No domingo (20/1), editorial da Folha de S. Paulo intitulado ‘Canudo de papel’ [ver abaixo] pretendeu denunciar algo ‘esdrúxulo e preocupante no ensino superior brasileiro’ – a distribuição ilógica de alunos pelos diversos cursos.
Os dados constam do Censo da Educação Superior de 2006. Foram divulgados em dezembro de 2007 pelo Inep e estão disponíveis na web. Dados que expressam tendências e devem ser analisados à luz de outras informações. Os números ajudam a pensar, mas precisam ser devidamente interpretados. O que parece ilógico ou absurdo pode, então, tornar-se compreensível.
O editorialista considera preocupante haver ‘dez vezes mais estudantes matriculados em cursos para a formação de professores de literatura do que para o ensino de física e química, áreas didáticas de importância que deveria ser equivalente’. É verdade. Mas é preciso fazer algumas ponderações.
O fato de que haja cerca de 150 mil futuros professores de letras (englobando o estudo da nossa língua e da literatura brasileira, bem como o de línguas e literaturas estrangeiras) não significa que todos esses vão trabalhar no ensino médio. Cursos livres, editoras e outros serviços absorvem esses profissionais. E muitos deles o que querem mesmo é ser professores de tantas outras centenas de futuros alunos universitários da área de letras, e não só de letras.
A sala de aula do ensino médio não é tão atraente. Se o Censo diz que são 13 mil futuros professores de química, não adivinha quais deles irão realmente lecionar. A situação pode ser bem pior do que a Folha imagina. Por outro lado, o Censo revela que há 25 mil pessoas estudando Química (química de alimentos, química industrial, química tecnológica), em cujos planos estará talvez o magistério superior… como biscate que ajude no orçamento.
Canudo e emprego
‘São 175 mil os que cursam jornalismo, cifra cinco vezes maior do que a de jornalistas que hoje trabalham com carteira assinada em todo o país (35 mil)’, continua o editorial. Contudo, em jornalismo stricto sensu são apenas 2 mil alunos matriculados. A maior parte (173 mil) desses alunos se vêem como comunicadores sociais, o que amplia o leque de saídas profissionais: publicidade, rádio e TV, relações públicas, comunicação empresarial, assessoria de imprensa, produção cultural etc. Quanto às carteiras assinadas… seria o caso de conhecer uma estatística sobre o trabalho dos frilas. Existe?
O autor do editorial também se espanta com a falta de critério racional que explique ‘o motivo de os estudantes de medicina (74 mil) serem pouco mais numerosos do que os de turismo (66 mil), carreira necessária, embora inflada de forma artificial por um modismo’. Ora, há centenas de pessoas que, formadas em turismo, fazem de tudo nessa vida. Tornam-se até agentes de turismo! Alguns, sem serem webjornalistas, produzem sites e newsletters.
Leiamos um pouco mais o editorial. O seu autor considera grave haver ‘589 mil matriculados em direito, número que supera os 571 mil advogados da ativa registrados pela OAB’. Ainda mais grave é que advogados reprovados pela OAB fugirão da inatividade lecionando em alguma dessas centenas de faculdades de direito.
Outra passagem indignada do editorial: ‘Não pode e não deve ser dado como normal que estudantes encarem os cursos em áreas específicas como se fossem polivalentes. Um exemplo: poucos dos 680 mil matriculados em administração previsivelmente seguirão a carreira’.
Sem dúvida. Mas qual o problema? O canudo de quem fez administração poderá ajudar um bancário a manter-se empregado. E quantos fazem administração de empresas, não para administrar empresas, mas para pleitearem um cantinho numa empresa qualquer? O importante, para muitos, é o canudo de alguma faculdade. Canudo é canudo, até mesmo para obter um subemprego, por que não? Melhor do que nada. O ensino médio não profissionaliza. Já é uma vitória conseguir concluí-lo. Vitória ainda maior cursar uma faculdade.
Concorrente de peso
O editorial reclama por ‘mecanismos que desestimulem a abertura de novos cursos em áreas francamente inchadas. A saturação das matrículas gera um inequívoco mercado de ilusões, presente, em 2005 (últimos dados oficiais), nas 1.578 faculdades de administração, 1.524 de pedagogia, 861 de direito e 497 de jornalismo’. No entanto, graças a essas faculdades (a maioria delas particulares), mestres e doutores formados nas universidades públicas puderam lecionar. Graças a essas faculdades, quem não conseguiu uma vaga em instituições públicas teve a chance de prosseguir seus estudos, pagando com dificuldade as mensalidades, comprando com suor e sangue algum progresso na vida profissional.
Um canudo universitário, por mais ilusório que seja, por menos qualidade que a faculdade tenha, é uma tábua de salvação para muitos que, ao terminarem 11 anos de estudo (ensino fundamental e médio), sentem-se náufragos no mar do mercado.
E o que quer o mercado, afinal? Ou o que quer a realidade? Não é igualmente esquisito que só existam 159 alunos no Brasil inteiro estudando ciência marinha? O problema é com a costa brasileira ou com a importância que damos à ciência? Curioso também descobrir que 4 mil universitários estudam estatística. Talvez para produzirem mais e mais censos.
Quanto à qualidade, de fato, muitas instituições deixam a desejar. Várias faculdades atuam como empresas unicamente preocupadas com a sobrevivência. E exatamente por isso não sobreviverão. Negam sua verdadeira vocação. Ouvi o dono de uma faculdade dizer em certa ocasião que seus maiores concorrentes eram as ‘casas bahia’, pois o aluno às vezes fica em dúvida: ou a mensalidade do curso ou a prestação da geladeira.
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br