Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notícias de uma greve particular

Em audiência de conciliação no Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da capital, realizada no dia 13 de agosto, um acordo entre as entidades representativas da polícia civil do estado de São Paulo e o governo suspendeu a greve da categoria até quarta-feira, dia 20, quando a administração deverá apresentar propostas de solução para o impasse.

A paralisação, que durou somente sete horas (das 8h às 15h do mesmo dia 13), seria resultado da ausência de diálogo do governo sobre diversas demandas da categoria, como reajustes salariais, eleição direta para a cargo de delegado-geral e transferência de postos de trabalho somente pela vontade do policial ou promoção, e não por determinação de superiores.

A mediação do conflito pelo Poder Judiciário tem benefícios evidentes, como sistematizar e tornar mais precisas as propostas de ambos os lados, orientar para o acordo, além de estimular o diálogo, antes inexistente. No entanto, mesmo que ‘judicializar’ o conflito o torne ‘oficialmente público’, seu confinamento a uma sala do TRT inevitavelmente afasta – ainda mais –do debate a sociedade civil interessada.

Violação de direitos

Dizemos ‘ainda mais’ porque não só na quinta-feira (14/08) – quando a delegada Bárbara Travassos, plantonista do 1º Distrito Policial de Diadema, foi impedida pelo delegado seccional da cidade, Ivaney Cayres de Souza, de estampar em sua roupa adesivos ‘pró-greve’ –, mas especialmente no dia 2 de agosto, um ‘vídeo-protesto’ das entidades representativas da polícia civil sobre a paralisação teve sua veiculação em TV proibida por decisão judicial, sob o fundamento de que causaria pânico na população.

De fato, a liberdade de expressão (como todos os direitos) não é uma garantia absoluta. As hipóteses de seu abuso estão contidas no art. 16, I da Lei de Imprensa (causar ‘alarma social’) e no parágrafo 4º do art. 13 do Pacto de San José da Costa Rica (colocar em risco a ‘segurança nacional’ ou a ‘ordem pública’). E, no caso de greve, o uso da liberdade de expressão para ‘persuadir ou aliciar os trabalhadores a aderirem à greve’ está condicionado ao ‘emprego de meios pacíficos’ e a não ‘violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem’ (art. 6º da Lei 7.783/89).

Porém, no conflito entre o aventado abuso da liberdade de expressão pela possível provocação de ‘perturbação da ordem pública ou alarma social’ e o direito fundamental da entidade de comunicar sua insatisfação em relação à ausência de diálogo com o governo do Estado (art. 13 do Pacto de San José da Costa Rica; art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos; art. 5º, incisos IX e XIV da Constituição Federal de 1988), deve prevalecer este último, visto que os danos ao debate democrático e à livre circulação de idéias na esfera pública, causados pela proibição da expressão e do fomento de um debate público sobre temas de suma importância à sociedade, são claramente maior violação de direitos fundamentais do que aquele gerado pela (deveras improvável) possibilidade da ocorrência de um alarma social.

Espaço aberto e gratuito

Em contrário, a veiculação do vídeo (ver aqui), que contém três informações claras e importantes – como dificuldade ou ausência de diálogo das entidades de classe com o governo do Estado, baixos salários da polícia civil e possibilidade de greve –, mais provavelmente geraria um aumento do debate e da conscientização da opinião pública a respeito desses problemas do que uma perturbação da ordem ou alarma social.

Enfim, o que esse caso revela são duas importantes questões a serem enfrentadas pelos defensores da liberdade de expressão, dos direitos da comunicação e do aumento da participação e da qualidade do debate público no Brasil: primeiramente, o fenômeno da ‘judicialização da política’ não pode operar por uma supressão do debate, proibindo sua veiculação na grande mídia e tornando-o assunto somente de experts do judiciário e de representantes legais das partes diretamente envolvidas. Isso configura claramente uma violação de direitos de comunicação da sociedade civil interessada.

Em segundo lugar, a específica proibição do vídeo revela a necessidade (e urgência) da existência de um espaço aberto, publicamente regulamentado e gratuito na televisão brasileira para a livre manifestação de cidadãos e entidades de classe que queiram fomentar debates públicos a respeito de questões relevantes à sociedade (sujeitos, obviamente, aos limites da liberdade de expressão e dos direitos de comunicação).

Enfraquecimento do debate público

Isso, possivelmente, levará a um gradativo uso comedido e ponderado da liberdade de expressão dos interessados, que não precisarão pagar grandes quantias para fomentar um debate na mídia (noticiou-se que as entidades representativas da polícia civil teriam gasto R$ 300 mil para veicular o vídeo em horários comerciais da Record, Bandeirantes e Globo), ou criar vídeos ou imagens com o apelo visual do referido, ainda que não se tenha configurado um excesso da liberdade de expressão.

Esses relatos e considerações sobre o caso da paralisação da polícia civil demonstram como o Estado e a mídia televisiva ainda parecem trabalhar numa lógica de enfraquecimento do debate público sobre questões relevantes à sociedade, o que é suficiente para podermos afirmar: estamos diante de ‘notícias de uma greve particular’.

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Advogado, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e mestrando em Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da USP