No último dia 12 de dezembro, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo que visa a ‘proteger’ e ‘defender’ a ‘língua portuguesa’. Apresentado em 1999, somente neste ano o projeto, que já foi aprovado no Senado, vai para a última votação no plenário, devendo entrar em vigor em breve. Ironicamente, o texto de Rebelo baseia-se em duas leis estrangeiras, sancionadas na França nos anos de 1975 e 1994, cuja pretensão era proteger a latinidade da língua.
Nestes quase dez anos de tramitação do projeto do deputado, alagoano de nascimento mas eleito por São Paulo, uma acirrada polêmica tem sido travada entre lingüistas e um variado contingente de pessoas que acreditam que a proteção da língua nacional corresponde à salvaguarda de nossa soberania. Os cientistas da linguagem, em geral, atacam toda tentativa de se legislar sobre o idioma, pois ele é uma entidade viva, que se modifica constantemente e, como parte desse processo, entra em contato com outras línguas, assimilando vocábulos e expressões que o enriquecem expressivamente. Para eles, o estrangeirismo excessivo e sem respaldo no espírito do idioma nacional não passará de um modismo e será descartado naturalmente. Já os paladinos da nossa soberania e da pureza de nossa língua consideram – não sem razão – que há um emprego excessivo de estrangeirismos no Brasil, que eles exprimem em geral um precário domínio da variante chamada ‘culta’ do idioma e freqüentemente se compõem de termos apenas pescados no dicionário de inglês; duas faces, portanto, da ignorância.
Contribuições de várias línguas
Além disso, o emprego de termos na língua de George Bush, além de representar subserviência ao imperialismo, tem também um aspecto classista, pois todos sabemos que, por exemplo, teen não é qualquer adolescente, mas aquele de classe média para cima, que reside em área urbana, rato de shopping centers e lan houses, estudante de escolas particulares e beneficiário de mesadas dos pais. Por isso, em nome de nossos valores mais caros e do politicamente correto, o legislativo deveria intervir para expulsar esses corpos estranhos do organismo da língua.
Certamente, a lei Aldo Rebelo será mais uma dessas que já nascem mortas neste país da ilegalidade triunfante. Sem dúvida, a língua brasileira seguirá seu curso histórico para muito além da lei dos homens, gerando ela mesma suas próprias normas. Entretanto, o projeto do deputado do PCdoB tem tido, no mínimo, a virtude de provocar um amplo debate sobre um tema que obviamente merece ser discutido. Acontece que a discussão, tal como tem se realizado, me parece bastante fora de foco.
A língua brasileira, mesmo em suas vertentes mais castiças, constitui, sobre a base latina e lusitana, um amálgama de contribuições de línguas indígenas e africanas, do grego antigo, do francês, do espanhol, do árabe e, em graus menores, de outras línguas. Com os muitos contatos culturais proporcionados pelos meios de comunicação e de transporte atuais, nenhuma língua viva está isenta da incorporação de estrangeirismos.
Elite colonizada
Esse fenômeno, quando assimilado com naturalidade para suprir uma falta, nomear uma nova realidade ou simplesmente pelo uso generalizado, aprimora a língua e lhe proporciona novas expressividades. Por outro lado, sempre foi uma das mais evidentes manifestações do imperialismo a imposição da cultura metropolitana. Quase todos os idiomas contemporâneos naturalmente sofrem influências da língua inglesa devido ao fato de os Estados Unidos serem, não apenas a sede, mas os comandantes e os grandes beneficiários da chamada ‘globalização’, controlando todo um vasto sistema midiático de massas do qual sua música popular, seu cinema, suas agências noticiosas e, hoje em dia, seus canais de TV a cabo, são as principais expressões. Inevitavelmente, com quase um século de preponderância e rapinagem norte-americana no mundo, com as conquistas tecnológicas originárias daquele país, com o triunfo do estilo de vida norte-americano em todo o Ocidente, a língua brasileira não haveria de ficar isenta de anglicismos. Até aí tudo bem. O questionável abuso de termos ingleses entre nós, no entanto, ponto nodal da polêmica ora travada, se é que merece a celeuma que tem provocado, deveria remeter a uma discussão bem mais profunda e anterior à questão da linguagem. O teor da lei Aldo Rebelo e das discussões geradas por ela corresponde a combater um sintoma dos mais evidentes e deixar a doença intocada.
Necessitamos de um debate mais amplo sobre nossa ultravalorização do estrangeiro prestigioso, em especial do anglo-saxão, quase sempre acompanhada de auto-depreciação. Antes da sobra de palavras inglesas em nossa língua, estabeleceu-se entre nós uma sobra do modo de vida norte-americano, assimilada acriticamente por nossa casta dominante logo após a decadência francesa e a ascensão dos Estados Unidos, que assumiram a condição de paradigma de modernidade e qualidade de vida aos olhos colonizados de nossa elite. A partir dela, atingiu-se a massificação e o senso comum.
Sem macaquice
Continuamos colonizados e seguiremos colonizados enquanto o país estiver à mercê dessa oligarquia espertalhona que nunca foi apeada de quase todas as instâncias de poder e cuja última grande jogada foi transformar Lula em feitor do horror econômico de fundamento especulativo. O Brasil oficial nunca foi o que realmente é, tal como o Brasil dos grandes meios de informação do eixo Rio-São Paulo. Só o será quando a democracia efetiva – que jamais existiu no país – se realizar através de uma ampla conquista dos mais básicos direitos da cidadania para todos e os espaços decisórios estiverem de fato abertos à participação direta do eleitorado.
Obviamente, um sistema público educação de boa qualidade – o que também não temos – é fundamental nesse processo. Com isso, poderemos conquistar maior liberdade para sermos o que somos com muito mais naturalidade, inclusive nos enriquecendo com a contribuição lingüística e cultural estrangeira sem macaquice, tal como fizeram importantes movimentos da cultura brasileira no século passado, como o Modernismo, a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Tropicalismo.
******
Professor