Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídias na escola, quem regula?

O caso das assinaturas da revista Nova Escola (Editora Abril) pela Secretaria Estadual de Educação (SEE) de São Paulo – repercutido pelo Observatório da Educação, da ONG Ação Educativa (ver ‘Contratação de publicações sem licitação é prática recorrente do governo de SP‘) – é apenas um dos episódios que demonstram que é preciso pensar – e já – no modo com que queremos que as mídias cheguem às escolas, especialmente às escolas da rede pública (no caso, trata-se da rede estadual paulista).


Por serem recursos ‘inovadores’ e que têm forte apelo junto a crianças e jovens, muitas vezes, as mídias passam a ser usadas como se houvesse naturalmente uma espécie de ‘progresso’ nos métodos de ensino com a sua chegada.


Sim, as mídias precisam chegar à escola, que, por sua vez, precisa compreender que papel tem no processo de inclusão do alunado no mundo da comunicação e informação em que vivemos. Mas na naturalização desta ‘evolução’ é que mora o perigo.


Sabemos que, ainda que haja uma tentativa de afirmar que a adoção de materiais midiáticos nas escolas é uma questão técnica, ela é política. E deve ser tratada como tal.


No caso da Nova Escola, em São Paulo, não houve licitação para a aquisição do material (o contrato é de R$ 3,74 milhões). Segundo a reportagem do Observatório da Educação, a inexigibilidade da licitação foi justificada por ‘inviabilidade de competição’, ou seja, alega-se que o material adquirido possui especificidades e, por isso, não seria possível realizar a concorrência.


A iniciativa fez com que deputados do PSOL paulista entrassem com uma representação junto ao Ministério Público Estadual questionando o contrato firmado entre a SEE e a Fundação Victor Civita, do Grupo Abril.


Uma das questões em jogo é: que especificidades tem a revista Nova Escola, sendo que só na cidade de São Paulo podemos citar pelo menos mais três publicações com a mesma proposta editorial que a publicação da Editora Abril (Carta na Escola, Revista Pátio e Revista Educação)?


Prática recorrente


A cobertura dada ao caso pelo Observatório da Educação mostra que esta prática é recorrente e que, em 2008, a Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) adquiriu assinaturas da revista Coquetel Picolé, da Ediouro, por contrato no valor de mais de R$ 1 milhão. O caso foi julgado pelo Tribunal de Contas do Estado, que ratificou a inexigibilidade da licitação, assim como julgou regular a contratação sem licitação de mais de cinco mil assinaturas da revista Recreio, da Editora Abril, no valor de R$ 815.005,50.


O professorado da rede, calado pela ‘lei da mordaça’ – lei que proíbe que funcionários públicos falem em veículos de imprensa (leia mais aqui) – fica impedido de denunciar tais absurdos publicamente. No entanto, em conversas informais com alguns deles, é possível colher relatos que são de impressionar.


Além da revista Nova Escola, professores da rede estadual recebem outros materiais para-didáticos (ou extra-didáticos) sem qualquer tipo de consulta ou participação deles e sem qualquer tipo de formação para usar tais materiais.


Um outro exemplo são os laptops subsidiados pelo governo do estado por meio do programa do Acessa São Paulo, fornecidos – via licitação – pelas empresas Positivo e a Brasoftware (ver aqui). Segundo o professor com quem conversei, o convênio inclui treinamento online para uso do material, mas parte do tempo deve ser dedicada pelo professor ao projeto, pois não conta como tempo de formação, o que nos remete a outro tipo de discussão: qual a formação ideal para lidar com estas mídias que chegam à escola?


Em outubro do ano passado, o governo do estado firmou uma parceria com a gigante da informática Microsoft para que alunos e professores da rede estadual tivessem acesso a e-mails gratuitos e uma série de ferramentas fornecidas pela multinacional.


Trecho da matéria publicada no site da Microsoft diz: ‘Trata-se do maior projeto da América Latina nesse segmento com participação da iniciativa privada’. A reportagem detalha que este outro item do acordo ‘voltado à educação técnica, vai contemplar 10 mil professores e 150 mil alunos do Centro Paula Souza, órgão estadual voltado para a educação tecnológica que administra 151 Escolas Técnicas (Etecs) e 47 Faculdades de Tecnologia (Fatecs) em 127 cidades no Estado de São Paulo’.


Ainda que esses processos sejam de alguma forma publicizados (até porque muitos deles são populistas e eleitoreiros), e ainda que em alguns casos, legalizados (via licitação), sabemos que são maiores as questões envolvidas. Não se trata apenas da invisibilidade com que algumas vezes acontecem. Trata-se da falta de política para os regular, da falta de participação dos agentes da educação e da rede, da falta de discussão sobre sua implantação e seu impacto, e da falta de debate político que favorece a leitura da iniciativa – por parte do público – como algo natural e bom.


Privatização simbólica


Trata-se de uma estratégia semi-invisível de privatização difusa (ou simbólica) da escola através de um projeto e de valores que chegam sorrateiros, disfarçados de questão técnica. Afinal de contas, sabemos que a tecnologia não é neutra, e carrega consigo as forças políticas que estão em jogo, as abordagens pedagógicas que não foram discutidas, as seleções e edições que foram feitas nos materiais e mídias para que eles chegassem até ali, a formação (ou a falta dela) para os educadores lidarem com estes materiais, e, por fim, carregam conteúdos e métodos que influenciam na forma de pensar e olhar o mundo a partir delas.


Esses episódios (para ficar nos mais recente e não lembrar dos ‘Telecursos’ da Fundação Roberto Marinho) mostram que a forma natural com que as mídias estão chegando nos espaços educativos, em especial os das redes públicas, deve ser refletida e debatida. E como?


Questão pedagógico-política


Este debate deve ser feito com participação, regulamentação e fiscalização.


Mídia é material didático? É outro tipo de recurso, que merece uma regulamentação especial? Enquanto o debate não é feito com muito critério e profundidade, vamos presenciar casos como este, em que ficamos impotentes diante do uso da legislação e da técnica, para justificar escolhas que, sabemos, são políticas.


As conseqüências são também pedagógicas. Que linha editorial têm essas mídias? A que projeto pedagógico respondem? Que conteúdos exploram e com que abordagem? Com que métodos?


E mais… os professores foram consultados sobre seu uso? No plano ideal, deveriam participar da construção dessas decisões e desses usos e formados para lidar com um eventual novo instrumento de trabalho. A gestão democrática é um princípio previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Mas na vida real, sabemos que não é isso que acontece.


Quem regula?


Que fique claro que não sou de modo algum contra a entrada das mídias nas escolas públicas da rede estadual. Muito pelo contrário. Sou a favor da inclusão de todos no mundo de mídia e da informação em que vivemos. E penso que a escola tem, sim, um papel neste processo de aproximação com a modernidade. Mas precisamos pensar que papel a escola deve ter no processo de inclusão. Certamente não é de agir sozinha, mas em diálogo com outras instituições socializadoras e educadoras. Certamente não é de submissão a algo que, a pretexto de ser a ‘evolução’, serve de porta de entrada para projetos privados nas redes públicas de ensino.


Não tenho ainda clareza de como esta regulamentação deveria ser. Mas temos um debate a fazer: quem regula e fiscaliza a chegada das mídias (e da iniciativa privada como um todo, a partir de conteúdos e projetos) dentro das escolas das redes públicas? Neste caso, uma política não deveria ser um diálogo entre os setores da educação e da comunicação? Os estados têm autonomia total nesta decisão? Ou deve haver uma política nacional que regule o assunto?


Em artigo publicado no Observatório do Direito à Comunicação (3/3/2009), defendo que desnaturalizemos, historicizemos e desfragmentemos a chegada das mídias na escola. As mídias, por serem recursos muitas vezes mais sedutores e atraentes, são usadas naturalmente, como se fossem uma espécie de evolução dos recursos didáticos. Mas a adoção destes instrumentos carrega necessariamente debates e opções políticas.


As decisões em torno do uso das mídias na escola muitas vezes são travestidas de questões técnicas para evitar o debate político em torno delas. Precisamos, portanto, reafirmar nosso grande desafio: pensar que mídias queremos para as escolas públicas brasileiras e de que forma elas devem chegar às redes, aos educadores e educandos.

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Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutoranda em Educação (FE-USP)