Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Miriam Leitão mostra um caminho

 

A Comissão da Verdade ainda não foi nomeada pela presidente Dilma Rousseff, mas começou a funcionar por obra de jornalistas liderados por Miriam Leitão. O programa Globo News Miriam Leitão, transmitido na quinta-feira (1/3), foi, depois que a presidente Dilma Rousseff assinou a lei que criou a Comissão, o primeiro ato nacional substantivo de reconstituição de fatos ocorridos durante a recente ditadura militar.

Miriam foi entrevistada por Alberto Dines no programa de televisão do Observatório da Imprensa, na terça-feira (13/3). Ao longo do programa da Globo News e após a transmissão, informou a jornalista, ela recebeu mensagens de pessoas que tiveram entes queridos perseguidos, torturados, mortos ou desaparecidos. Essas mesmas pessoas poderão dar à Comissão da Verdade informações preciosas sobre as circunstâncias dos crimes cometidos contra presos políticos.

O processo de interlocução iniciado por Miriam ao tratar do desaparecimento de Rubens Paiva – e retomado durante o programa do Observatório da Imprensa na TV, quando vários telespectadores reportaram crimes cometidos contra parentes seus – corresponde ao que tribunais internacionais consideram obrigação do Estado: “buscar por todos os meios possíveis” as informações sobre violações em massa de direitos humanos cometidas no passado; esses meios incluem “a realização de audiências e interrogatórios com aqueles que possam saber onde se encontra ou quem pode reconstituir o ocorrido” (ver, neste Observatório, “Direito internacional torna caduca a anistia brasileira”).

Modelo para a Comissão

Não se sabe como o Estado, no caso a presidente da República, enfrentará o desafio. Os primeiros sinais serão dados com a nomeação, ainda pendente, dos sete integrantes da Comissão da Verdade, a elaboração da normativa que regerá seu trabalho e os recursos humanos e financeiros que o grupo poderá mobilizar.

Em seguida será preciso ver como os demais poderes da República – Legislativo e Judiciário – se colocarão em face da atividade da Comissão. E como a opinião pública reagirá aos embates entre os que estão em busca de esclarecimento e os que consideram o assunto um tabu.

A política seguida por Miriam Leitão é propiciadora de um debate aberto, respeitoso e frutífero. A jornalista tem posições firmes sobre a crueldade desmesurada da repressão, mas procura sempre afastar a ideia de revanchismo. De fato, não houve, não há e não haverá revanchismo: a distância dos fatos no tempo não o permite.

Se tudo correr bem, esse exemplo poderá servir como inspiração para os trabalhos da própria Comissão da Verdade. Mas já se sabe de onde partirão fortes reações: a transcrição da entrevista de Miriam com o general da reserva Luiz Eduardo Rocha Paiva, até recentemente ocupante de alto posto na hierarquia do Exército, deixa isso bem claro.

Os “porões” não agiram por conta própria

No programa conduzido por Alberto Dines, o jornalista Flávio Tavares, preso político torturado (seu relato está no livro Memórias do esquecimento, de 2005), propôs que as Forças Armadas venham a público e façam o seu mea culpa. Devem “mostrar que um grupo minoritário de facínoras pôs em descrédito a instituição militar. Uma forma de salvar o Exército, a Aeronáutica e a Marinha, nos anos da ditadura, é mostrar que aquilo foi obra não da instituição Forças Armadas, mas de uma minoria que naquele momento tomava o poder nas Forças Armadas”.

Infelizmente, não é verdade.

Para começar, sabemos hoje graças a uma revelação obtida pelo jornalista Elio Gaspari, o próprio general-presidente Ernesto Geisel, condutor da “distensão lenta, gradual e segura”, era favorável à tortura e, se fosse útil, ao assassinato de oponentes políticos, desde que o serviço fosse feito sem deixar rastros.

O terrorismo de Estado não foi obra de um bando de oficiais aloprados. Foi uma decisão de governo, para servir ao regime, por intermédio de estruturas permanentes do Estado.

Fúria repressiva liberada

Leia-se o que escreveu Gaspari no livro A Ditadura escancarada, segundo volume da tetralogia As ilusões armadas.

Na página 13:

“Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº  5 liberou das amarras da legalidade.

(…)

“A tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dos militares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais.”

Nas páginas 175-6:

“Seria muita ingenuidade acreditar que os generais Emilio Medici e Orlando Geisel criaram os DOIs (destacamentos de operações de informações) sem terem percebido que a sigla se confundia com a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo doer. Por mais de dez anos essas três letras foram símbolo da truculência, criminalidade e anarquia do regime militar.

(…)

“Se em algum momento o novo ministro do Exército [Orlando Geisel] pretendeu afastar a sua tropa das tarefas de repressão política ou, pelo menos, mantê-la fora da rotina policial, isso jamais resultou em medidas concretas. As providências que tomou nos meses seguintes [a partir de novembro de 1969] foram na direção oposta, trazendo o radicalismo para dentro da hierarquia.

“Durante o governo de Castello [1964-1967] a linha dura pressionava o presidente pedindo-lhe liberdade de ação para combater os subversivos. Era uma reivindicação mistificadora, pois o que se pretendia era mutilar as liberdades públicas em benefício dos projetos políticos de oficiais indisciplinados. O novo ministro do Exército liberou a fúria repressiva, demarcando na ação policial o limite de sua atuação política. (…) Em julho de 1970, comunicou aos seus generais que, por determinação do presidente da República, o Exército assumiria o comando das atividades de segurança, prevalecendo sobre a administração civil e também sobre a Marinha e a Aeronáutica. Dois meses depois estavam criados os DOIs.”

Como na Argentina e no Uruguai, no Chile, na Bolívia e no Peru, o que houve não foram iniciativas desgarradas, mas o emprego das instituições militares numa “guerra contra o inimigo interno”, sob os ventos da Guerra Fria. E não faltava, em nenhum desses países, incluído o Brasil, tradição de violência e arbítrio a alimentar as práticas desumanas.