Dois anos depois da promulgação da Lei Maria da Penha, a imprensa ainda deve aos leitores – especialmente às mulheres – uma matéria ‘humana’ sobre o assunto. As vítimas da violência doméstica deveriam ser o enfoque principal, em vez de declarações oficiais ou números do ibope, que têm sido a tônica do noticiário sobre o assunto. A única personagem que mereceu atenção, até hoje, foi a mulher que deu nome à lei – Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmacêutica cearense agredida durante seis anos pelo marido, de quem sofreu duas tentativas de assassinato. Mas as outras, agredidas diariamente país afora, continuam sendo apenas dados estatísticos.
Os dois grandes jornais de São Paulo marcaram os dois anos da lei com matérias sobre a pesquisa do Ibope.
Folha de S.Paulo, 7/8/2008:
‘O número de relatos de mulheres vítimas de violência no país mais do que dobrou no comparativo do primeiro semestre deste ano em relação a igual período de 2007. Números apresentados nesta quinta-feira pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres com base no serviço Ligue 180 – a central de atendimento à mulher – apontam que de janeiro a junho de 2008 foram feitos 121.891 atendimentos contra 58.417 em igual período de 2007, num incremento de 107,9%. A lei Maria da Penha, que pune com mais rigidez os agressores de mulheres, completa dois anos hoje. Os dados mostram ainda um crescimento quase três vezes e meio superior na quantidade de pessoas que pretendem se informar sobre a lei. Enquanto no primeiro semestre do ano passado 11.020 ligações foram atendidas com o intuito de prestar esclarecimentos sobre a lei, no primeiro semestre de 2008 os atendimentos foram de 49.025.’
Só interessa se for celebridade?
Estado de S. Paulo, 8/8/2008:
‘Mulheres negras, entre 20 e 40 anos e que não ultrapassaram o ensino fundamental, são as que mais recorreram à Central de Atendimento à Mulher, um serviço criado para prestar informações e orientações a vítimas de violência em todo o país. A maioria (61,5%) diz sofrer agressões diárias, cometidas principalmente pelos companheiros. A procura por atendimento na central aumentou 107,9% entre o primeiro semestre deste ano e o mesmo período de 2007. Em 2008, 121.801 mil mulheres acessaram o serviço. Um aumento atribuído a lei, que, em dois anos, alcançou popularidade invejável. Pesquisa do Ibope também divulgada ontem mostra que 68% dos brasileiros conhecem a lei e, dos entrevistados, 83% disseram que ela ajuda a reduzir a violência.’
A preguiça – ou falta de interesse sobre o assunto – deixa os leitores sem rumo ante uma série de perguntas que merecem resposta –, como, por exemplo:
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Quem são essas mulheres que sofrem ataques diários?**
Por que elas têm medo de denunciar o agressor?**
Por que continuam convivendo com o agressor?**
A quem podem recorrer em caso de violência?**
Qual é o procedimento indicado em caso de violência?**
O que acontece com as mulheres depois de denunciarem a violência?**
Quantos agressores já foram punidos e que tipo de punição receberam?**
As mulheres estão se sentindo mais seguras depois da promulgação da lei?A imprensa não pode alegar problemas para encontrar mulheres dispostas a dar entrevistas. Mulheres que foram agredidas e tiveram coragem de denunciar o agressor não terão medo de falar do assunto. E sempre há o recurso de dar um nome fictício ao personagem ou evitar uma identificação completa.
Se as declarações off the records valem para outros assuntos, valeriam também nesse caso, se a entrevistada não quiser que sua tragédia pessoal vire assunto da imprensa. Ou será que, nesses tempos de celebridades instantâneas e reality shows, uma mulher vítima de violência – capaz de contar em detalhes o que passou e como conseguiu sair de uma situação dessas – só interessa se ela também for uma celebridade?
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Jornalista