‘Na verdade, é mesmo ocasião para alguma tristeza em face do número elevado de mortos e da convicção de que a situação a que agora se chegou é o resultado de desgovernos anteriores e da crescente mafialização da vida pública. Este fenômeno abrange a composição de partes significativas de câmaras legislativas, a corrupção policial, a fragilidade do Poder Judiciário, a disseminação das milícias (potencialmente mais perigosas do que o narcotráfico) e a escandalosa indiferença da própria sociedade ao consumo de drogas’ (Muniz Sodré, ‘Reality show em tempo real‘).
Acordei em um final de tarde, em dezembro de 2010, com as vozes dos ‘correspondentes de guerra’ trazendo relatos sobre as razões ou causas dos acontecimentos da ‘guerra’ no Morro do Alemão (Rio de Janeiro).
Dos relatos feitos a uma objetiva e atenta jornalista, pude entender que a crise do Morro do Alemão derivaria de ações perpetradas em nome de facções criminosas, concatenadas segundo a lógica tático-operacional de alguma espécie de ‘estado-maior criminoso’. Nessa minha deduzida ‘metáfora organizacional’, as facções criminosas e seu ‘cérebro incendiário’ estariam constituídos por marginais do Morro do Alemão, associados em uma habitual aliança maldita com membros corruptos das polícias cariocas. Tais policiais constituiriam a chamada ‘banda podre’, associação lucrativa, inteligente e coordenada com um narcotráfico não menos inteligente e taticamente organizado. Essa associação simbiótica e estratégica militaria inteligentemente em prol de uma espécie de ‘império do mal’. O mesmo modelo de causalidade, inferindo dos relatos dos ‘correspondentes de guerra’, poderia estar replicado em outros domínios da criminalidade alhures, tendo em vista situações bastante semelhantes já instaladas em outros locais, todavia em ebulição, antes de explodir como no Rio de Janeiro.
O processo de pacificação
É de lastimar que, segundo o que entendi dos ‘correspondentes de guerra’, a ‘banda virtuosa’ policial, ao contrário da outra (‘podre’), não teria inteligência e capacidade de organização e coordenação do mesmo nível da ‘outra metade’ que lhe faria simetria negativa na aliança com o ‘império do mal’. É a conclusão óbvia, já que a competência do ‘império do mal’ fez com que ele prevalecesse sobre a facção do bem. Ficariam assim corroborados os supostos mitos da proatividade do mal e da timidez do bem, nessa bizarra situação no front, do que seria possível inferir do relato dos ‘correspondentes’.
Resta saber se no Brasil não teríamos também um ‘Serpico’ que, tal qual o virtuoso personagem da então corrupta polícia da Nova York do século passado, se dispusesse a ‘vir a público’, ‘dando nome aos bois’ dessa aliança ‘banda podre & facções criminosas’. Talvez assim uma eventual CPI em Brasília pudesse finalmente investigar e fazer desmantelar as forças do ‘império do mal’. Mas certamente isso é desnecessário, já que os próprios ‘correspondentes’ poderiam realizar de maneira competente a gestão da segurança pública, no Day After da crise do Morro do Alemão, trazendo e implementando as soluções que tão bem devem conhecer, como é de supor pelo que apontam precisamente acerca da gênese da crise atual e que deságua na situação do front da segurança pública no Rio de Janeiro.
O meu acordar nessa tarde de dezembro de 2010 teria sido tomado de pânico com o relato catastrofista dos ‘correspondentes’, não fosse outra visão da crise, também veiculada pelo Globo News, trazida a público nas palavras do governador do Rio de Janeiro e do ministro da Defesa. De maneira como que desconectada das ‘notícias do front‘ relatadas pelos ‘correspondentes’, as duas autoridades foram específicas e positivas na perspectiva futura da ‘gestão da crise’. O governador reafirmou a implementação das políticas estaduais de segurança pública materializadas nas Unidades de Pacificação Policial (UPP) já instalas em algumas comunidades cariocas. Já o ministro da Defesa apontou as medidas objetivamente tomadas com a participação das Forças Armadas (FA) no cerco do Morro do Alemão em novembro e a extensão da atuação dessas mesmas forças na consolidação de um processo de pacificação de médio prazo a ser executado em seguida.
Transparência e cidadania
É interessante que apenas na segurança pública possa existir uma ‘guerra em curso’ com a ‘participação traidora’ dos próprios operadores do setor que ‘passaram para o outro lado’. Na crise da saúde pública parece que não há traidores entre os profissionais da área; tampouco na da educação são denunciados militantes do setor que resolveram ‘trair a própria causa’. Parece que só os policiais do país são genuinamente corruptos… E é não menos interessante, para não dizer ‘surrealista’, que os policiais da ‘banda virtuosa’ permaneçam calados, ainda que sob o ônus que supostamente pesa sobre eles e suas respectivas instituições…
É de imaginar como essa ‘guerra’ da segurança pública vai terminar. Se os correspondentes estiverem enganados pelas lentes poderosas de seus binóculos, quem sabe a pacificação do Rio de Janeiro aconteça, ou então, a estarem corretos, como o Rio de Janeiro e o Brasil enfrentarão um eventual desastre da segurança pública, tanto por ocasião da Copa do Mundo de Futebol de 2014 quanto na realização dos Jogos Olímpicos do Brasil em 2016?
Sem mais ironias, parece bizarro que algumas opiniões sobre a crise da segurança pública do Rio de Janeiro (instalada, em maior ou menor grau, em outros grandes centros do país), possam identificar as causas da crise nas próprias polícias. Pior ainda é a premissa (i)lógica que isso implica, de que as polícias são entidades unanimemente responsáveis e representativas de uma ‘cultura da corrupção’ que começa e termina nelas mesmas, como se essa suposta cultura da corrupção policial existisse na ausência de uma cultura maior e dominante. Ou seja, as polícias existiriam em uma espécie de ‘vácuo cultural’, com elas plasmando em ‘ofício corrupto’ a articulação e o poder maior, de fato e de direito, de todos os três poderes e em todas as esferas políticas… Vale citar Filgueiras (2009):
‘No que diz respeito à corrupção, constata-se que não basta uma mudança do aparato formal ou da máquina administrativa do Estado propriamente dita, mas reforçar os elementos de uma cultura política democrática que tenha no cidadão comum, feito de interesses, sentimentos e razão, o centro de especulação teórica e prática para uma democratização informal da democracia brasileira. Os avanços das reformas da máquina pública, nas duas últimas décadas, são inegáveis, com o reforço da transparência. Contudo, falta, à democracia brasileira, um senso maior de publicidade, pelo qual a transparência esteja referida a uma ativação da cidadania, à accountability e à participação, sem os quais os esforços de combate e controle da corrupção ficarão emperrados em meio a uma cultura política (grifo nosso) tolerante às delinquências do homem público‘ (FILGUEIRAS, Fernando. ‘A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social’. Opinião Pública, Campinas, v. 15, n. 2, Nov. 2009. Disponível aqui).
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Professor, Brasília, DF