Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Na luta de vozes, aos debaixo o silêncio

Emir Sader, pesquisador, cientista social, escritor e colunista da Carta Maior, foi condenado, em primeira instância, à perda de seu cargo de professor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a um ano de detenção, em regime aberto, convertida em prestação de serviços à comunidade. A sentença, dada pelo juiz Rodrigo César Muller Valente, da 11ª Vara Criminal de São Paulo, condena-o por injúria no processo movido pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC). O episódio ocorreu na semana passada e reclama um gesto de interpretação que se estenda para além do literal, visto que não envolve apenas duas personalidades, uma acusação de calúnia e um juiz, mas põe a nu um confronto de discursos, ou seja, uma luta de vozes. Luta esta que tem historicidade, que é atravessada pela memória de outros discursos e que só pode ser compreendida se tomarmos o político que ela encerra e que a sustenta.

Desde a colonização, poucos detentores da terra, em conivência com o poder religioso manifesto pela voz de jesuítas, cravaram as marcas de uma formação econômica extrativista, predatória, dizimadora do diferente, centralizadora de plantios em que os frutos eram concentrados e nunca divididos. Estavam lançadas as condições materiais da representação de uma colônia, que tomou para si o discurso e a posição de reproduzir o alheio, ainda que tenha dele sido vítima. Os sem-território, os sem-nome, os sem-identidade, enfim, os braços trabalhadores eram colocados ao lado das mercadorias, disputando com elas o lugar de objetos coisificados e mercantilizáveis. Quando tais braços punham-se a clamar, revoltar-se ou nomear a si mesmos como vítimas ou como merecedores de outras representações, eram narrados como incômodos, faltantes, criminosos e, assim, eram merecedores de punição. O tronco e a morte cumpriam essa tarefa, imprimindo a condenação do silenciamento aos que se autorizavam a condição de falantes.

Pacíficos e distantes

Esgotada a cana, o ouro se mostrou pródigo em sustentar relações de parentesco com aquelas que nutriram o discurso da descoberta de nossa terra. Novos braços para alimentar a extração, fôlego outro para pequenos vilarejos, estufa para que os sinhozinhos da cana ampliassem seus domínios e fizessem seus filhos tornarem-se doutorzinhos. De novo, materializava-se o sentido dominante de interdição ao clamor por liberdade, ainda que ele viesse de representantes das classes abastadas, minimamente inconformadas com a lógica da escravidão nutrida pelo açoite e pela espada.

Constrói-se um imaginário de que aos debaixo – vendedores de sua força de trabalho – restam a submissão, o silêncio e o aceite, ao passo em que aos de cima – donos dos capitais – é confiada a tarefa de delegar quem diz, o que se diz, de que modo podem as palavras ser ditas, a serviço de que interesses elas devem ser postas.

Também se depreende dessa inscrição histórica dos sentidos que os de cima colocaram-se assimetricamente em relação aos interlocutores, tomando para si o direito não apenas de governo de todos (e só isso já seria o bastante), mas o lugar de criar leis próprias, comprar acordos que os favorecessem, negociar sentenças, corromper autoridades eclesiásticas, políticas e jurídicas e postar-se como a única voz de autoridade e comando do/no país. De novo, aos dissonantes, o lugar de criminoso com direito a cabeças cortadas e exposição pública de torturas.

As várias repúblicas oligárquicas, alimentadas pelo café, só vieram fortalecer tal imaginário, marcando os efeitos de autoridade militar, centralizadora, disciplinante e mantenedora da ordem do Estado, da família e da igreja. Sob o manto de tomadas de poder e golpes militares, inscreveu-se um modo desigual de virtualizar os acessos sem democratizar os poderes, de ensaiar a expressão da liberdade sem permitir a ação de ‘perigosas’ mobilizações dos trabalhadores, de dar aos pobres mantendo-os pacíficos e distantes das ações de militância.

Retórica de proibições

Ou seja, de manter o controle dos sentidos e dos discursos que circulavam então, preservando interdições e punições aos que reivindicavam. Aos desejantes de mudanças na ordem fundiária, por exemplo, os canhões foram capazes de garantir extermínios em massa; homens e mulheres tiveram sua garganta cortada e sua língua tornada gravata em Canudos, inscrevendo o lugar desejado de calar, a voz. A língua falada, cantada e rogada como prece ou praga precisava ser arrancada para que a palavra não entrasse na disputa pelos sentidos e ficasse interditada para sempre.

Também em Contestado, dizimar foi estratégia para silenciar muitas vozes ao mesmo tempo. A manutenção dos privilégios de poucos, a concentração da terra e a centralização do poder econômico no centro-sul deu as bases para o discurso de alijamento das massas, sustentado pela formulação ‘façamos a revolução antes que o povo a faça’. No processo de industrialização, o longo capítulo da ditadura militar instalou o sentido dominante sobre a ordem pretendida para o país – desenvolvimento e progresso. A logística do crescimento econômico tentava impedir a escuta dos ecos dos quartéis, dos intelectuais no exílio, das mortes e desaparecimentos, muitos dos quais ainda hoje não esclarecidos.

Tal historicidade é indiciária de como as classes dominantes criaram (e ainda criam) uma retórica de proibições para conter outros discursos tidos como indesejáveis, de como enovelaram punições de diferentes ordens para expressar sua intolerância, de modo como buscaram instaurar o privilégio de alguns como forma exclusiva de poder. Se é certo dizer que tantas vozes foram condenadas ao silenciamento e à interdição, também vale registrar que ao gesto de calar e impedir correspondem modos de resistir e de dizer, maneiras imprevisíveis de dar corpo à indignação e à denúncia.

Blindado e poderoso

Esse trabalho histórico dos sentidos precisa ser recuperado para interpretar, não sem estranheza e indignação, a sentença dada a Emir Sader. Primeiro pela rapidez com que a Justiça brasileira (seria louvável se fosse sempre assim), que em geral tarda muito, veio a galope em defesa do senador, salvando-o da acusação de racista. Fosse um cidadão qualquer, trabalhador anônimo e pobre desses que encheram as senzalas de outrora e ainda hoje se submetem às novas versões delas, certamente anos de espera deixariam o processo engavetado e fariam com que a sede de uma sentença fosse apenas quimera no horizonte nunca alcançado. Também vale aqui registrar que, com freqüência, trabalhadores sindicalizados, integrantes de movimentos sociais, excluídos e sem-parcela são caluniados, xingados, ofendidos e difamados pelas elites sem que se tenha visto, com tanta presteza, a Justiça restituir-lhes a honra.

Segundo, porque os efeitos de sentido da escrita de Emir Sader, intelectual com mais de setenta livros, outras tantas obras organizadas e uma trajetória impecável de lucidez teórica e pesquisa desenvolvida no país e no exterior, apenas funcionaram como espelho de algo que foi dito pelo referido senador. Talvez a celeuma tenha sido justamente essa: ver-se refletido na fala alheia provocou um desconforto tal, que reclamou a necessidade do silenciamento e da punição, visto que no espelho de uma voz outra, o próprio dizer tornou-se insuportável.

Ocupar a voz de autoridade, dada pelo cargo senador da República, inscreve um modo de emprestar prestígio ao sujeito enunciador, criando uma posição de estar acima dos outros pobres mortais, de ser representante ele próprio do poder e, assim, de enunciar de um lugar imaginariamente blindado e poderoso. Ao se referir ao presidente Lula e à esquerda, o senador manifestou o desejo de ‘ver-se livre desta raça por 30 anos’. Dois dias depois, em 29 de setembro de 2005, publicou artigo no jornal Folha de S. Paulo, em que tentava explicar o uso da expressão.

Quanto a ter usado a palavra ‘raça’ – não como designação preconceituosa de etnia, ideologia, religião, caracteres, mas como camarilha, quadrilha, grupo localizado –, tão logo alguns falsos intelectuais surgiram, incriminando-me, apareceram preciosos testemunhos a meu favor. Confesso que falei ‘dessa raça’ espontaneamente, sem premeditação, usando meu modesto universo vocabular, a linguagem coloquial brasileira com que me expresso, embora meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa.

Palavra e ideologia

O suposto uso de sinônimos (em qual dicionário é possível trocar raça por camarilha, quadrilha, grupo localizado?), realocando um termo em lugar de outro, não produz o efeito de uma explicação, mas joga com o modo de a língua ser usada para dizer e dar manutenção à mesma formação ideológica, assegurando um sentido ainda mais depreciativo e misturando agora duas ordens de acusação, uma étnica e outra criminal.

Com base na tradução proposta pelo próprio senador, é possível formular o desejo de ‘ver-se livre desta quadrilha por 30 anos’, o que implica uma condenação moral do presidente, do povo brasileiro representado em sua biografia e seus modos, e dos partidos de esquerda. Acusar pelo pertencimento a um grupo étnico, acusar pela imoralidade de pertencer a uma quadrilha, cujos sentidos inscrevem atos de roubo, saque e violência, promovidos por bandos criminosos e fora da lei.

Sobre isso, vale marcar aqui que esse significante foi e ainda é colocado em discurso para nomear negros aquilombados, os canudenses do Arraial do Belo Monte, os caboclos do Contestado, os integrantes das Ligas Camponesas e os integrantes do MST hoje. Tais ocorrências de ordem lingüística nos convidam a refletir sobre o modo como as palavras materializarem a ideologia e a forma como elas jogam com o(s) sentido(s) sobre o político, inscrevendo os sujeitos em determinada posição.

Desconforto materializado

Dessa posição, o sujeito toma para si um papel e atribui ao outro e ao objeto do discurso uma representação que lhe convenha ou lhe seja possível assumir, enunciando nesse meio fio em que muitas vezes o dizer escapa ‘espontaneamente, sem premeditação’. Pois é justamente aí, nos atos falhos, nos equívocos, nos deslizamentos de sentido, nas hesitações e nas substituições de palavras que a ideologia e o desejo cravam a sua tatuagem, indiciando a formação social à qual o sujeito está preso. No caso, da posição de senador, líder do PFL e banqueiro, é dado como natural que a referência a tudo o que tenha relação com povo seja tratado como questão de raça ou de quadrilha, evocando desejos de extermínio e eliminação.

Às vozes oponentes e questionadoras da evidência desses sentidos, relembramos aqui o trabalho histórico dos sentidos sobre silenciamento e interdição. Observa-se, então, o seguinte deslocamento: do discurso agressor e difamatório à posição de vítima de calúnia e difamação, buscando ancoragem na condição de que ‘meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa’. Recorrer ao jurídico como lugar de autoridade, inverter o efeito do dito de intolerância tornando-o reflexo da maldade alheia, condenar a voz que critica, calar à custa da cassação de direitos: eis o funcionamento em curso.

A voz do professor Emir Sader apenas materializou o desconforto de inúmeros intelectuais em relação ao depoimento do senador, fazendo falar uma tecelagem discursiva de denúncia da forma natural e espontânea como a declaração foi dita e divulgada.

Por ser racista e odiar o povo brasileiro (…) Ele toma o embate atual como um embate contra o povo – que ele significativamente trata de ‘raça’ (…) revela agora todo o seu racismo e seu ódio ao povo brasileiro com essa frase, que saiu do fundo da sua alma – recheada de lucros bancários e ressentimentos. Ele merece processo por discriminação, embora no seu meio – de fascistas e banqueiros – sabe-se que é usual referir-se ao povo dessa maneira – são ‘negros’, ‘pobres’, ‘sujos’, ‘brutos’ – em suma, desprezíveis para essa casa grande da política brasileira que é a direita – pefelista e tucana –, que se lambuza com a crise atual, quer derrotar a esquerda por 30 anos, sob o apodo de ‘essa raça’.

Resposta com indignação

Tem-se aqui um modo de contestar, desautorizar, subverter os sentidos tomados como evidentes pelo senador ao dizer raça e quadrilha, alocando-os em outras redes de memória.

As palavras do pesquisador põem em discurso o confronto de classes sociais (e interesses), marcando como poderes, saberes e dizeres são distribuídos de maneira desigual no país, ou seja, conferindo a poucos o acesso à casa-grande e mantendo a maioria assenzalada. Quando atribui ao depoimento do senador o lugar da elite branca e banqueira, o sujeito coloca-se em outra posição, a saber, aquela em que estão negros, pobres e não-banqueiros, para, desse lugar, desnaturalizar o que parece evidente e espelhar o dito alheio, desenhando uma interpretação em que ecoam efeitos de redes de memória silenciadas. Nomear o modo como a elite historicamente designou o povo, colocar a nu as formas de discriminação que o uso social dado ao significante raça já inscreveu e ainda inscreve, rastrear a historicidade do que é ser direita e esquerda no país e relacionar tais noções com as formas de inscrição do/no político são efeitos de uma resposta.

Resposta com indignação de quem não se satisfaz com o significado de uma palavra dita ou redita por uma autoridade política do país, mas consegue escavar os implícitos de seu uso, interpretar as representações ideológicas em discurso, questionar o modo como a linguagem é tomada, desvestir de aceitação a ordem das imposições e dos preconceitos. Resposta que também fala, em seu avesso, pelo que tantas vozes silenciadas não puderam e ainda não podem falar, pelos que foram mortos com a palavra presa na garganta, pelos que foram falados pela classe dominante sem nunca alcançarem o lugar da autoria de seus próprios ditos; resposta que, por tudo isso, incomodou tanto.

******

Professora-doutora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo