Reporto-lhes um sério erro do jornalista Larry Rohter, que publicou matéria na edição de 20 de junho do The New York Times, com ampla repercussão no Brasil e no mundo, na qual acusa o médico brasileiro Hilton Pereira da Silva de ter coletado e vendido amostras de sangue de índios Karitiana por meio da internet.
A notícia é tão antiga quanto falsa. Foi publicada pela primeira vez pela Folha de S. Paulo há uma década. Comparando, aliás, o texto do NYT com o da Folha, de 1997, e outra notícia publicada no jornal Página 20, em 2005, observam-se os mesmos erros, a mesma seqüência de (des)informações, o mesmo formato.
Em 1996, Hilton acompanhava, na condição de antropólogo, uma equipe de cinegrafistas britânicos que filmavam um documentário entre os Karitiana. Entretanto, sendo ele também médico, viu-se diante de uma emergência e prestou atendimento aos índios. Tudo absolutamente conforme imperativos legais (art. 135 CP) e éticos (arts. 57, 58 Código de Ética Médica) de sua profissão. Teve, entretanto, por dez anos, sua honra corroída pela má imprensa e por más autoridades, que o acusaram de ter vendido, através de laboratórios estadunidenses, amostras de sangue Karitiana e Suruí. Sem oportunidade de defesa, vítima de pré-julgamentos, o médico, biólogo, antropólogo era, em milhares de sites na internet, um ‘biopirata’.
Danos pessoais
Apenas em 28 de março de 2006, com o relatório final da CPI da Biopirataria, alguns equívocos espantosos começaram a ser publicamente esclarecidos: o sangue à venda fora coletado por pesquisadores norte-americanos vinte anos antes, a trajetória desse material estava fartamente descrita em diversos artigos científicos, e as amostras vinham sendo vendidas antes de Hilton visitar os Karitiana – e ele jamais esteve entre os Suruí; era uma afronta à lógica espaço-temporal vinculá-lo à venda e uma extremamente danosa confusão associar atendimento médico a pesquisa genética ou conduta ilegal. Larry Rohter ignorou todas estas informações – públicas – produzidas na última década e ‘requentou’ um grave equívoco.
A seguir, encaminho a carta enviada à redação da Folha de S.Paulo, que publicou a íntegra da matéria do NYT no Brasil, até agora sem resposta. Peço-lhes atenção para este caso, pois a conduta de Rohter e daqueles que reproduzem sua notícia causa danos pessoais e profissionais a Hilton e sua família, induze autoridades e indígenas a outros erros e, afinal, prestam um desserviço à sociedade, divulgando informações atabalhoadas e incorretas.
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Carta à Folha de S.Paulo
Belém (PA), 26 de junho de 2007
Prezados Senhores,
Em 21 de junho deste ano, o jornal Folha de S. Paulo reproduziu a matéria ‘Índios da Amazônia recorrem contra a venda de seu DNA’ (‘Giving Blood, Getting Nothing’, no original) do jornalista Larry Rohter, correspondente do NYT, acusando o médico brasileiro Hilton Pereira da Silva de envolvimento com um caso de biopirataria.
Muitos são os erros cometidos pelo sr. Larry Rohter e endossados pela Folha, a saber:
1) A notícia ‘Giving Blood…’ é antiga. As primeiras reportagens sobre a ‘venda de sangue indígena’ são ainda de 1996/1997. O jornalista norte-americano não somente não traz nenhum fato novo, como ignora uma gama de informações – todas elas públicas – já produzidas nesta última década: duas CPIs debruçaram-se sobre este assunto, uma Ação Civil Pública foi julgada, inúmeras entrevistas e artigos esclareceram a total desvinculação do médico brasileiro com qualquer comercialização de material biológico, direitos de resposta foram concedidos em jornais do Brasil e do mundo;
2) A própria Folha, em junho de 1997, noticiou o fato e, em seguida, concedeu direito à réplica ao Dr. Hilton Pereira da Silva (Anexo1);
3) ‘Em 1996, uma nova equipe os visitou, prometendo remédios caso eles doassem mais sangue…’ Em primeiro lugar, não se trata de uma ‘nova’ equipe, mas de uma completamente diversa equipe. Enquanto o grupo liderado pelo Dr. Black tinha o propósito de coletar material para pesquisa, a equipe de 1996 tinha como objetivo produzir um documentário (Into the Unknown: the Giant Sloth, Canal Discovery, 1997) entre os Karitiana. Assim, frise-se, não houve coleta de material para pesquisa em 1996.
Hilton Pereira da Silva acompanhava, na condição de antropólogo, os cinegrafistas britânicos que filmavam o documentário. Entretanto, sendo ele também médico, viu-se diante de uma situação de emergência, em função do precário estado de saúde dos índios Karitiana, e prestou-lhes atendimento por solicitação destes.
Não houve em 1996, uma relação transacional entre sangue e oferta de medicamentos; houve a solicitação de atendimento médico, o que foi feito, voluntária e gratuitamente, em circunstâncias emergenciais;
4) ‘Quando a equipe entrou na reserva, porém, um médico brasileiro, Hilton Pereira da Silva, e sua mulher começaram a conduzir pesquisas médicas sem autorização…’
Por solicitação dos Karitiana, após as filmagens do documentário, Dr. Hilton prestou atendimento médico emergencial , o que é totalmente diferente de ‘pesquisa médica’, conforme insinuado na reportagem. O sangue coletado pelo médico destinou-se exclusivamente à tentativa de estabelecer um diagnóstico mais específico de doenças como, por exemplo, anemias, hepatites, doenças do colágeno, doenças sexualmente transmissíveis, HIV, doenças de origem genética , sendo este procedimento propedêutico corriqueiro na prática clínica (prática inclusive familiar aos próprios Karitiana para investigação de malária, que é endêmica na região), e este material nunca saiu do Brasil: esteve de 1996 a 1998 (quando foi requisitado e entregue às autoridades de Rondônia) depositado na Universidade Federal do Pará.
Ademais, a pessoa referida como esposa do Dr. Hilton não é profissional de saúde, nem tampouco é sua esposa. Ela participou do documentário e desenvolveu apenas atividades lúdicas com as crianças.
Finalmente, sobre a necessidade de autorização da Funai, crê-se que era desnecessária naquele momento, pois: a) configurava-se uma emergência médica, e o atendimento do médico era mandatório frente o imperativo legal do art. 135 do Código Penal e as recomendações éticas dos arts. 57, 58 do Código de Ética Médica; b) não sendo mais os índios ‘tutelados’, admite-se que sua solicitação por atendimento é de todo válida e suficiente; c) o chefe do posto da Funai foi consultado e concordou com o pedido dos Karitiana.
5) ‘Se alguém adoecer, enviaremos remédios, muitos remédios.’ Em 1996, não houve promessa de futuros envios de remédios, nem poderia haver, pois esta é uma atribuição do Poder Público.
6) ‘Eles tiraram sangue de quase todo mundo, incluindo as crianças. Mas, assim que conseguiram o que queriam, não nos mandaram remédio algum.’ Em 1996, coletou-se sangue apenas das pessoas que mais necessitavam para complementação de diagnóstico. Seria uma impossibilidade ‘tirar sangue de todo mundo’, pois Dr. Hilton não estava preparado para atender toda uma etnia, dispondo somente de um kit de emergências para si e para seu grupo, equipamento que carrega consigo sempre que viaja a campo.
7) ‘Em comunicado, Pereira da Silva diz que explicou os propósitos de sua pesquisa ‘em linguagem acessível’ e que prometeu que ‘quaisquer possíveis benefícios que resultem do trabalho com o material recolhido reverterão integralmente às pessoas que o doaram’.’
Dr. Hilton jamais esteve em contato com os senhores Larry Rohter ou Paulo Migliacci, até porque não foi procurado por nenhum dos dois.
Dr. Hilton também não emitiu qualquer comunicado nos termos apresentados. Em carta aos Karitiana datada de 20 de fevereiro de 1997, o médico afirma que ‘da parte dos pesquisadores da Universidade Federal do Pará, que correntemente detêm as amostras de sangue Karitiana que eu coletei, está sendo desenvolvido um documento que garantirá que qualquer benefício econômico ou outro advindo por ventura da pesquisa com material biológico, de qualquer origem, seja repassado na sua totalidade para a comunidade ou grupo de onde o material foi coletado. Desta forma, não haverá qualquer perigo que material biológico coletado para fins de pesquisa seja destinado a objetivos comerciais agora ou no futuro’.
O documento mencionado estava sendo elaborado pelos pesquisadores daquela Universidade, para todas as amostras das quais dispunham – não especificamente às Karitiana –, tratando-se de documento institucional e não de sua autoria.
Por todo o exposto, solicita-se direito de resposta ao médico brasileiro, amparado neste pleito pela Constituição da República de 1988, art. 5 o, V e X, in verbis:
‘V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.’
Ademais, a reprovabilidade da lesão à honra foi contemplada também no Código Civil Brasileiro, art. 186:
‘Art.186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.’
E ainda, especificamente, a Lei de Imprensa, lei n o 5250/1967, estipulou a responsabilidade reparatória/compensatória daqueles que, no exercício jornalístico, infligem dano a outrem. É neste sentido a dicção do art.49, I e II, ipsis verbis:
‘Art. 49. Aquele que no exercício da liberdade de manifestação de pensamento e de informação, com dolo ou culpa, viola direito, ou causa prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar:
I – os danos morais e materiais, nos casos previstos no art . 16, números II e IV, e no art. 18, e de calúnia, difamação ou injúrias;
II – os danos materiais, nos demais casos.’
Notícias atabalhoadas que desconsideraram as apurações feitas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, em 1997 e 2005, e a farta documentação existente, em via impressa e eletrônica, hábil a provar a licitude da conduta do médico, não cumprem a finalidade da imprensa livre.
O sr. Larry Rohter – e a Folha, ao reproduzir a matéria – não escutou o médico ofendido, nem tampouco ponderou sobre o constrangimento que causaria ao publicar informações absolutamente incorretas e frases truncadas.
Assim, reitera-se o pedido de direito de resposta nos termos da declaração ‘Trabalho Médico Ético e Não Biopirataria’ (Anexo2). Solicita-se ainda que seja acusado o recebimento desta correspondência e que se indique o endereço URL e os dados do jornal impresso quando da publicação dos esclarecimentos devidos. Atenciosamente,
Anna Cruz de Araújo Pereira da Silva OAB/Pa 12.530
Uma cópia deste e-mail foi enviada à redação da Folha em forma de carta registrada.
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Advogada, Belém, PA