Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O aborto, as leis e as eleições

A propósito do 28 de setembro – Dia Latino-Americano e do Caribe pela Descriminalização do Aborto, que impulsiona desde 1990 a Campanha 28 de Setembro pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, cujo lema, o mesmo cunhado desde 2004 pelas Jornadas Brasileiras Pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, é “Aborto: as mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante”, eis uma panorâmica das principais matérias veiculadas em publicações impressas e eletrônicas sobre aborto no último mês. Refletir sobre o que dizem, nas linhas e nas entrelinhas, e tirar suas próprias conclusões, é um dever de quem luta pelos direitos e pela vida das mulheres e compreende que a plenitude da democracia exige a consolidação de um Estado laico.

“Vaticano vai excomungar médicos que fizeram aborto em menina”, em Bogotá, Colômbia (29/8) – conforme vaticínio do cardeal Alfonso López Trujillo, diretor do Conselho Pontifício para a Família no Vaticano: “Todas as pessoas que participaram deste procedimento são uns malfeitores porque tiraram a vida de um inocente antes de seu nascimento”. (France Presse).

O fato: médicos do hospital público colombiano Simón Bolívar, de Bogotá, realizaram, dia 24/8, aborto em menina de 11 anos, que engravidou pós-estupro praticado pelo padrasto. E o fizeram sob a proteção legal da Corte Constitucional, que descriminalizou o aborto em casos de estupro, grave perigo para a saúde da mulher ou malformação congênita do feto. No entanto, “os médicos do hospital inicialmente se negaram a praticar o aborto, argumentando que a decisão da corte não havia sido regulamentada, mas o tribunal obrigou os médicos a cumprirem a solicitação apresentada pela avó da menor, por se tratar de um caso de estupro.” (France Presse).

O Vaticano banca

“Bento XVI condena leis canadenses sobre casamento homossexual e aborto” (8/9) e lamentou a tendência de políticos católicos de “sacrificar os princípios da ética natural em virtude de evoluções efêmeras da sociedade e as pesquisas de opinião”, pois “em nome da tolerância, seu país cometeu a loucura de redefinir o conceito de esposo; e em nome da liberdade de escolha enfrenta diariamente a destruição de bebês não-nascidos”. Para ele, “a militância católica na política não pode aceitar acordo sobre a pessoa humana”. (France Presse).

Enquanto isso, no Brasil, na mesma data, as manchetes eram: “Igreja Católica faz campanha e pede voto para candidatos contrários ao aborto”, revelando que a Arquidiocese do Rio distribuiu, em suas mais de 200 paróquias, 750 cartazes a cores, em tamanho A3, no qual pedem aos fiéis que não votem em candidatos favoráveis à descriminalização do aborto; e um folheto com “os pré-requisitos de um bom candidato”, peças publicitárias da “Campanha Nacional Pela Vida – Brasil Sem Aborto, Por um Parlamento em Defesa da Vida”, sob a chefia-laranja do deputado federal Luiz Bassuma (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida – Contra o Aborto que, segundo o parlamentar, conta com de 73 integrantes.

A frente e a campanha mencionadas foram idealizadas e são bancadas pelo Vaticano. Não há segredos, como diz a Rede Feminista de Saúde: “No processo eleitoral de 2006 há poucas surpresas. Já era esperado que a cruzada antimulher do Vaticano e de Bush contra os direitos humanos das mulheres desembarcasse com arrogância, força e cara limpa no contexto eleitoral brasileiro (…) Tendo como alicerce o Chamado, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – articuladora real da Frente Parlamentar em Defesa da Vida: Contra o Aborto, quer fazer valer no Brasil as leis do Vaticano. Isto é, por si mesmo, de enorme gravidade, pois se trata de ingerência estrangeira na soberania nacional, já que o Vaticano goza de status de Estado no sistema Nações Unidas e o governo brasileiro mantém embaixada no Vaticano. Esse fato revela a ambigüidade da Igreja Católica Apostólica Romana, que de acordo com seus interesses ora se apresenta como Estado, ora como religião.” (“Eleições sem retrocesso: um desafio para o feminismo brasileiro – Documento político em defesa dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos”)

Orientando eleitor

Dom Rafael Llano Cifuentes, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família da CNBB, em documento recente “sobre questões de defesa da vida e eleições no Brasil”, não se escusa em declarar:

Na iminência das eleições faz-se necessária a nossa importante atuação como pastores do povo de Deus a nós confiados. Necessitamos continuar formando a consciência de nossos fiéis, a fim de que escolham, através de um voto convicto, os melhores candidatos.

Desejaria focalizar nesta carta, apenas, o problema da vida que tanto nos preocupa e que será objeto da Campanha da Fraternidade de 2008 (…) É nesse sentido que precisaríamos orientar, de forma convincente, aos eleitores que estão sob a nossa responsabilidade e que esperam de nós, pastores, uma posição clara e segura para nortear a melhor escolha no dia da eleição: aqueles que desejamos eleger hão de estar comprometidos a se empenharem, com determinação, a defender a vida humana desde a sua concepção até a sua morte natural. De acordo com a nossa consciência cristã, este é um critério determinante para uma indicação acertada”. (Carta de Dom Rafael Llano Cifuentes sobre defesa da vida e eleições no Brasil. Zenit – O mundo visto de Roma)

Campanha na rede

Para o bispo-auxiliar dom Dimas Lara Barbosa, “vários políticos apóiam o aborto, mas alguns, como a candidata ao Senado pelo Rio Jandira Feghali (PCdoB), se destacam. Ela é a principal mediadora do movimento do aborto, mas no PT e no PV também há ações no mesmo sentido. Só o Prona é claramente contra”; “Recentemente, houve várias tentativas de descriminalização do aborto no Congresso. Muitos projetos já foram longe na Comissão de Seguridade Social e Família. Um deles ficou por um voto para ir a plenário.” (O Globo e FSP).

A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ), médica e feminista, candidata a senadora pelo Rio de Janeiro, respondeu: “A convicção de cada um não deve interferir na lei, que precisa ampliar direitos”. A cantora Fafá de Belém, em entrevista sobre o lançamento do seu livro Sem anos de solidão, em 9/9, quando perguntada pela Folha “Em 1997, quando cantou para o papa no Vaticano, você evitou falar de aborto. É a favor? Foi explícita: “Eu sou pela descriminalização. Não adianta legalizar se você não consegue preparar uma cabeça para entender como se prevenir.” (FSP).

“Candidatos que são contra a legalização do aborto serão listados na internet” (13/9), anunciando que “um grupo de entidades contrárias à legalização do aborto vai iniciar uma campanha para defender o voto em candidatos que também são contra essa prática. O grupo vai divulgar a lista desses políticos na internet para garantir que os eleitores partidários da mesma idéia não votem desavisadamente em alguém que defenda o aborto. O movimento se auto-intitula Campanha Nacional pela Vida – Brasil sem Aborto e tem o apoio de dezenas de entidades, inclusive o da Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB). Para Jaime Ferreira Lopes: “Nossa missão é constituir uma maioria de parlamentares e governantes que não permitam a legalização do aborto no país. O princípio básico é a defesa da vida desde o momento da sua concepção”. (O Globo e FSP)

Lembrete e símbolo

Contardo Calligaris, em “O maior amor do mundo”, artigo sobre o filme de Cacá Diegues (14/9), com o mesmo nome, coloca em cena um debate muito caro ao feminismo, que é um dos eixos da liberdade reprodutiva: respeito filhos(as) devem ser desejados(as), pois a gravidez indesejada é um pesadelo e a inesperada decorrente de violência, pode resultar numa tortura. Para sempre, se for levada a termo, pois traz ao mundo crianças indesejadas, não-queridas. Defendemos o direito à maternidade voluntária, alicerçada no desejo e no respeito ao direito das crianças de serem amadas.

Ressaltando que O maior amor do mundo é um filme que “é animado pela vontade de contar a vida, com aquelas misérias e grandezas que são, por assim dizer, interclassistas”, Contardo Calligaris afirma que “o amor da mãe é o amor que melhor pode nos ensinar a amar” e que o filme “é uma parábola, livre e alegre, sobre essa verdade” e que ele o comoveu “porque toca numa verdade que todos sabemos comprovar, a cada dia: nossa capacidade de amar (uma parceira ou um parceiro, os filhos que tivemos ou gostaríamos de ter, o próximo em geral) depende sempre do quanto e de como fomos amados.”

E Contardo Calligaris segue refletindo que um filho pode ser, para um dos pais, um lembrete de alegria ou de tristeza; o símbolo da perda irreparável de um outro ser amado; o resultado da infidelidade do outro e que “não há carinho que adiante: para o filho, o lugar que ele ocupou na história dos pais é sempre um fardo decisivo.” E ainda que “hoje, a lei admite o aborto para salvar a vida da mãe: é para não condenar quem nasce a ser o representante da morte de sua própria mãe e, para o pai, o monstro que matou a mulher que ele amava. A lei também admite o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro: é para não condenar quem nasce a ser, aos olhos da mãe, o representante da violência que ela sofreu. Que a gente concorde ou não, o que importa é que o legislador, nesses casos, não se preocupa com os pais, mas com o próprio destino do nascituro.” (FSP)

Embate intenso

Foi destaque, em 15/9: “Morre a polêmica jornalista italiana Oriana Fallaci”, aos 77 anos (1929-2006). Vários jornais dela disseram que dedicou seus últimos anos a uma violenta cruzada contra o fundamentalismo islâmico e que sempre defendeu as suas idéias com paixão, a exemplo do seu livro Carta a um menino que nunca nasceu (1980), sobre “o aborto do ponto de vista de uma mulher. Ela quer seu filho a todo custo, mas todos parecem estar contra. Uma narrativa forte, original, que emocionou a Europa inteira”.

Foi também martelado com insistência que Oriana Fallaci “passou da esquerda para a direita e se dizia atéia cristã” (não fiel, mas leal à identidade cristã da Europa). Dá para perceber que Oriana Fallaci se identificava visceralmente com o que de mais vil há no fundamentalismo católico: o desejo insano de impedir que as mulheres decidam sobre o seu próprio corpo.

Contrariando o ditado popular de que “todos os mortos viram deuses”, o líder comunista italiano Fausto Bertinotti, num telegrama, criticou-a com veemente impiedade: “Tinha aversão à diversidade, às diferenças; ou seja, à Humanidade”. Para Piero Fassino, secretário do Democráticos de Esquerda (ex-PCI): “Temos de reconhecer sua coragem intelectual e a sinceridade humana, porque era um interlocutor com o qual se podia sempre discutir de maneira franca”. Segundo o presidente da República, Giorgio Napolitano Oriana Fallaci: “Era uma mulher conhecida mundialmente e uma protagonista de grandes batalhas culturais”. (AFP)

“Documentário lança luz nova sobre problema do aborto (19/9) – Lake of fire (Lago de fogo), de Tony Kaye, que contém imagens filmadas durante 15 anos, registra as manifestações de 1993 que marcaram o 20º aniversário da decisão judicial histórica do processo Roe vs. Wade, que resultou na autorização do aborto nos EUA, e entrevista de integrantes da esquerda americana, mulheres que fizeram a interrupção voluntária da gravidez e ativistas “pró-vida”. Enfim, Lago de fogo conta a história do intenso e incessante embate entre defensores e críticos do aborto nos Estados Unidos, colocando a nu as entranhas de um país dividido entre o liberalismo moral e o fundamentalismo religioso – que se glorifica de justificar até com a Bíblia o assassinato de um médico que faz abortos. (http://br.news.yahoo.com/060920/5/18zru.html).

Morte e julgamento

“Nas eleições para governador, muitos republicanos estão pendendo para a esquerda” (20/9) – “Por todo o país, candidatos republicanos aos governos de estados com muitos eleitores moderados ou democratas estão acentuando suas posições liberais em questões que incluem pesquisa de células-tronco, aborto e meio ambiente, ao mesmo tempo em que permanecem fiéis à plataforma de seu partido em relação a impostos e enxugamento do governo (…) “A ideologia que liga os governadores republicanos é fazer as coisas desejadas por seus eleitores” disse Philip A. Musser, o diretor-executivo da Associação dos Governadores Republicanos. “De uma perspectiva mais ampla, os eleitores nestas disputas vão à urna menos interessados em se o governador é pró ou contra o aborto e mais se ele reduzirá seus impostos sobre propriedades ou tornará a vida deles mais fácil no departamento de trânsito.” (The New York Times).

“Jogo pesado – Panfletos assinados pela Frente carioca pela vida, com ofensas a Jandira Feghali, candidata do PCdoB ao Senado no Rio, foram distribuídos no fim de semana na porta de igrejas católicas da Baixada Fluminense. Bem confeccionados em papel cuchê, chamam Jandira de ‘a candidata do aborto’. Meu Deus…” (Ancelmo Gois, O Globo, RJ, 19/9). Calma, Ancelmo, estava com a razão José Ortega y Gasset quando afirmou que “podemos morrer por nossas idéias, porém é impossível fazer com elas o que fazemos com as crenças: viver delas”.

“Mulher morre em clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro” (20/9) – Luciana de Deus Bor, 40 anos, faleceu durante a realização de um aborto uma clínica clandestina em Vila de Cava, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (O Globo); “Médico e atendente acusados de realizarem aborto são absolvidos” – Em Vitória, Espírito Santo, um júri popular absolveu o médico Alexandre Tanure e a atendente Márcia de Souza, acusados de realizarem um aborto em Jocélia Gomes, em 1994. que não teria resistido a uma hemorragia uterina sofrida em função do procedimento. A defesa do médico insistia, porém, na tese de que a paciente já teria abortado e procurou o profissional apenas para receber atendimento médico. (O Globo, 21/9)

Menos abortos ilegais

“Questão do aborto – o desembargador Luis Felipe Francisco, do TRE, mandou recolher ontem, na Arquidiocese do Rio, todos os panfletos que associam a candidata ao Senado Jandira Feghali ao aborto. Na verdade, o material é distribuído pela ONG Frente Carioca pela Vida. (Ancelmo Gois, O Globo, RJ, 21/9). Em 21/9, redes e organizações da sociedade civil que reconhecem a seriedade e a importância do trabalho de Jandira Feghali solidarizaram-se com ela destacando que “candidata ao Senado pelo Rio de Janeiro, a deputada Jandira Feghali tem dado importante contribuição à questão dos direitos da mulher. Nessas eleições, seu trabalho tem sido alvo de campanha difamatória da Igreja Católica.”

As organizações abaixo-assinadas vêm a público defender o trabalho da médica e Deputada Federal Jandira Feghali e reafirmar, frente à população do estado do Rio de Janeiro, que nos 16 anos em que atuou na Câmara Federal, Jandira Feghali se destacou como defensora dos direitos da mulher e de todos os temas da saúde pública, tendo por isto ganhado respeitabilidade e projeção nacional e internacional (…)

Por estas razões, Jandira Feghali foi designada relatora de todos os projetos que lidam com a saúde da mulher, entre estes o PL 1135 que trata da interrupção da gravidez em casos determinados, que ainda não foi votado. O projeto é resultado de nossa luta e faz parte deste conjunto de ações do campo da saúde integral e dos direitos das mulheres. (…)

Consideramos má-fé atribuir a este projeto o conteúdo de “optar pela interrupção da gravidez como método contraceptivo”. Não é disso que se trata, sobretudo quando olhamos com atenção para a realidade brasileira.

O aborto clandestino é um fato em nossa sociedade, e a ele as mulheres recorrem, na maior parte das vezes, em condições precárias e sem qualquer regulamentação, permitindo-se que clínicas clandestinas operem livres de fiscalização ou controle por parte das autoridades competentes. Muitas vezes esses serviços são de má – ou péssima – qualidade, e essas clínicas particulares lucram à custa da morte ou de seqüelas graves para a saúde de mulheres, sobretudo as mais pobres.

A lei punitiva não tem evitado o abortamento clandestino, que é feito aos milhares sendo responsável por uma em cada oito mortes maternas no país. Esta lei punitiva não reduz o número de abortamentos, pois não enfrenta suas causas: o abandono, a falta de creches, o desemprego e a miséria das mulheres chefes de família, a exigência de teste negativo de gravidez para conseguir um emprego, a falta de assistência de todas as instituições, a falha de métodos contraceptivos.

Por tudo isto e independentemente de opções partidárias, repudiamos com veemência o panfleto que vem sendo distribuído pela Frente Carioca pela Vida, às vésperas das eleições 2006, nas paróquias católicas do Rio de Janeiro. Com um texto tendencioso, desrespeitoso e difamatório do trabalho de Jandira Feghali, hoje candidata ao Senado, este panfleto contém uma interpretação inverídica sobre o projeto de lei acima referido, num ato que entendemos como franca agressão à lei eleitoral e à democracia brasileira”. (www.mulheresdeolho.org.br/?p=97)

“Nº de abortos ilegais cai 28% em 13 anos” – estimava-se em 1992 que 1,455 milhão de mulheres abortaram por razões não-naturais. Em 2005, o número estimado foi de 1,054 milhão (22/9). A queda aconteceu principalmente até 1997, quando, desde então, “o patamar ficou estabilizado em torno de 1 milhão. Quando se leva em conta o número da taxa de abortos em relação à população feminina de 15 a 49 anos, a queda da prática de abortos desde 1992 fica ainda mais expressiva. Em 1992, 3,69% das mulheres praticaram aborto induzido. Em 2005, essa proporção caiu para 2,07%, o que significa uma redução na taxa de cerca de 44%.” (FSP)

Estado laico

Em “Sem diagnóstico, jovem morre por aborto malfeito”, Cláudia Colluci, da FSP (22/9), relata que “Uma garota de 18 anos morreu por complicações de aborto clandestino após passar por consultas com dois médicos de um pronto-socorro de São Paulo, em dois dias consecutivos, e não ter o problema diagnosticado. Os médicos alegam que a garota mentiu sobre o aborto”. Fui procurada pela repórter e disse: “A investigação de aborto precisa ser feita em todas as mulheres em idade fértil que apresentem queixas como as descritas pela jovem, ‘mesmo quando dizem que são virgens’, pois é “comum elas mentirem, ainda mais perto do pai e da mãe.”

Para o Brasil, foi estimado que uma em cada cinco mulheres que faziam aborto procurava a rede pública de saúde. São alegadas como causas da diminuição:

A principal explicação é a melhoria no acesso a métodos contraceptivos das mulheres. Eles lembram também que nesse período houve melhoria significativa na escolaridade feminina. Como a educação é o fator que mais influencia nas taxas de fecundidade – quanto mais instruída é a mulher, menor o número de filhos –, a hipótese é que uma geração mais escolarizada teve mais condições de evitar uma gravidez.

E para a redução da mortalidade e da morbidade, em especial septicemia – infecção generalizada, o papel do cytotec (medicamento abortivo de alta eficácia) é relevante, o que demonstra que as mulheres, em contraposição à omissão dos governos na garantia da saúde e da vidas delas, se defendem como podem e encontram meios para sobreviver às suas próprias custas. Foi assim nos países que criminalizam o aborto que as mulheres descobriram o cytotec como abortivo e nele encontraram um aliado importante, mesmo usando-o na cladestinidade, que diminui, substancialmente, os efeitos deletérios do aborto inseguro.

A diminuição da morbidade e da mortalidade pós-cytotec é inegável na vigência da criminalização aborto.

Há dados brasileiros que corroboram esta afirmativa. Ademais, é lançar um olhar sem juízo de valor, sobre uma realidade, ainda muito em voga entre mulheres sem recursos financeiros que vivenciando uma de gravidez indesejada precisam abortar e, premidas pela situação, não lhes restando alternativas e, num gesto do mais absoluto desespero, “recorrem a práticas de grande risco: uso de sondas, chás tóxicos e outros remédios caseiros de efeitos colaterais danosos; ou buscam apoio em pessoas inescrupulosas e/ou sem competência profissional para realizar um aborto, expondo sua saúde e sua vida a riscos desnecessários, situação pela qual o Estado brasileiro deve ser reponsabilizado, já que o abortamento hoje é um procedimento, cirúrgico ou farmacológico, seguro.

“A criminalização e a ilegalidade do aborto construíram a indústria do aborto clandestino, fonte de lucros incalculáveis, e que evidencia o caráter classista do acesso ao aborto seguro. Além disso, a criminalização e a ilegalidade geram a clandestinidadade para a realização do aborto, que pode resultar na morte precoce e desnecessária de mulheres, de maneira solitária e estigmatizada – um ônus, em geral, apenas para quem não pode pagar por um aborto seguro, disponível em praticamente todas as cidades de médio porte no país.

Portanto, recorrer ao abortamento inseguro expressa desigualdade social, e abortar de modo inseguro é injustiça social. Quando a mulher decide interromper uma gravidez, cabe à sociedade respeitar e ao Estado garantir o exercício desse direito.” (“Aborto legal e seguro – Por que a ilegalidade viola direitos das mulheres”)

Basta! Jamais foi, e não é, nosso desejo seguir pagando os altos custos financeiros e do nosso precioso tempo da desobediência civil; perder a nossa saúde e muitas vezes nossas vidas em decorrência de um aborto inseguro; e nem aspiramos a eternização da imolação da vida das brasileiras, em sua maioria pobres, negras e jovens, no vergonhoso altar da submissão de um Estado laico aos ditames do repertório de crenças do Vaticano, por ele consideradas únicas no mundo, em flagrante desrespeito à pluralidade de crenças, no Brasil garantidas constitucionalmente.

Exigimos a descriminalização e a legalização do aborto como um direito para a mulher que dele necessitar, segundo a sua liberdade de consciência, a sua autodeterminação.

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Médica, integrante do Conselho Consultivo da RSMLAC/Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe, do Conselho Diretor da CCR/Comissão de Cidadania e Reprodução, ex-secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde (2002-2006); autora de Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995; 14ª impressão, atualizada em 2004); Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997; 8ª impressão atualizada, 2004); Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza Edições, 1998); Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza Edições, 2000); ensaio “O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002” e “Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios” (CNDM/MJ, 2002); “Saúde da população Negra”, Brasil 2001 (OMS-OPAS, 2002) e do romance A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005); articulista da página de Opinião de O Tempo (Belo Horizonte), desde 2002.