Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ninguém manda na polícia

‘Ninguém manda na polícia’: assim o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Jorge da Silva, coronel da reserva da Polícia Militar do Rio com extenso currículo na área de segurança pública e direitos humanos, resume cinco décadas de vivências profissionais e reflexões acadêmicas.




‘Seja Polícia Militar, Polícia Civil, a polícia faz o que quer. Na Constituição de 88 perderam a oportunidade de resolver isso. Ao contrário. Criaram um monstro: constitucionalizaram as polícias, coisa que não existia anteriormente. Os estados podiam organizar suas polícias dessa ou daquela forma. Deram às polícias uma autonomia que não se cumpre em benefício do Estado nem da população. São corporações que vivem para si mesmas, e para quem fizer o que elas querem.’


A conversa prossegue. ‘Você sabe qual é a definição de líder, não é?’, pergunta entre risos Silva. A resposta sai após alguma hesitação, já se sabendo que está a caminho algum desafio ao senso comum: ‘Alguém que tem ascendência sobre os outros, que comanda, que…’. ‘Nada disso, você está errado! Líder é aquele que segue a maioria… As pessoas imaginam que líder é aquele a quem a maioria segue. Não. Líder é aquele que segue o que a maioria quer. Na área da polícia é mais ou menos isso. Só lidera a polícia quem faz o que ela quer.’


‘Mas o coronel (Carlos Magno Nazareth) Cerqueira não fez o que a maioria queria, quando comandou a PM’ (1983-86 e 1991-94, governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro).


‘Você sabe muito bem que o coronel Cerqueira não liderou a polícia, porque a polícia não quis ser liderada por ele. A rejeição a ele e a mim foi sempre muito grande. Nós não conseguimos liderar nada, porque nós queríamos um outro caminho. O que eles queriam era sair por aí matando, fazendo arbitrariedades, e nós tentávamos controlar. Quem tenta controlar a polícia está feito. Não lidera nada’.


Cerqueira, assassinado em 1999 por um sargento que também foi morto, queria uma polícia militar inteligente, que deixasse para trás a concepção do povo como inimigo interno. Foi derrotado. Ele e muitos outros, nas polícias civil e militar de vários estados do Brasil. Os adeptos da truculência dão as cartas. Herança em linha direta da ditadura. Em muitos casos, a violência é ferramenta de ‘trabalho’. Caso notório, sobre o qual, depois de Tropa de Elite 2, é desnecessário estender-se: ‘milícias’ no Rio de Janeiro.


‘Matadores do 18’ (18º Batalhão da PM-SP)


Outro episódio exemplar (no mau sentido). Reportagem de André Caramante na Folha de S. Paulo (25/3):




‘Relatório da Polícia Civil paulista aponta grupos de extermínio formados por PMs como responsáveis pelo assassinato de 150 pessoas na capital entre 2006 e 2010.


[…] A investigação, a cargo do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), aponta dois grupos de extermínio de PMs: um da zona norte, outro da zona leste.


Cerca de 50 PMs são suspeitos de formar e unir os grupos para assumir o controle do tráfico de drogas e explorar jogos de azar.


O grupo da zona norte é conhecido como ‘Matadores do 18’, pois os acusados atuavam no 18º Batalhão. Esses PMs são suspeitos da morte, em 2008, do coronel José Hermínio Rodrigues, comandante da PM na área.


[…] Doze mortes atribuídas ao grupo de extermínio ‘Os Highlanders’, que decapitava as vítimas, não estão no relatório. Esse terceiro grupo jogava os corpos em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, segundo investigações. O relatório da Polícia Civil computou só mortes na capital.’


Exterminadores goianos


Veja-se também o que acontece agora em Goiás. Depois da repercussão de denúncias a respeito de um grupo de extermínio constituído por oficiais (inclusive o subcomandante, coronel Carlos Cézar Macário, e um tenente-coronel, Ricardo Rocha Batista) e soldados da PM, a sede do jornal O Popular, de Goiânia, foi alvo de tentativa de intimidação por parte da Rotam (Ronda Ostensiva Tático Metropolitana), versão local da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) paulista. Trinta PMs em oito viaturas passaram em frente ao prédio do jornal com as sirenes ligadas. O comandante da Rotam foi destituído e a tropa proibida de ir às ruas, à espera de uma reestruturação.


A jornalista Cileide Alves, editora-chefe do O Popular, descreveu esses episódios gravíssimos neste Observatório em ‘Barra-pesada no jornalismo goiano‘. Foram relacionadas 117 mortes apenas entre 2003 e 2005. O grupo, apontam as autoridades federais, tinha mais de dez anos de existência.


Na quinta-feira (24/3), a PM-GO revelou que policiais militares foram emboscados na periferia da capital por bandidos que os desarmaram e torturaram. Em certo momento, um dos bandidos teria dito: ‘A partir de agora Goiânia não será mais a mesma’. Pouco depois, o comando da segurança pública anunciou que a Rotam voltaria às ruas, sem dizer quando.


A peleja dos direitos humanos contra a lei do cão


No domingo (27/3), o jornal O Popular publicou entrevista com a secretária nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário Nunes (republicada no blogue Educar sem violência). O título foi ‘Julgamento de PMs pode ser federalizado’. A secretária menciona que o jurista Dalmo Dallari, colaborador deste Observatório, teve papel decisivo na aceitação da denúncia contra o grupo de extermínio goiano.


O jornal abriu no Facebook um canal para manifestação de leitores. Predominaram questionamentos – formalistas, se poderia dizer – às posições de Maria do Rosário (ver ‘Face a Face‘). Pouco ou nada a respeito da gravidade e da torpeza dos crimes de que são acusados os policiais.


Note-se, a propósito, quão ilusória é a ideia de que redes sociais na internet e conexos vieram ao mundo para abrigar apenas pessoas imbuídas das melhores e mais cândidas intenções cívicas. Revolução tecnológica não muda ideologias, afinidades, idiossincrasias, preconceitos, falta de caráter. Como já se disse tantas vezes: o que existe no ‘mundo real’ existe no ‘mundo virtual’.


Major Araújo, paladino do corporativismo


Um dos corifeus do corporativismo policial-militar goiano é o deputado estadual Major Araújo. Eis o resumo da trajetória do deputado publicado no saite da Assembleia Legislativa de Goiás:




‘Júnio Alves Araújo, conhecido como Major Araújo, é presidente reeleito da Associação dos Oficiais da Polícia e Corpo de Bombeiros Militar de Goiás (Assof), desde 2005. Liderou a comissão integrada pelas associações militares que negociou com o Governo a aprovação do Plano de Carreira de sua categoria e o regime de subsídio como nova forma de remunerar os militares goianos. A implantação do regime de subsídio recompôs o salário dos policiais e bombeiros militares, corrigindo distorções históricas.


Representante da Polícia Militar de Goiás e do Corpo de Bombeiros, Major Araújo foi eleito suplente de vereador de Goiânia, em 2008. Major Araújo assumiu a titularidade do cargo de vereador em setembro de 2009, até sua posse como deputado estadual.


Esta foi a segunda vez que tentou se eleger deputado estadual. Na última campanha eleitoral [2010], foi escolhido pelo candidato a governador Marconi Perillo (PSDB) para ser o responsável pela mobilização de todas as associações e entidades de Segurança Pública em torno da candidatura tucana.’


Major Araújo tomou posição veemente em defesa dos PMs presos na operação da Polícia Federal. Algumas de suas manifestações no Twitter são reproduzidas abaixo, pelo método de copiar e colar, ou seja, sem retoques. Os tópicos estão, claro, em ordem cronológica invertida. Ressaltem-se as palavras agressivas dirigidas à imprensa e a jornalistas:


DepMajorAraujo




** Não permitiremos que ‘cobras’ se camuflem de jornalista destruir Goiás. Essa classe é muito importante para contar com certos tipos….


** Enquanto voces vendem seus jornais, a sociedade clama por segurança.


** Parabéns a vocês imprensa marrom, ou melhor vermelha de sangue e de vergonha. A sociedade não pagará por suas vaidades.


** Enquanto interesses escusos são atendidos, policiais e cidadão de bem são mortos por bandidos.


** Massagear o ego de alguns não traz a certeza de que precisamos. A imprensa tem um papel importante, mas tem que séria e para a sociedade.


** O cidadão merecem ter segurança.Tenho certeza que alguns ditos jornalistas não são capazes de faze-los. Precisamos de nossas tropas de elite


** Não podemos permitir que a sociedade goiana sofra, enquanto pseudos intelectuais se escondem em seus condominios fechados.


** Enquanto isso a sociedade goiana clama por socorro! Pelo amor de Deus, a ROTAM precisa estar nas ruas.


** Acredito que isso deve ser motivo de orgulho para muitos veículos de comunicação. Há editores que devem estar soltando foguetes.


** Os PMs foram rendidos suas armas e coletes foram roubados e o pior: Todos foram algemados. Entre as viaturas estava um tenente Cmt. Patrulha


** Duas viaturas do 28 CIA foram abordam um carro roubado e foram surpreendidos por 7 meliantes fortemente armados.


** Está aí o que muitos queriam. Estão tentando ridicularizar a PM. Nem os bandidos estão respeitando.’


Um governador silente


No estágio atual das coisas, um dos fatores que poderiam restabelecer minimamente algum tipo de controle sobre a Polícia Militar de Goiás seria um pronunciamento firme do governador do estado, Marconi Perilo, em defesa da ordem democrática. Perilo se manifestou no dia em que a Rotam tentou intimidar O Popular (3 de março; ‘o estado democrático de direito será mantido em Goiás’) e depois não disse mais nada a respeito do assunto.


Agora, leitor distraído, se você até aqui não estabeleceu uma conexão esclarecedora a respeito da discrição do governador, volte alguns parágrafos e releia a minibiografia do Major Araújo. E saiba também que o coronel Macário, ex-subcomandante da PM-GO preso na ‘Operação Sexto Mandamento’, foi nomeado para a função após a posse de Marconi Perilo, em 1 de janeiro.


É difícil ser jornalista sob permanente hostilidade dos encarregados de zelar pela segurança pública.


Ninguém manda na polícia.