A luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil tem quase três décadas e já cunhou alguns nomes de expressão. Um deles é Murilo César Ramos – jornalista, professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília –, militante das buscas coletivas por políticas mais justas para as comunicações no país desde quando, ainda principiante, na faculdade, suas inquietações o levaram a procurar respostas e formulações para reverter o que denomina ‘as distorções de poder no jornalismo’. Uma vez nessa ‘trilha’, participou ativamente dos mais importantes capítulos da história da democratização da comunicação brasileira, entre eles a Assembléia Nacional Constituinte e a formulação da Lei do Cabo.
Murilo Ramos preocupa-se, hoje, com um novo marco regulatório que resgate o caráter público da radiodifusão e almeja uma Conferência Nacional ampla e plural, que dê conta da agenda político-normativa pautada até agora pelos movimentos pela democratização da comunicação. A partir de Brasília, onde trabalha e reside, concedeu por e-mail esta entrevista.
***
Sua participação na luta pela democratização da comunicação no Brasil é destacada. Como foi o início dessa luta, o que a motivou e a motiva ainda hoje?
Murilo César Ramos – Se é destacada, sinceramente, não sei. Mas é, com certeza, longa. São 25 anos de participação em movimentos e organizações de luta por mais democracia na comunicação brasileira. Sempre a partir da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Foi como professor que canalizei de modo concreto os sentimentos difusos que tinha desde o início da carreira profissional, no final dos anos 1960, em Curitiba, sobre as distorções de poder no jornalismo. Sou grato até hoje a um amigo jornalista que, infelizmente, perdi de vista: Geraldo Hasse. Ele me fez ler Ilusões Perdidas, de Balzac, livro a que somei, alguns anos depois, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Nesses livros está boa parte da inspiração que busquei para, nas lutas coletivas, tentar mudar democraticamente o jornalismo e as instituições de comunicação como um todo. Devo ainda muito, mas muito mesmo, ao meu primeiro orientando de mestrado, na UnB: Daniel Herz. No início dos anos 1980, foi o Daniel que, ao discutirmos o que poderia ser sua dissertação de mestrado, me descortinou fatos e processos sobre a comunicação no Brasil que até então desconhecia. Na dialética orientador-orientando, que construí com Daniel Herz e que derivou para uma amizade fraterna, duradoura até a sua morte tão prematura, está a motivação que me alimenta, na academia e fora dela, a lutar por uma comunicação mais democrática em nosso país.
Qual sua opinião sobre os movimentos pela democratização da comunicação no país?
M. C. R. – Foi com um amplo movimento que tudo começou, entre os anos 1960 e 1970, unindo forças sindicais e sociais, partidos políticos, parlamentares e academia; primeiro na luta contra a ditadura militar e a censura; depois, por eleições diretas; e, adiante, por uma Constituição democrática. Na época do Congresso Constituinte, já se tinha uma frente nacional que dominava as propostas democráticas nascidas no âmbito da Unesco e que propunha uma nova ordem mundial da informação e da comunicação, decorrente de políticas democráticas de comunicação. As derrotas e as vitórias no processo constituinte (mais derrotas que vitórias) levaram ao nascimento, nos anos 1990, do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. O FNDC, herdeiro do processo de formulação e luta vindo dos anos 1960, é, junto com a radiodifusão comunitária, inspirador de movimentos e instituições mais recentes, como o Coletivo Intervozes. Constituinte, Conselho de Comunicação Social, TV a Cabo, radiodifusão comunitária, privatização do Sistema Telebrás, TV Digital, um novo marco regulatório para a radiodifusão: todos esses processos têm incrustada neles a marca do movimento pela democratização da comunicação no Brasil, um dos mais importantes em todo o mundo.
Este governo federal é criticado freqüentemente pelos movimentos pela democratização da comunicação. As propostas da Ancinav, do Conselho Federal dos Jornalistas e o desfecho da TV Digital são apontados como exemplos de uma postura passiva. Os radiodifusores comunitários reclamam de que são mais perseguidos e que aumentaram as dificuldades para se legalizarem. Na sua opinião, a que se deve esse comportamento? Trata-se de uma subserviência do governo ao mercado?
M. C. R. – É o que parece. Os governos se sucedem, mas não se impõem sobre o mercado, sobre as empresas de comunicações, em especial sobre as de radiodifusão. Iniciativas surgem, da sociedade, de setores do próprio governo, como foi o caso do projeto da Ancinav no primeiro mandato do presidente Lula, mas quando se chega perto de uma decisão, voltam a se impor os interesses do patronato da comunicação. Nada disso deve nos surpreender muito em uma sociedade capitalista. Mas, no caso da radiodifusão, nosso ambiente político-normativo está entre os mais entregues ao mercado de que tenho notícia. Nem na sociedade mais capitalista e consumista do mundo, os Estados Unidos, é assim. Como não o é na Grã-Bretanha, na França, na Suécia, e assim por diante.
Sabendo-se que o Ministério das Comunicações, historicamente, não formula políticas de comunicação, quem as formula, em sua opinião? O governo continua abdicando dessa prerrogativa?
M. C. R. – Se o governo abre mão de formular as políticas para a comunicação, e ele de fato costuma abrir, elas se realizam por meio dos interesses empresariais, das corporações, que têm no lucro seu objetivo quase que exclusivo. São as políticas dos fatos consumados, sem qualquer participação social mais ampla. É a hegemonia privado-comercial sobre o Estado, que compromete a democracia mesmo no liberalismo.
Com a convergência tecnológica dos meios de comunicação, cresceu o debate sobre a criação de um marco regulatório para as comunicações. É possível construí-lo face à diversidade de meios e interesses abarcados? Quais os principais itens a constar na ‘espinha dorsal’ desse marco? A Constituição Federal precisa ser revista em seu capítulo V?
M. C. R. – Não tenho dúvidas de que o Capítulo da Comunicação Social precisa ser revisto, embora reconheça ser essa uma daquelas missões quase impossíveis, dada a correlação de forças que temos hoje e que não deverá ser alterada em pouco tempo. Ele é uma colcha de retalhos mal costurada, com sérios problemas conceituais e de arranjos legais, resultantes da batalha perdida pelo movimento de democratização da comunicação durante o processo de elaboração constitucional. Qualquer novo marco regulatório para as comunicações, que inclua o rádio e a televisão, precisa resgatar, por exemplo, o caráter público de toda a radiodifusão, reconhecendo que a idéia de complementaridade entre sistemas privado, público e estatal é uma armadilha que tende a tornar o público e o estatal simples guetos diante de um colossal sistema privado-comercial. Esse resgate inclui o debate das anomalias jurídicas que são os institutos da concessão e da permissão na radiodifusão brasileira. É preciso submeter a radiodifusão privado-comercial a relações contratuais claras com o Poder Público e a instrumentos regulatórios e fiscalizatórios eficazes e transparentes. É preciso dar cabo de absurdos como a constitucionalização dos prazos de outorgas de radiodifusão. Esse é um dispositivo que chega a ser cômico. Em suma, pensar um em novo marco regulatório para a comunicação sem começar por uma revisão ampla do Capítulo da Comunicação Social é pensar o certo, mas com a estratégia errada.
A sociedade está reivindicando e o governo se comprometeu em realizar a Conferência Nacional de Comunicação em 2008. O que o senhor espera da Conferência? Quais as suas sugestões para o bom andamento dessa iniciativa?
M. C. R. – Só uma Conferência nos moldes da que se discute hoje dará conta das tarefas que apontei anteriormente, meros exemplos de uma agenda político-normativa mais ampla que o movimento pela democratização da comunicação discute há décadas. Eu espero muito da Conferência, mas espero, acima de tudo, e antes de mais nada, que sejamos fortes e coesos o suficiente para realizá-la, pois os seus opositores por ora estão na muda, mas, se perceberem que de fato ela acontecerá, se mobilizarão e farão grande pressão sobre os poderes Executivo e Legislativo para que ambos se afastem da iniciativa. Se isso acontecer, a Conferência poderá se transformar em um mero evento de protesto cívico.
A entrada das empresas de telecomunicação nos serviços de transmissão de conteúdo audiovisual sofre oposição acirrada dos radiodifusores. O ingresso das teles na transmissão de conteúdos não significará o fim e/ou a fragilização do atual modelo de radiodifusão? Como estabelecer critérios que regulem suas novas atividades?
M. C. R. – Não vejo problema na entrada das empresas de telecomunicações no mercado de televisão por assinatura. Como consultor, tenho trabalhado para que isso aconteça. Mais operadores de televisão por assinatura pode significar a ampliação do acesso a esse serviço por mais pessoas, ainda que ele vá manter, por muito tempo, o seu caráter essencialmente elitista. Já a possibilidade de as empresas de telecomunicações oferecerem televisão por assinatura de forma alguma ameaça o sistema de radiodifusão. Esse é um argumento engendrado pela Globo para, fundamentalmente, manter o seu domínio quase absoluto sobre a produção audiovisual brasileira. O Congresso Nacional discute no momento essa questão. E, por mais incrível que pareça, a radiodifusão, ou melhor, a Globo, continua a levar vantagem. Ao mesmo tempo em que ela ‘concede’ às teles o direito de distribuir programações audiovisuais mediante assinatura, as impede de sequer financiar produções independentes. A ‘política audiovisual’ da Globo é mais restritiva do que a da própria Ancine, disfarçada de proteção à ‘cultura’ nacional, o nome que ela dá ao seu virtual monopólio sobre a produção audiovisual.
O Conselho de Comunicação Social está parado há mais de um ano. O que a comunicação (e a sociedade) perde com isso? Como fazê-lo atuar novamente – e com mais poder?
M. C. R. – Sempre fui e continuo cético quanto ao Conselho de Comunicação Social. Ele foi aparelhado pelos interesses privado-comerciais e não vejo chance de isso mudar no curto e no médio prazos. Espero, como disse há pouco, que a Conferência Nacional aconteça e que dela nasça, entre outras medidas, um órgão regulador eficaz e autônomo para a radiodifusão. É disso que precisamos, e não de um inócuo órgão auxiliar do Congresso Nacional.
As concessões em radiodifusão no País entraram na pauta legislativa no último ano, mas o espaço é reconhecidamente comprometido, com mais de 70 parlamentares proprietários de rádios e TVs. Como é possível rever a regulamentação das concessões? E fiscalizá-las?
M. C. R. – Só com a adoção de um novo marco regulatório, de uma nova lei, que venha acompanhada, como já frisei, de instrumentos regulatórios autônomos e eficazes. A radiodifusão não pode continuar a ser regulada pelo Ministério das Comunicações, isso é tudo o que os radiodifusores querem. E as outorgas de radiodifusão precisam deixar de ser submetidas ao escrutínio interessado, e interesseiro, do Congresso Nacional.
Os cursos de Comunicação Social no País não costumam estender seus currículos em disciplinas que tratem de políticas de comunicação e mesmo de política em geral. O estudante e a academia estão despolitizados? Qual é o perfil dos profissionais que buscam a pós-graduação nesta área?
Murilo Ramos – Nossos cursos de Comunicação são esquizofrênicos. Instrumentais e meramente profissionalizantes na graduação; acadêmicos e voltados para a pesquisa na pós-graduação. Quando selecionamos alunos e alunas para nossos mestrados e doutorados, constatamos, quase sempre, uma tendência desanimadora: em competição com estudantes de áreas afins, como Ciência Política, Sociologia, por exemplo, os estudantes oriundos da Comunicação em geral saem-se pior. Na graduação, queremos ser jornalistas, publicitários, e queremos que os currículos se espelhem nas exigências do mercado. Na pós-graduação, queremos ser professores e pesquisadores e preferimos os referenciais teóricos críticos, contestadores do status quo. Por isso, sou favorável a uma mudança substantiva no perfil acadêmico dos cursos de Comunicação, na graduação, aproximando-os mais das Ciências Humanas e Sociais. Com isso, eles se aproximariam mais dos cursos de pós-graduação e diminuiríamos o fosso hoje existente entre graduação e pós-graduação. Para mim, esse é o problema central dos nossos cursos, e não a despolitização do estudantado. Não acho que meus alunos e alunas de hoje prezem menos a política do que aqueles que tive nos anos 1980. Mais do que eles e elas, mudou a política, após o colapso da União Soviética, que abriu caminho para a hegemonia neoliberal dos anos 1990. Resgatar o pensamento crítico é o nosso maior desafio político hoje, na academia e fora dela.
Quem é o vilão da democratização da comunicação?
M. C. R. – A hegemonia, que parece eterna, do empresariado da radiodifusão sobre a política e os políticos. Sei que esse é um raciocínio que parece simples e simplista demais. Mas, quanto mais estudo, trabalho e milito no campo da comunicação, mais me convenço disso.
***
Murilo César Ramos é pós-doutor em Comunicação pela Unicamp, doutor em Comunicação pela University of Missouri-Columbia, EUA e professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), onde coordena o Laboratório de Políticas de Comunicação (LaPCom).
******
Editora de MídiaComDemocracia