A grande imprensa e o jornalismo premiado da televisão, como o Jornal Nacional, pouco ou quase nada comentaram o fato de que, há poucos dias, a Reforma Política manteve o voto obrigatório. Há um esquecimento das implicações internacionais dessa matéria que é bem conhecido, malgrado a ampla divulgação do notável artigo de El País Internacional, publicado há quase um ano, que consagrou o aspecto universal do entendimento sobre o regime eleitoral em relação ao Brasil. Nos países mais desenvolvidos do mundo, nos mais modernos e nas democracias mais sólidas, o voto político é facultativo. Admitir o voto facultativo é uma das características de uma democracia real e não somente virtual, é o que protege os maiores espaços de liberdade dos cidadãos (link: http://internacional.elpais.com/internacional/2014/08/04/actualidad/1407155206_865981.html)
Sobre a pergunta do que acontecerá com a atual legislação eleitoral draconiana, em face da recorrência do voto obrigatório ora consagrado em primeira instância, ninguém diz nada, supondo que o esquecimento terá boa aplicação, e tudo ficará como está.
Acontece que essa legislação já foi contestada, com a disposição agravante de ferir os direitos humanos ao estabelecer a sobreposição de sanções contra o indivíduo que, como eleitor, não comparece para votar. Nem mesmo houve a mínima consideração em relação ao posicionamento do projeto de lei do senado, que defende a diminuição do elenco de tais sanções, em razão de ofender o princípio de cidadania. E o fez de modo justo. Naquela mentalidade punitiva, o eleitor faltoso é como sabe exageradamente equiparado ao nível do desertor e do sonegador, portanto uma figura rebaixada do seu âmbito específico.
É claro que a disposição do senado, por sua vez, vale menos como propósito reformador e mais como salvaguarda em face do Article 25 International Covenant on Civil and Political Rights – ICCPR (Artigo 25 da Convenção Internacional Dos Direitos Civis e Políticos), em epígrafe, de que o Brasil é signatário. O projeto ajustador está encostado nas prateleiras. Sem embargo, do ponto de vista da convenção internacional, deve ser objeto de crítica o pensamento persecutório e a atitude punitiva praticada por autoridade legal que, ao invés de revalorizar os direitos civis e políticos internacionalmente protegidos, como deveria fazê-lo, extrapola sua competência e os rebaixa de seu âmbito, como acontece no país.
O compromisso com o regime democrático
O argumento de que a livre expressão da vontade dos eleitores está assegurada no interior da cabine de votação é falacioso na medida em que os procedimentos de votação não só pressupõem quanto implementam as sanções que ameaçam os votantes contra o suposto absenteísmo político: o acesso a urna é sancionado e o eleitor constrangido de maneira nada sutil e bem burocrática.
Mediante a exigência impeditiva de demonstrar comprovação de comparecimento anterior como condição sine qua non, o voto na cabine é exercido em dois planos prejudiciais sobre a liberdade do ato de votar: (a) como prêmio por ter cumprido a ordem draconiana; (b) como salvo-conduto diante do impedimento posto em perspectiva, futuro.
Desta forma, se entende bem que o votante, em seu comparecimento, é forçado em conformar-se, concordar e aprovar a ideologia antiabsenteísta para acessar a urna de votação. A referida exigência de demonstrar comprovação de comparecimento anterior afirma uma razão de ideologia republicana radical: um paradoxo que termina por trazer ao âmbito da República e seu sistema representacional o princípio monarquista de obediência, afirmado em detrimento do aludido princípio de cidadania. O antiabsenteísmo revela-se uma imposição ideológica devidamente tipificada dentre as restrições não razoáveis do voto livre que são repelidas pelo mencionado Artigo 25 da ICCPR, em epígrafe.
Em face de tal situação embrulhada que restringe a participação na democracia e proclama os eleitores como incapazes, pergunta-se: será que o compromisso com a sustentação de um regime democrático deve depender exclusivamente do desempenho satisfatório dos representantes?
Educação para a cidadania
Mas não é tudo. Quando se defende o princípio de cidadania em relação ao regime eleitoral há que ter em vista a juventude e o eleitor novato. Se o argumento de que o voto obrigatório educa é falacioso, como foi constatado, devem cogitar uma alternativa. Neste sentido, o indivíduo que se registra para obter seu título de eleitor deveria participar de um programa de capacitação do eleitor, caso isso seja legalmente possível.
Na situação atual de sua participação, o jovem faz seu registro eleitoral em uma conduta burocrática, e permanece largado como estava antes. A adoção do voto livre deve ser encaminhada como um procedimento que mudará tal situação no Brasil. Dar-se-á ao jovem a oportunidade de perceber sua participação na história eleitoral mediante simples capacitação que transformará a conduta burocrática em ato jurídico político. A obtenção do registro deve valer como uma passagem dos círculos familiares e psicológicos para o ambiente mais complexo da cidadania, cumprindo a exigência republicana histórica de instrução e educação do eleitor novato.
Desta forma, além de ser obrigado unicamente a se alistar na justa idade e a votar em primeira vez, e como condição para receber e entrar em posse de seu título, o jovem deveria ser obrigado a comparecer e participar, em certa carga horária, de reuniões ou encontros de capacitação, em pequenos grupos, para ler e comentar uma apostila com instrução sobre o voto [livre], sobre as eleições e o papel do eleitor no funcionamento do regime democrático representativo, e sua importância para as políticas públicas.
Para desenvolver tais “oficinas de cidadania”, a instância controladora não precisaria aumentar custos para alcançar essa finalidade. Bastaria reaproveitar os enormes recursos disponíveis e despendidos nos cartórios e tribunais eleitorais, que se encarregariam da execução desse programa de capacitação sob a supervisão do Ministério da Educação.
A campanha das Diretas Já
Os céticos opinam que assumir a causa da Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Convenções Internacionais que preconizam o voto livre (free voting), e a causa das Nações Unidas em favor da educação para os direitos humanos e a democracia, não são motivos suficientes para a mudança do regime eleitoral e adoção do voto livre. Reclamam que seria necessário um motivo político mais forte para isso que, em seu esquecimento, afirmam não existir, enlaçados que se encontram na mentalidade do papel moderante das alternativas prévias, de que provém o voto forçado.
Pelo contrário, o motivo político para o voto livre existe sim e data de 1983/84, com a grande mobilização do eleitorado na histórica campanha das Diretas Já, marco fundamental da abertura democrática. Aliás, o voto livre deveria ter sido instituído nos anos 80/90; houve projetos no Congresso Nacional que sustentaram essa mudança.
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Jacob (J.) Lumier é sociólogo