inversa, o trabalho de busca da verdade pela imprensa começou quase imediatamente após o golpe de Estado de 1964. Basta citar, a propósito, o livro Torturas e Torturados, do jornalista (e depois deputado federal) Márcio Moreira Alves (1936-2009), editado em 1966 (Rio de Janeiro : Idade Nova) e disponível aqui. Prefaciado por Alceu Amoroso Lima, o livro é desdobramento de reportagens publicadas pelo autor no saudoso Correio da Manhã. Trabalho de jornalista, portanto.
Torturados e torturados
Márcio Moreira Alves questiona o silêncio imemorial a respeito do uso cotidiano da tortura pela polícia. Em outras palavras, pergunta por que a tortura aplicada a presos políticos causa tanta indignação se a aplicada a presos comuns não causa. Questão infelizmente atualíssima, que ele comenta assim:
“A insensibilidade que criamos passou a considerar a brutalidade policial como uma parte suja, mas indispensável, do sistema de garantias coletivas. Só quando ultrapassa certos limites da racionalidade é que algumas vozes se levantam para condená-la. É o caso, por exemplo, das periódicas campanhas de metralhamento de assassinos nas favelas cariocas que, com igual periodicidade, provocam artigos de protesto na imprensa até que, fuzilados os bandidos mais notórios, tanto o tiroteio como o protesto adormecem.”
Meu bem, meu mal
É impossível sintetizar aqui os esforços da mídia para denunciar a violência contra adversários do regime. Trata-se de material farto, que abasteceu livros e livros sobre o período. É inescapável assinalar, no entanto, que a imprensa teve duplo papel: tanto denunciou os “excessos” da ditadura como serviu ao regime.
Dois exemplos de 1968: em 29 de março, o Correio da Manhã deu, sobre o assassinato do estudante Édson Luís de Lima Souto, no Rio de Janeiro, manchete de seis colunas, caixa alta: “POLÍCIA MILITAR MATA ESTUDANTE”; em 28 de novembro, a Veja deu na capa um wanted de Carlos Marighella, foto da cintura para cima, peito nu, título “Procura-se Marighela”. Um ano depois (12/11), foto do cadáver, título “O terrorismo morreu com Marighella?” (a revista usou as duas grafias do sobrenome).
É tarefa da imprensa e de historiadores narrar incansavelmente, a quem não viveu sob o regime ditatorial, o que aconteceu naquele período. Entre hoje e o início da ditadura transcorreram 48 anos. Mais do que entre o início do século 20 e o fim da Segunda Guerra Mundial (1945). Os mesmos 48 anos que separaram a Independência (1822) do fim da Guerra do Paraguai (1871). São quase duas gerações e meia de brasileiros.
Sem comunicação não há fato social
Após o Ato Institucional nº 5, promulgado em 13 de dezembro de 1968, passou a haver cerrada censura, com militares nas redações. Isso impediu que viessem à luz denúncias de torturas, execuções, violências, escândalos envolvendo autoridades, mesmo notícias de altíssimo e iminente interesse social, como o surto de meningite meningocócica de 1973 em São Paulo (ver “Deus e o Diabo na redação”)
Ao mesmo tempo, os principais meios de comunicação tornaram-se cúmplices do regime ao aceitar divulgar versões mentirosas sobre “morte em combate” ou “atropelamento após tentativa de fuga” de guerrilheiros e outros militantes. Em seus trabalhos, iniciados em 1996, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, hoje parte da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, usou recortes de jornais como versões oficiais da ditadura sobre prisões de militantes. Em alguns casos tratava-se literalmente da palavra oficial. Era quando os jornais publicavam – sem questionar − notas emanadas de órgãos da repressão.
Mas em numerosos casos os jornais foram além. Fizeram sua a retórica dos “porões”. O acovardamento, só, não explica tanta identidade entre repressão e redação. É preciso contar aos mais jovens, inclusive aos jornalistas jovens, que em muitas redações os repórteres de polícia eram ligados à polícia, quando não policiais eles mesmos. Havia informantes entre os jornalistas. E havia convergências ideológicas: jornalistas de extrema-direita, assim como os havia de esquerda e de extrema-esquerda, mas não apenas de extrema-direita: favoráveis à tortura, aos fuzilamentos, aos “desaparecimentos”.
Assim, seja para denunciar o arbítrio como para convalidá-lo, não existe política sem comunicação. Os meios de comunicação participaram da ocultação de fatos terríveis, assim como participaram e participam hoje de sua revelação e denúncia. Alguns, como a TV Globo, passaram até a usar a denominação “ditadura” com uma naturalidade que não dá ideia de como a emissora apoiou o regime (não necessariamente seus atos mais abjetos).
Como escreveu Mino Carta em 1988, no prefácio de um livro famoso, A Regra do Jogo, de Cláudio Abramo, “trata-se de fiscalizar o poder, de controlá-lo, de criticá-lo, de denunciar os seus abusos e mazelas. Mas as empresas jornalísticas gravitam na órbita do poder, são o próprio poder”.
Tarde demais para punir
É inegável o simbolismo institucional da Comissão da Verdade, aprovada no Congresso Nacional para funcionar sob a égide da Casa Civil da Presidência da República. Será um canal para recebimento de muitas histórias até aqui silenciadas, ou conhecidas em círculos restritos. Mas o alcance de seus trabalhos se medirá pela maneira como os meios de comunicação tratarão o material que a ela chegar e dela emanar.
Ainda que o Direito Internacional tenha consagrado a noção de que crimes contra a humanidade são imprescritíveis, no plano político-social e na esfera da opinião pública não parece haver mais como revogar o “pacto” ditado em 1979 pelos detentores do poder.
As décadas que nos separam da época em que crimes foram cometidos em nome da “segurança nacional”, ou da libertação nacional, ou do socialismo, fazem com que não se possa agora, nem nunca mais, a não ser no plano moral, fazer justiça. As vítimas (suas famílias, no caso dos mortos ou “desaparecidos”) não são mais o que eram, tampouco os perpetradores, e mudou muito a sociedade perante a qual se faria o que se supõe ser justo.
Quem passou pela batalha, quem viveu os horrores e sobreviveu, quer apenas tocar adiante. E a maioria das pessoas não gosta de encarar verdades desse tipo. Entretanto, só contemporâneos dos acontecimentos podem ter a dimensão sensível do que ocorreu. Talvez por isso o Tribunal de Nuremberg (maio de 1945/outubro de 1946) e o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, reunido em Tóquio (maio de 1946/novembro de 1948) tenham trabalhado “a quente”, e o marechal colaboracionista Henri Philippe Pétain, na França, condenado à morte (sentença comutada em prisão perpétua) em agosto de 1945.
Os salões organizaram os porões
Reitere-se que o sistema de repressão com tortura, assassinatos e “desaparecimentos” não foi contingência de uma inexistente “guerra”, nem iniciativa desgarrada de alguns oficiais truculentos. Mais uma vez, cite-se A Ditadura Escancarada, segundo volume da tetralogia As ilusões armadas, de Elio Gaspari, em trecho que não foi contestado pelo Exército nem por qualquer outra instância do Estado brasileiro:
“Se em algum momento o novo ministro do Exército [Orlando Geisel] pretendeu afastar a sua tropa das tarefas de repressão política ou, pelo menos, mantê-la fora da rotina policial, isso jamais resultou em medidas concretas. As providências que tomou nos meses seguintes [a partir de novembro de 1969] foram na direção oposta, trazendo o radicalismo para dentro da hierarquia.
“Durante o governo de Castello [1964-1967] a linha dura pressionava o presidente pedindo-lhe liberdade de ação para combater os subversivos. Era uma reivindicação mistificadora, pois o que se pretendia era mutilar as liberdades públicas em benefício dos projetos políticos de oficiais indisciplinados. O novo ministro do Exército liberou a fúria repressiva, demarcando na ação policial o limite de sua atuação política. (…) Em julho de 1970, comunicou aos seus generais que, por determinação do presidente da República, o Exército assumiria o comando das atividades de segurança, prevalecendo sobre a administração civil e também sobre a Marinha e a Aeronáutica. Dois meses depois estavam criados os DOIs.”
Reconhecer essa verdade seria a tarefa mais espinhosa da Comissão, que certamente não a encetará de forma direta.
Mas outras verdades são alcançáveis. E será possível, principalmente, produzir um relato factual, equilibrado, frio, mas não desumano, que sirva para orientar a reflexão das atuais e futuras gerações.