Finalmente, a Comissão Parlamentar de Inquérito instituída pela Câmara Federal com o objetivo jurídico de investigar interceptações telefônicas clandestinas ouviu, no último dia 8 de abril, o delegado Protógenes Queiroz. Durante o depoimento, os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ) e Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), presidente da CPI, por pouco não chegaram às vias de fato; bateram boca depois que a comissão exibiu em um telão um resumo das contradições apresentadas pelo deputado-delegado com o título ‘Onde está a verdade?’ Uma peça, viu-se depois, claramente direcionada a desacreditar o personagem central, que seria ouvido por longas horas na CPI presidida pelo deputado Marcelo Itagiba.
É impressionante a capacidade que as instituições têm de apequenar sua importância – no caso, uma importância constitucional, que é a existência das CPIs como instrumento legítimo para que o povo, através de seus representantes eleitos, investigue o que sinta necessitar de claridade. Mas não podemos descartar que em uma sessão da CPI muitas vezes o que menos importa é o seu objeto e o seu trabalho para alcançar seus objetivos. Existe uma luta – ridícula – pelos holofotes e as cenas que em algumas horas serão transmitidas nos telejornais em horário nobre. Existe interesse em oferecer aspas (frases de efeito ou não) para os jornais que circularão no dia seguinte e que sairão nas revistas semanais do fim de semana.
Existem, ainda, outros interesses. Econômicos, por exemplo. Ainda mais nesse caso, em que o investigado não é exatamente o delegado Protógenes Queiroz, e sim, o banqueiro Daniel Dantas. O primeiro é simples assalariado, funcionário de carreira de uma instituição policial. O segundo freqüenta listas e listas que o reputam como um dos homens mais ricos do Brasil, como dono de um poder de influência junto aos poderes da República jamais visto no país desde meados de novembro de 1889.
Fatos dão robusteza ao trabalho
A cobertura da participação do delegado Protógenes na CPI foi, no mínimo, parcial. E parcial contra o delegado. As manchetes dos grandes jornais já apontavam para a linha a ser seguida nos textos que transbordariam da internet para as edições impressas: como desacreditar o delegado da Polícia Federal Protógenes Queiroz e como desvelar motivações ocultas em sua conduta atual, após haver sido indiciado em processos da própria PF.
A Folha de S.Paulo estampou primeiramente em sua versão virtual, e logo na edição impressa de quinta-feira (9/4), matérias com os títulos: ‘Na CPI dos Grampos, delegado se cala sobre suas contradições’ e ‘Protógenes visa carreira política, diz corregedoria’. Já O Globo deu manchete assinada pela PF: ‘Relatório da PF diz que Protógenes agiu pensando em carreira política’. O que a imprensa tem deixado à exposição do sol e da chuva é o fato mais comezinho que a essa altura já não parece ser tão claro assim: o investigado na Operação Satiagraha atende pelo nome Daniel Dantas, e não pelo nome Protógenes Queiroz.
E por mais que esse ou aquele procedimento mereça reparos e mesmo nulidade, o fato é que o relatório oficial da operação e aquele mais recente, a sentença do juiz Fausto di Sanctis, e outras peças jurídicas dão robusteza ao trabalho de Protógenes. É só acessar os documentos em sites da Polícia Federal, da Justiça Federal, do Ministério Público Federal e até aqueles mantidos por alguns expoentes do colunismo político, como o é o muito acessado blog do jornalista Josias de Souza.
A César o que é de César
Voltando ao tema central do texto. Assisti à segunda metade do depoimento e algo me chamou a atenção. A serenidade do depoente. Uma serenidade com força de convicção tão grande que era bem possível que logo se materializaria no ar. Alguns deputados carregavam na voz seu desagrado com o chefe da Satiagraha, chegando mesmo às raias da provocação. Poucos inquiridores demonstraram alguma simpatia com seu trabalho e esses tinham o dom de conseguir respostas mais elaboradas do depoente.
É fato que o delegado Protógenes esteve imperturbável. Nem de longe poderia lembrar outros célebres depoentes em CPIs: não tinha a sonolência mais que protocolar demonstrada em soporíferas sessões por Delúbio Soares e muito menos o passionalismo de Roberto Jefferson quando confidenciava a uma platéia quase em transe que a presença do então ministro José Dirceu provocava-lhe os instintos mais primitivos. Existia uma certa autoridade moral no seu depoimento que, embora muito divulgado, não foi tão monossilábico assim.
Até teses o delegado-depoente conseguiu desenvolver. Exemplo? Aquela que nos informa que vivemos no Brasil um clima de instabilidade jurídica. Deu vários exemplos acerca da própria Operação Satiagraha. Demonstrou à larga as muitas guinadas que vêm caracterizando essa operação. Não deixei de recordar a outra tese defendida pelo ministro do STF, Gilmar Mendes, logo nos estertores dos dois mandados de soltura concedidos ao banqueiro Daniel Dantas, de que se instalara no Brasil uma espécie de ‘Estado policial’. Não deixa de ser irônico constatar duas teses tão antípodas quanto essas. Um membro da Suprema Corte de Justiça do Brasil fala sobre Estado policial e um membro graúdo da Polícia Federal fala de instabilidade judiciária. A César o que é de César. Os dois defenderam seus pontos de vista cobertos de legitimidade, pois cada um enfocou o tema por seu prisma, muitas vezes, muito peculiar. Restou aos cidadãos o direito de emitir seu veredicto: quem está com a razão?
Valores envolvidos são astronômicos
Também não era de ficar modulando a voz e nem mostrando maior familiaridade com o ambiente da CPI à medida que transcorria a sessão de mais que quatro horas. Até ao se referir diversas vezes ao banqueiro Daniel Dantas como o ‘banqueiro condenado’, ainda nessas ocasiões seu semblante não lhe traía qualquer emoção. A imprensa passou ao largo de todas essas considerações. O interesse podia ser qualquer um, menos jornalístico. Por que a tese do Estado de instabilidade jurídica não foi assunto a ser abrigado em editoriais, caderno de debates, colunas de opinião? Nem nota mereceu em coluna de notas, bem ao estilo picadinho.
Por que o depoente-delegado vira e mexe fazia questão de verbalizar qual era o objeto daquela CPI? Não seria o caso de a cobertura da sessão chamar a atenção para o fato? Afinal, por acaso, seria comum tal atitude por parte de um depoente – ficar lembrando e relembrando a missão e o foco daquela instância legislativa de investigação independente? E o powerpoint do deputado Marcelo Itagiba não estaria a merecer considerações adicionais? Tal procedimento não cria de antemão um certo clima beligerante, desejo muito à flor da pele de chamar logo o convidado para a briga?
Ora, se a mais amada dentre todas as coisas é a justiça, já nos ensinavam pensadores do século 19, não seria o caso de se criar um ambiente propício à busca da justiça? E, até mesmo buscar uma resposta ao tema-título do cândido audiovisual – ‘Onde está a verdade?’ –, neste caso não colocando sob suspeição apenas as ações e palavras do delegado Protógenes Queiroz, mas também as ações e palavras de Suas Excelências da Câmara dos Deputados diretamente envolvidos com o objeto da CPI.
A impressão que fica é que ainda estamos muito distantes da cobertura ideal a operação de tal envergadura. Entendo ser esta a mais importante CPI criada no Brasil desde que esse instituto passou a existir à égide do Poder Legislativo. Os valores envolvidos são astronômicos. Suas repercussões na vida financeira nacional também. Os personagens envolvidos são pesos-pesados, vão da cena política ao habitat jurídico e regressam, sempre com maior intensidade, ao ambiente financeiro. De qualquer forma, é basilar, e oportuno, o conceito escandido pelo delegado em seu depoimento à CPI: ‘Quem produz prova para bandido, bandido é.’
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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo