A mídia brasileira tem criado, novamente, um espetáculo de pânico moral centrado na ayahuasca. Dezenas de reportagens apareceram nos jornais e na internet nos dias seguintes ao assassinato do cartunista Glauco Villas Boas e seu filho Raoni no mês passado, em São Paulo. Respeitoso num primeiro momento, o tom das matérias piorou rapidamente quando o assassino foi identificado como freqüentador do centro de Daime que Glauco comandava [ver remissão abaixo]. Aproveitando a publicação este ano de normas para o uso religioso da ayahuasca pelo Conselho Nacional das Drogas, algumas fontes sugeriram que a postura oficial foi tolerante demais, e que está na hora de proibir o tal ‘chá alucinógeno’ por ser uma droga perigosa à saúde pública.
Outras fontes fizeram o argumento de modo disfarçado, perguntando ‘ayahuasca é droga?’ De um ponto de vista farmacológico, a ayahuasca é sim ‘uma droga’, ou seja, é um agente psicoativo. Mas essa resposta esclarece muito pouco se a nossa intenção é entender o sentido da ayahuasca no contexto de uma determinada prática, ou até para entender se seu uso representa grande ameaça à saúde pública que não pode ser tolerado. Pelo contrário, dentro do debate público, pensar a ayahuasca como uma droga tem ocultado o que tem de mais importante no mundo ayahuasqueiro brasileiro.
Acontece que o conceito senso comum de ‘droga’ faz um grande fetichismo de processos sociais, que acabam sendo imaginados como propriedades das substâncias em si. O presumido descaso dos produtores da substância para com o seu consumidor; o zelo com que o vendedor procura novos clientes para viciar na droga; o prazer individual que o consumidor busca nela; a decadência de relações familiares e a falta de desempenho no trabalho, devido ao foco exclusivo no consumo de drogas – são todas essas imagens negativas que, embora sejam concretizadas em alguns casos, nem por isso deixam de ser apenas possíveis configurações sociais. Mesmo assim, na crendice popular, as drogas já têm o poder de criar essas situações pela própria natureza maléfica.
Comportamento moral
É uma visão basicamente protestante, na qual o sentido das drogas se resume na busca ilícita pelo prazer, ou, pelo outro lado, na tentativa imoral de fugir do legado de sofrimento que nos vem de Adão e Eva pela desobediência às ordens divinas. Essa busca é ainda mais condenável porque as drogas geram simulacros da graça divina através de uma ação material e não espiritual: são ‘paraísos artificiais’ que acabam, na sabedoria popular, sendo infernos terrestres. Na economia consumista, as drogas também funcionam como uma espécie de bode expiatório, reforçando a ilusão, pela criação de uma categoria de bens onde reina a compulsão, que o consumo lícito pode ser um meio de realizar a liberdade.
O Daime, na maneira que vem sendo usado no Acre desde a década de 1920, tem pouco a ver com isso tudo. As pessoas doentes e rebatidas que chegavam dos seringais moribundas à casa do Mestre Irineu Serra procuravam sua saúde e dignidade, e achavam nele não apenas um grande curador, mas também um exemplo de cidadão brasileiro. O Mestre Irineu Serra tinha um pé em dois mundos, o da floresta e o da cidade, e fez da sua vida uma grande obra de mediação entre os dois, criando o que arrisco chamar de uma florestania avante la lettre. Ele ajudava, assim, as pessoas vindas da floresta a se adequarem à nova vida nos arredores de Rio Branco depois da grande crise da borracha, e depois da Segunda Guerra Mundial. Com sua ligação com a Rainha da Floresta, abriu um caminho para se fincar raízes naquelas terras longínquas; com sua inserção na política do Acre, através da sua participação no Exército e de suas amizades com políticos, ele ajudou seu povo a reivindicar seus direitos e a se sentirem relacionados com a sociedade mais ampla.
No centro original criado por Mestre Irineu Serra, o feitio de Daime tem um papel constitutivo na formação da congregação como grupo social. Os homens que fazem Daime são os mais ‘firmados’ na doutrina do Mestre Irineu, os que detêm a máxima confiança da liderança do centro. Fazer Daime é muito sério, pois visa consagrar a missão que o Mestre Irineu Serra recebeu da Rainha da Floresta. O processo comemora vários aspectos da iniciação do Mestre Irineu Serra, inclusive respeitando a fase lunar, o jejum sexual e a restrição de comida. Além de usarem técnicas que buscam mais a lealdade com o que ‘o Mestre deixou’ do que a eficiência, a intenção é fator importante no feitio. Daime feito com intenções boas é capaz de propiciar louvor ao divino em prol da humanidade; Daime feito por quem não cumpriu seus deveres de abstinência, por quem não prestou atenção ou desprezou seus irmãos, não terá bom resultado. Igualmente, quem toma Daime procura firmar suas boas intenções e tem a expectativa de prestar contas por seu comportamento moral.
‘Fitolatria’ para curar os cristãos
Tenho tentado destacar aqui como o Daime no Acre é ligado à história e como seu uso se diferencia das drogas: é uma prática de produção local para consumo próprio; liga as pessoas que o fazem com elas que o tomam, por laços de respeito, amor fraterno e muitas vezes pelo parentesco; e prima pela correção moral de cada indivíduo, segundo valores geralmente cristãos que se harmonizam com os da sociedade mais ampla.
Alguns dos meus amigos no Acre pensam que os problemas começaram nos anos 1970 quando os ‘ripes’ descontextualizaram o Daime, botando-o na mala e levando-o para o Sul do país, num paralelo invertido à agressão dos ‘paulistas’ que na mesma década compraram uma boa parte do estado. Realmente dá pano para manga, pois o Daime foi para o Sul e além levado por pessoas da contracultura e ficou associado por eles com a ‘maconha’, símbolo central da contracultura mundial do baby boom. O esquema de produção e distribuição mudou, e o Daime ficou sujeito a forças do mercado como escassez e transporte. Em alguns lugares, as abstinências e o seguimento das fases da lua caíram em desuso, e as marretas de madeira usadas para triturar o cipó jagube foram substituídas por máquinas.
Essa mudança de contexto aponta uma re-significação do Daime que, de uma perspectiva antropológica, faz uma diferença. Tentar inserir um entendimento processual das drogas no discurso público, porém, dificilmente procede. Como me disse certa vez um homem da Polícia Federal em Rio Branco sobre o Daime, simplesmente, ‘sabemos que é uma droga, mas não podemos reprimir.’ Assim, discordo da idéia que os ‘paulistas’ macularam o Daime, pois a história do Mestre Irineu Serra também começa com uma re-significação da ayahuasca, de fenômeno caboclo a um remédio da floresta ‘para curar os cristãos’. E é essa mediação entre o que o saudoso Océlio de Medeiros chamou de ‘fitolatria’, quando defendia o Alto Santo contra a Polícia Federal, em 1974, e a convicção protestante da separação radical entre o mundo espiritual e o material, que dificilmente o público aprende a aceitar.
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Doutorando em Antropologia Social na Universidade da Virgínia