Integrantes de uma milícia que atua na zona oeste do Rio seqüestraram e torturaram uma equipe de reportagem do jornal carioca O Dia em uma favela da cidade. O crime ocorreu na favela do Batan, em Realengo, onde os jornalistas viviam havia duas semanas para preparar uma reportagem sobre a ação dos milicianos na vida da comunidade.
Os crimes ocorreram no dia 14 de maio, mas a direção do jornal informou que adiou sua divulgação para não atrapalhar as investigações policiais.
Por motivos de segurança, os nomes das vítimas não foram divulgados. Em nota oficial assinada pelo diretor de redação, Alexandre Freeland, ‘os três profissionais estão a salvo, em bom estado de saúde, em local seguro, e vêm recebendo irrestrito apoio da empresa, incluindo acompanhamento psicológico’. O caso foi encaminhado à Secretaria de Segurança Pública, que informa já ter identificado suspeitos. A repórter, o fotógrafo e o motorista do jornal estavam vivendo em uma casa alugada na favela Batan e foram denunciados às lideranças da milícia que controla o local.
Segundo relatos do jornal O Dia, o fotógrafo e o motorista foram surpreendidos por dez homens, armados e com máscaras, quando chegavam ao Largo do Chuveirão para tomar cerveja a convite de moradores locais. O grupo, então, foi buscar a repórter, que estava em casa. Eles foram mantidos em cárcere privado por sete horas e meia, período em que foram agredidos com socos, pontapés, choques elétricos, sufocamento com saco plástico e roleta russa.
Ameaças
Os criminosos ameaçaram matar os reféns, mas os liberaram após a promessa de que não denunciariam as agressões. Segundo o relato feito pelas vítimas, havia policiais no cativeiro, que em determinado momento chegou a ter mais de 20 pessoas, entre agressores e espectadores.
A ação das milícias em favelas do Rio é hoje uma das principais preocupações da Secretaria de Segurança Pública, uma vez que há indícios de que grande parte delas são comandadas por militares. Em declarações dadas no fim de fevereiro, o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, informou que havia 115 investigações sobre o tema em curso. Na ocasião, ele classificou a atuação de policiais nas milícias como ‘desvio de conduta muito sério’.
Os milicianos se espalharam pelas favelas da periferia do Rio nos últimos anos como uma alternativa ao tráfico de drogas. Prometem segurança aos moradores, mas, em geral, impõem rígidas normas de conduta nas comunidades, além de monopolizarem o comércio de gás de botijão, instalações piratas de TV a cabo e transporte, entre outros. Já ganharam a alcunha de ‘comandos azuis’, em alusão à facção Comando Vermelho, que disputa o controle do tráfico na cidade.
Segundo levantamento divulgado por ‘O Dia’, as milícias dominam atualmente 78 favelas da cidade. Os relatórios enviados pela equipe do jornal enquanto viviam na favela do Batan indicavam a coexistência de milícias com as forças policiais responsáveis pela segurança na região.
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Nota oficial do jornal
Uma repórter, um fotógrafo e um motorista do Jornal O DIA foram seqüestrados e torturados pela milícia da Favela do Batan, em Realengo, na Zona Oeste do Rio, na noite de 14 de maio. A equipe fazia uma reportagem sobre a vida de moradores em regiões controladas por milicianos, conforme relata em detalhes matéria na edição deste domingo, 1º de junho, de O DIA.
Os três profissionais estão a salvo, em bom estado de saúde, em local seguro, e vêm recebendo irrestrito apoio da empresa, incluindo acompanhamento psicológico.
O fato, ocorrido há duas semanas, só foi divulgado agora para garantir a integridade física dos envolvidos.
O governador Sérgio Cabral e as autoridades policiais do Estado do Rio foram informados e estão acompanhando atentamente o caso. A investigação está a cargo do delegado Cláudio Ferraz, titular da Draco, que tem tido uma conduta exemplar.
O DIA reitera sua confiança no trabalho da polícia e tem a convicção de que os bandidos, que usam a farda para cometer crimes, serão presos e punidos na forma da lei. (Alexandre Freeland – Diretor de Redação)
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Detalhes da história
Reproduzido de O Dia, 31/5/2008
A noite do dia 14 de maio não terminou para a equipe de O Dia que fazia reportagem especial na Favela do Batan, Zona Oeste. Repórter e fotógrafo completavam 14 dias vivendo no local e a ansiedade natural do grupo – que sabia estar em território inimigo e tomava todos os cuidados para não chamar a atenção – deu lugar a um desconfiado otimismo, depois que moradores da favela convidaram parte da equipe para uma cerveja no Largo do Chuveirão. Fotógrafo e motorista, que havia se unido ao grupo, aceitaram o convite. A repórter ficou em casa, para não desobedecer a velada ordem da favela, que lança olhares de reprovação a mulheres desfrutadoras da noite.
A lei local, paralela como toda estrutura de comércio e serviços na região, também definiu fim violento para o trabalho da equipe do jornal na comunidade. No Largo do Chuveirão, local de maior concentração da favela, uma emboscada à vista. Fotógrafo e motorista, que imaginavam estar apenas indo para uma festa, acabaram conhecendo o inferno: foram rendidos por 10 homens armados, usando toucas ninja para cobrir o rosto. Mas outras coisas os bandidos não faziam questão de esconder: um dos carros usados no seqüestro foi o Polo vermelho placa KPB 4592, veículo de ‘policiamento’ da milícia local. Sim, eram policiais e faziam questão de ressaltar isso.
Os bandidos que usam farda nas horas vagas algemaram os dois integrantes da equipe e os mostraram a cerca de 30 moradores, que, assustados, saíram de suas casas para ver quem seriam as próximas vítimas dos neoditadores. Os criminosos tentaram obrigar a população a linchar a equipe, não queriam sujar as mãos de sangue. Mas não foram atendidos e acabaram seguindo com a dupla e um morador que os acompanhava até a casa que havia sido alugada pela equipe, na Rua Alfredo Henrique, uma das principais da favela.
O relógio havia acabado de passar das 21h quando a campanhia das casas semigeminadas do endereço tocou. Do lado de dentro, a repórter imaginou que eram seus companheiros. Do lado de fora, sete homens armados e com toucas ninja a esperavam, prontos para novo ato de covardia. Ao abrir a porta, a jornalista foi rendida com arma na cabeça. Os bandidos, mais uma vez, não esconderam sua função original e deram voz de prisão, como se fossem policiais exercendo a lei. ‘Você é do jornal O Dia e está presa por falsidade ideológica’, disse o mascarado conhecido como Zero Um, sujeito franzino que lidera a milícia local.
Rendida, a repórter sentou com a cara na parede, enquanto dois homens começavam a sessão de tortura que só acabaria dali a mais de sete horas. Chutes, socos, gritos e ameaças abriram caminho para o terror que iria enfrentar: submetida e subjugada à violência do bando, a jornalista viu uma arma ser encostada em sua cabeça para, em seguida, um marginal rodar a caixa de bala e acionar o gatilho duas vezes em uma roleta-russa impiedosa. Enquanto isso, outros cinco bandidos reviravam a casa atrás de câmeras escondidas ou escutas. Nada encontraram, mas saquearam pertences e dinheiro da equipe.
Sozinha e apavorada, a repórter ainda seria vítima de novas barbáries: teve a cabeça enfiada numa sacola plástica e foi obrigada a descer as escadarias da casa alugada até chegar ao carro, onde já estavam algemados o fotógrafo, o motorista e um morador da favela que os acompanhara à festa.
Os milicianos tentaram enfiar um integrante da equipe na mala do carro, mas desistiram, pois o veículo tinha kit-gás. Algemados e feridos, os quatro seguiram amontoados no banco de trás do carro da reportagem até o cativeiro. No caminho, mais ameaças: ‘Nós vamos fazer vocês cheirarem cocaína e vamos jogar vocês cheios de drogas no Fumacê para que os traficantes cuidem de vocês’.
O carro percorreu longo caminho e deu volta em um largo próximo a um motel. Foram buscar ‘a chave’ do local usado para a tortura. Durante o caminho, esfregavam as armas nos rostos das vítimas e descreviam uma futura morte trágica para a equipe.
Os criminosos conversavam pelo rádio todo o tempo. Um carro seguia na frente, fazendo o que chamavam de ‘varredura’ do terreno. Só depois do OK, o automóvel de trás seguia. Após meia hora, o cativeiro. O chão úmido de cimento grosso foi o destino dos quatro depois de uma sucessão de socos, chutes e tapas. Apesar de a equipe de O Dia tentar informar que o morador da favela nada sabia sobre a identidade do grupo, ele também foi espancado.
Os agressores controlavam a voz temendo chamar a atenção da vizinhança. Durante a tortura era possível ouvir alguém tocando clarinete nas redondezas. Uma rádio evangélica foi sintonizada para abafar o barulho do espancamento.
A execução do grupo seria decidida por um ‘coronel’ que estava a caminho. Os espancamentos eram entremeados por longos discursos. Na ideologia torta dos bandidos, a presença na comunidade colocava em risco um relevante projeto. ‘Existem muitos policiais corruptos, mas nós não somos corruptos. A gente se mata de trabalhar aqui, leva tiro de vagabundo para vocês chegarem e estragar o projeto social que estamos fazendo. Nós não somos bandidos’, discursava um dos milicianos com voz distorcida e inspiração nazista. A repórter perguntava: ‘Se vocês não são bandidos, por que estão fazendo isso?’ A resposta dos seqüestradores não vinha em palavras, mas sim em socos e tapas.
O ‘Coronel’ chegou. Coturnos e uma calça azul de farda da PM estavam no ambiente. Também se falava na presença de um ‘comandante’. Mais torturadores os acompanhavam. Um deles soltou sem querer uma frase mostrando que conhecia a equipe do jornal de outro ponto da favela. Neste momento, a casa tinha pelo menos 20 homens. Seriam os algozes da longa sessão de horror imposta. A covardia atingiu níveis sobre-humanos. Como nos porões das ditaduras mais sombrias, choques elétricos e sufocamentos com sacos plásticos passaram a ser aplicados até o limite do desfalecimento. Para acordar as vítimas, socos e pontapés. Para deixar o grupo ainda mais apavorado, eles foram levados para quartos separados.
A tortura também era psicológica, com os milicianos revelando detalhes sobre a vida pessoal dos reféns. Extenuados, repórter e fotógrafo foram obrigados a fornecer senha de e-mails para que fosse feita uma varredura no que havia sido passado de informação para a redação.
A descoberta dos relatórios enviados para o jornal fez com que os agressores redobrassem o castigo. Ali, eles souberam que tinham sido realmente identificados: textos e fotos mostravam viaturas oficiais do BPVE (Batalhão de Policiamento de Vias Especiais) circulando livremente na favela, homens fardados conversavam tranqüilamente com policiais à paisana… As agressões físicas e psicológicas chegaram a níveis extremos, inclusive com ameaças de morte cada vez mais constantes.
O destino da equipe só foi decidido aproximadamente às 4h, quando os seqüestradores, tal como juízes, anunciaram o veredicto: iriam libertar as vítimas. Não sem antes roubar celulares e dinheiro do grupo, agindo como reles vagabundos de rua. Às 4h30, finalmente, a equipe foi solta na Avenida Brasil.
Machucadas, humilhadas e apavoradas, as vítimas não arriscaram procurar uma delegacia para registrar queixa ou fazer corpo de delito. Havia o medo latente de que outros policiais estivessem envolvidos com o bando do Batan. Não era possível, naquele momento, saber quem estava ao lado de quem. Era o início de uma nova vida para os envolvidos. Por um lado, o alívio por estarem vivos. Por outro, com a dor e o terror marcados na memória.
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NOTA DO SINDICATO DO RIO
Repúdio ao Estado paralelo
É inaceitável que o governo do Estado do Rio de Janeiro não consiga impedir a ação criminosa de seus próprios agentes, integrantes de máfias milicianas que disputam com o tráfico de drogas o domínio das comunidades carentes. O seqüestro e a tortura de profissionais do Jornalismo por milícias na comunidade do Batan, em Realengo, se configuram em um dos mais graves atentados à liberdade da informação no País desde o fim da ditadura militar.
A livre circulação da informação é o alicerce do Estado de Direito. A tortura dos jornalistas traumatiza a cidadania, já constrangida com a denúncia, pelo Ministério Público Federal, da quadrilha de policiais que loteava as delegacias para o crime organizado. E impõe ao poder público a priorização da garantia do direito de ir, vir e informar. Assim como a bomba do Riocentro, em 1981, desmontou a ditadura dos carrascos militares, a tortura dos jornalistas em Realengo destrói a ilusão de que as milícias possam representar alternativa ao narcotráfico nas áreas sem assistência do Estado.
Se o governo Sérgio Cabral não punir de forma exemplar os torturadores de Realengo, passará à História como cúmplice da tortura no Rio de Janeiro em plena vigência do Estado de Direito. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e a Federação Nacional dos Jornalistas, com apoio de toda a sociedade organizada, exigem que o governo investigue o crime de forma criteriosa e exemplar e crie condições para a prisão de todos os culpados, antes que pratiquem mais atentados à civilidade. O Rio de Janeiro, alarmado com a infiltração do crime em suas instituições públicas, não suporta mais a impunidade dos falsos agentes da lei que protagonizam a violência.
O sindicato e a federação dos jornalistas convocam a população do Rio de Janeiro para o Ato de Repúdio ao Estado Paralelo na segunda-feira, dia 2 de junho de 2008, sexto ano do seqüestro e morte do jornalista Tim Lopes. A manifestação será na escadaria da Câmara dos Vereadores (Cinelândia), instituição estratégica nos planos políticos da milícia. [Rio de Janeiro, 31 de maio de 2008 – Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro]
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Veja aqui matéria do Jornal Nacional (31/5) sobre o caso.