Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

No meio do black tie, um homem do povo

Esta é a saudação que escrevi para minha filha, Juliana Pinto, ler durante a solenidade de entrega do Prêmio Internacional Liberdade de Imprensa, em 22/11/2005, em Nova York (L.F.P.).

Uma peça teatral reflete muito bem o que é o Brasil. Trata-se de Eles não Usam Black Tie. Sou um brasileiro comum, que jamais usou um black tie. Mas bem que gostaria de estar neste momento entre os senhores envergando um traje a rigor. Ele nos torna mais agradáveis, é confortável, realça ou superdimensiona algumas das nossas qualidades. É nossa vitrine glamourosa.

Nesta festa, porém, o traje é, sobretudo, um símbolo. É um traço de união entre o mundo rico e o mundo pobre. Os cidadãos afortunados que aqui se encontram concederam, referendaram ou estão a aplaudir quatro cidadãos que têm empenhado seu engenho & arte para diminuir – se não acabar – com a distância entre ricos e pobres. Têm colaborado para construir uma ponte entre os poucos que têm muito e os muitos que nada têm. Não apenas pensando em termos materiais. Raciocinando, também, com valores morais e éticos, lidando com conceitos como dignidade, liberdade, vontade, opção, alternativa.

Sabemos nós, honrados pela escolha do CPJ, que os senhores são uma boa platéia, uma plenária bem vestida e bem alimentada de ouvidos sensíveis, de olhos perspicazes, de vontades dignas, de gente decente, que não se envergonha de seu black tie, muito pelo contrário, usa-o com aprumo e elegância. Mas querendo contribuir para que todos possam vestir-se bem, comer bem, pensar bem, fazer o bem.

Circuito do saber

Venho de uma região que abriga 18% da água superficial doce desse nosso maltratado planeta e um terço das florestas tropicais que nele ainda restam. Nessas matas há a maior fonte de diversidade de vida, um volume de informações genéticas que ainda somos incapazes de dimensionar – e mais incapazes ainda de preservar para o necessário momento de estudo, revelação, controle e respeito. Apesar dessas duas grandezas básicas, em escala planetária, temos nos notabilizado como predadores justamente dessas que são nossas maiores riquezas.

Nenhum povo destruiu mais floresta, em tão curto prazo, como os colonizadores contemporâneos da Amazônia fizeram em apenas meio século. O desmatamento já consumado na Amazônia equivale a uma área duas vezes e meia maior do que o Estado de São Paulo, que concentra em seu território um terço da riqueza brasileira, ou 700 mil quilômetros quadrados. Na década de 1960, ela representava menos de 1% da Amazônia. Hoje, está chegando a 20%. É uma devastação terrível e um desperdício criminoso de recursos naturais, muitos dos quais nem chegaram a ser inventariados.

Não se lance culpa execrável sobre os colonizadores da Amazônia. Foi assim em toda história da humanidade. Depois de nos tornarmos Homo Sapiens, nos restringimos a ser Homo Agrícola no trato com a natureza. Nunca nos consolidamos como Homo Floresta. A história da expansão física da sociedade humana é a história da devastação de suas florestas. Nossa cultura é a do desmatamento.

Agora, porém, temos a oportunidade única de usar a experiência da destruição e os conhecimentos já acumulados no trato com a natureza para escrevermos na Amazônia uma história inédita, centrada na manutenção da floresta e não na sua extirpação. É a última oportunidade que a humanidade tem de fundar o Homo Floresta.

Esse ‘capítulo do Gênesis’ que o criador não escreveu, transferindo-o para a responsabilidade de sua criatura, ainda é possível. Mas a cada dia essa possibilidade se distancia do plano da realidade. Se ela for exeqüível, só o será com a participação dos homens de boa vontade do mundo inteiro. O capital já descobriu que a Amazônia é um lugar excelente para se reproduzir e se multiplicar. A Amazônia já faz parte do circuito internacional do capital, fornecendo produtos como os minérios, a madeira, algumas outras matérias-primas e, através de biombos, informações genéticas valiosíssimas. É hora de entrar em ação o circuito do saber, da informação, da solidariedade do conhecimento.

Novo, melhor, mais justo

Com tanta água, a Amazônia não sabe manejá-la. Vivemos agora o impacto de uma seca como nunca se imaginou que fosse acontecer. O abastecimento de água potável é um grande problema nas cidades. No campo, já há regiões onde a água só pode ser captada em grandes profundidades. O equilíbrio ecológico, que permite à floresta viver dela mesma, foi rompido e está ameaçado de destruição antes mesmo que tenhamos podido compreendê-lo.

Só compreenderemos tudo isso, tornando-nos parceiros verdadeiramente inteligentes dos caprichos que a natureza aplicou na Amazônia, se contarmos com a solidariedade dos povos que mais se adiantaram na produção científica e tecnológica, num projeto verdadeiramente humanista, generosamente partilhado. Só assim a Amazônia escapará ao destino que o bwana lhe traçou, condenando-a a ser uma vil repetição do que aconteceu na África e na Ásia.

Neste dia em que não pude vestir meu black tie e vir a esta bonita festa, na capital do mundo, atado que me encontro nas teias sórdidas montadas pelos que querem sufocar meu jornalismo crítico, comprometido em transformar a verdade na arma de libertação de que falava o profeta bíblico, mando-lhes o apelo das selvas, à maneira de Jack London, o grande jornalista de outras fronteiras no mundo: estendam suas pontes a este lado do mundo. Embarquem no desafio de construir uma civilização e uma cultura da floresta nesse Éden que o grande criador delegou à nossa criação – humana, demasiadamente humana. Que os ensaios de garranchos sejam substituídos por uma página bem escrita, na qual a inteligência crie um mundo novo, melhor e mais justo, como nós todos desejamos. Com black tie ou em mangas de camisa, não faz diferença. Muito obrigado.

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Voz de Washington

Sob o título ‘Jornalistas ameaçados de extinção’, o Washington Post publicou em 22/11/2005 o seguinte editorial:>

É a expressão dos perigos políticos, que os jornalistas encaram na maior parte do mundo, o fato de que 2 dos 4 ganhadores deste ano do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa não puderam vir a Nova York recebê-los. Um terceiro estará lá, mas não ousa ir para casa. E o quarto é, pela primeira vez na história dos prêmios, não um jornalista, mas um advogado da mídia de uma nação que basicamente não tem mais jornalistas livres para honrar. O CPJ, na escolha dos agraciados deste ano, não só destacou a quase inimaginável bravura dos repórteres e suas lutas buscando trabalhar em ambientes repressivos, mas também demonstra que, em muitos desses ambientes, os repressores estão ganhando, pelo menos por enquanto.

Um ganhador ausente será o chinês Shi Tao, de 37 anos, que está atualmente cumprindo pena de dez anos por ‘revelar segredos de Estado no exterior’. Os ‘segredos’ que ele publicou na internet foram do Departamento de Propaganda, dizendo aos jornalistas chineses como cobrir (ou não) o 15° aniversário do massacre da praça Tiananmen. Em outras palavras, Shi Tão foi preso por divulgar como o governo chinês impede outros jornalistas de fazerem seus trabalhos. O caso dele, infelizmente comum no atual regime de governo chinês, foi possível graças à cooperação entre a polícia chinesa e a companhia americana Yahoo, interessada no mercado chinês.

Outra ausência na cerimônia de hoje à noite será de Lúcio Flávio Pinto, 56 anos, um editor de jornal da região amazônica, no Brasil. Ele não está preso, porém os empresários corruptos e funcionários públicos locais sobre os quais ele escreve, têm colecionado processos contra ele, o que o torna impossibilitado de deixar o país; uma ausência no tribunal daria às autoridades uma desculpa para prendê-lo, de acordo com o CPJ. Enquanto isso, a uzbequistana Galima Bukharbaeva, 31 anos, que corajosamente divulgou em 13 de maio um massacre de civis na cidade de Andijan, não pode retornar à antiga União Soviética, ainda governada pelo seu antigo chefe comunista, temendo encarceramento ou outra represália. ‘Os últimos anos da União Soviética foram paraíso para jornalistas, comparado com o Uzbequistão atualmente’, diz Galima.

No Zimbábue, a advogada Beatrice Mtetwa, 47 anos, foi ao tribunal, várias vezes, em defesa dos jornais e jornalistas independentes, enquanto o ditador Robert Mugabe fecha os jornais, um por um, e exila os jornalistas. Beatrice já foi perseguida, presa e espancada, mas numa conversa, na semana passada, ela pareceu mais preocupada com a falta de liberdade de imprensa em seu país: ‘O governo pode fazer o que quiser, porque não há ninguém para divulgar o que ele está fazendo’.

Esse é o objetivo, obviamente, de ditadores desde Burma a Belarus. Porém, nesses países, assim como na China, Zimbábue e Uzbequistão, corajosos repórteres e editores, dentro de seus países ou exilados, continuam tentando fazer seu trabalho. Como ficará claro ao CPJ hoje à noite, eles merecem todo respeito e apoio daqueles que têm o privilégio de ter liberdade de imprensa em seus países.

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Voz de Nova York

Em matéria sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte, publicada com destaque na edição do dia 24 do New York Times, Larry Rohter registrou opinião que lhe dei a respeito da obra:

‘Tudo na Amazônia que consome muita eletricidade tem um grande componente chinês e está recebendo apoio oficial, embora o maior beneficiário vá ser claramente a China e não o Brasil’, disse Lúcio Flávio Pinto, autor do livro Hidrelétricas na Amazônia. ‘Os chineses não só vão investir uma quantia mínima, como vão transferir para a Amazônia os problemas de poluição resultantes’.

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Jornalista em Belém (PA), editor do Jornal Pessoal, em cuja edição nº 357 (segunda quinzena de novembro de 2005) este texto foi originalmente publicado; intertítulos do OI