Em 25 de outubro de 2005, publiquei no OI o artigo ‘Desinformação ameaça democracia e Estado laico’ [ver remissão abaixo], no qual afirmo que a Agência Câmara foi a fonte de uma notícia de algo que não ocorreu, que foi reproduzida por outros meios de comunicação. Tal notícia era do interesse de setores fundamentalistas do Congresso Nacional, em especial da Frente Parlamentar contra o Aborto (FPCA), que se beneficiou enormemente dela, embora a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tenha opinião contrária à realização de um plebiscito sobre aborto.
Mas o que veiculou a agência que eu disse não ser verdade? Que a partir daquela data (19/10/05) a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) pautara para as próximas reuniões a proposta de um plebiscito sobre aborto. Tanto não era verdade que do dia 19 de outubro, quando a agência informou que a CSSF ‘nas próximas reuniões’ discutiria o plebiscito sobre o aborto, até hoje, 6 de dezembro de 2005, o tema não entrou em pauta, simplesmente porque não foi definido que entraria! E, olhem, as reuniões da CSSF são semanais. Logo, a Agência Câmara veiculou algo que não era verdadeiro. E por que se arretam tanto?
No referido artigo, destaquei trechos das matérias da Agência Câmara cujo conteúdo não coincidiam com o que se passou na reunião. Em tese, a agência, um organismo de notícias estatal, tanto quanto os meios privados tem o dever de se guiar pela ética e o respeito à função social da imprensa. Portanto, solicitei ao presidente da Câmara, o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), que tomasse as devidas providências. E não porque eu tenha o instrumento do plebiscito como algo impensável para manifestações da vontade popular, apenas entendo que os direitos reprodutivos, por serem direitos humanos, devam ser respeitados na totalidade, sempre, e é um equívoco que qualquer deles se transforme em matéria plebiscitária.
Como é o esperado de funcionários públicos que tratam o bem público como propriedade privada, em 22/11/2005, as jornalistas Joseane Paganine e Patrícia Roedel (repórter e diretora da Agência Câmara de Notícias), na matéria ‘Artigo erra ao manipular informações sobre aborto’ [ver remissão abaixo], esboçam uma tentativa de responder à crítica que fiz à cobertura da agência – que, reafirmo, considero abominável porque não se respalda no desenrolar dos fatos; destilam lembretes-ameaças e tentam até dizer o que acham que eu penso. Não preciso de porta-vozes e dispenso adivinhas, ainda que gratuitamente. Tenho o privilégio de ter conquistado a condição de ser uma mulher que fala e cuja fala ressoa, forma opinião – e isso sim, pode ser insuportável para quem considera que detém o monopólio de formar opinião.
Trágicos e reveladores
Primarismo inesperado, porém daninho
Meu artigo não manipula dados e muito menos sobre o aborto, inclusive porque o único material de fôlego mais atualizado sobre aborto – além de pioneiro na visão e na análise dos dados dos investimentos do SUS na atenção ao abortamento espontâneo e inseguro – foi idealizado, elaborado e publicado em minha gestão como secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde (RFS). Refiro-me ao ‘Dossiê aborto: morte preveníveis e evitáveis‘.
Portanto, se há alguém que dispõe, facilmente, a qualquer hora, de dados isentos de manipulações de qualquer ordem sobre aborto sou eu. Relembrando ainda que as publicações da RFS denominadas ‘Dossiês’ são elaboradas tendo como público prioritário profissionais da imprensa, com o intuito de colocar à disposição deles(as) informações confiáveis sobre temas que consideramos foco de nossa ação política e sobre os quais a mídia encontra dificuldades na obtenção de dados, ou, insistentemente, veicula visões distorcidas.
De modo que calúnia comete a Agência Câmara, desde o título tendencioso do que seria uma réplica, mas só alcança a categoria de insulto – o que evidencia um primarismo inesperado para profissionais tidos como de alto gabarito, no artigo-dublê de resposta: ‘Artigo erra ao manipular informações sobre aborto’, no qual há trechos que seriam hilários se não fossem trágicos e reveladores de ignorância política, o que aponta para um fazer jornalístico de categoria inqualificável, do qual pinçarei apenas três pérolas:
‘Eu sou fonte’
1)
‘Parece-nos, contudo, que é justamente essa democratização, que retirou o monopólio da informação das instâncias intermediárias – como a mídia de mercado e determinados movimentos sociais – a responsável pela ira da feminista. A informação pública e gratuita, disponível a toda a sociedade, é sempre perigosa para aqueles que desejam ocultá-la, principalmente se, algum dia, já tiveram poder para isso.’A quem elas, as jornalistas da AC, se referem? Freud talvez explique porque, em geral, quando alguém é pego com a ‘mão na botija’, a primeira providência é tentar livrar a própria pele acusando a outrem de ter cometido o desvio. Mas que é feio, é. Na profissão de jornalista, então, é uma temeridade que atenta contra as liberdades democráticas, logo não nos calaremos.
2)
E sobre a afirmação: ‘É compreensível que Fátima Oliveira, como médica e feminista, defenda com fervor os interesses pelos quais milita. Também é provável que a paixão que dedica ao tema não a deixe visualizar com a isenção necessária os fatos que lê. O que não é aceitável, contudo, é que se valha de calúnia para fazer imperar seus interesses pessoais. O Código Penal, inclusive, eleva a calúnia à categoria de crime, em seu artigo 138.’O que pensar de uma agência estatal que usa seu direito de resposta não para responder, mas para fazer ameaças? Se se sentiu caluniada que a agência recorra à Justiça. O que não fica bem na foto é chantagear, na tentativa de inibir o direito de crítica e a liberdade de expressão.
3)
‘Compromisso. Composta exclusivamente por jornalistas concursados, a Agência Câmara não toma partido de assunto, parlamentares ou grupos políticos (…) O compromisso que temos com a isenção faz com que até mesmo quando Fátima Oliveira venha participar de alguma audiência pública, a Agência Câmara a considere como fonte, reproduzindo suas opiniões, como o fez na data de hoje, quando ela integrou audiência pública sobre o movimento negro’.O ‘até mesmo quando Fátima Oliveira’ passou dos limites aceitáveis para posturas indecentes, e Freud, mais uma vez, pode nos socorrer dos destemperos verbais e dos subliminares, e explicar isso nos mínimos detalhes, já que sou uma intelectual e figura pública, há décadas, de três movimentos sociais relevantes em nosso país: o negro, o feminista e a bioética.
Então, inegavelmente, em qualquer lugar onde eu estiver falando em nome de qualquer deles não sou apenas ‘considerada’ fonte, não, eu sou fonte, além de livre-pensadora com vasta obra publicada nas três áreas – para o azar de quem acha que mereço a invisibilidade e o ostracismo, tão-somente por apontar falhas e desvios no serviço que prestam.
Onde está o alardeado compromisso com a ‘isenção’ quando as jornalistas não se acanham em dizer ‘Até mesmo quando Fátima Oliveira!’? Sim, elas são pessoas que ‘se acham’, sem dúvida. O resto, é resto… Relembrando que ‘isenção’ é um vocábulo eivado de subjetividades de todas as nuances – a exemplo de outro conceito também superado nos meios de comunicação: ‘neutralidade’, pela absoluta impossibilidade de sustentação na prática – dá pena que a agência tenha a ingenuidade de falar em isenção na produção de notícias. A quem pretendem engabelar?
Receptora qualificada
Por entender que a Agência Câmara não conseguiu responder de modo satisfatório às considerações que teci sobre um comportamento que qualifico de deplorável e pontuando que liberdade de informação não é o mesmo que liberdade de invenção, deixo nas mãos de leitoras e leitores a indicação para que releiam os dois artigos e que cada um(a) faça o seu próprio juízo de valor. Portanto, penso que não vale a pena gastar mais o meu latim com tal assunto em si. Todavia, penso ser meu dever fornecer mais elementos para adensar a análise que cada um(a) se dispuser a fazer.
E quem disse que o(a) jornalista só deve cobrir o que está pautado? O que não pode e não deve é divulgar como definição algo que não houve. Recordo, mais uma vez, que tanto a CCSF não se definiu por daquela data em diante (19/10/05) pautar o plebiscito sobre aborto, que ele não foi pautado até hoje, independentemente do que o feminismo, o deputado Aldo Rebelo ou os Pró-vida de todos os matizes pensemos sobre ele.
‘Não cabe ao jornalista cobrir apenas o que estava pautado. Ao contrário, ele deve estar atento ao que de fato ocorreu, não se atendo à burocracia da agenda. Talvez, não sendo jornalista, Fátima Oliveira não conheça esse preceito básico da reportagem.’
Não sou jornalista e jamais me apresentei como tal, embora mantenha uma coluna semanal muito prestigiada na página de opinião de um importante jornal mineiro, O Tempo, desde maio de 2002; além do que sou uma receptora qualificada, e não exatamente ‘ignorante na temática’, como crêem as jornalistas Joseane Paganine e Patrícia Roedel, que dão a entender que possuir neurônios funcionantes é exclusividade delas. Ledo engano!
Duas indagações
Para sanar o desconhecimento, a arrogância ou a ingenuidade de ambas, comunico-lhes que sou analista de mídia e preparei-me para tanto de modo primoroso, tendo desenvolvido duas pesquisas na área, durante cerca de três anos, cujos relatórios finais, se for do interesse de ambas, terei enorme prazer de lhes enviar – ‘Bioética & Teoria feminista e anti-racista: informações na grande imprensa/direitos reprodutivos e genética humana’ (bolsista da Fundação Carlos Chagas, 1996, Programa Relações de Gênero na Sociedade Brasileira); e ‘Divulgação e popularização da bioética: direitos reprodutivos’ (bolsista da Fundação MacArthur, agosto de 1998 a agosto de 2000). Nos relatórios finais há uma parte teórica densa sobre a responsabilidade social da mídia, o que me credencia a dizer que a tentativa de rebater uma crítica desqualificando quem criticou e tendo como premissa a ignorância, não é apenas má prática de jornalismo, é arrogância e desconhecimento absoluto que de ‘gerar e publicar informação é um tipo de poder e um grande poder’, no qual não há espaço para ‘isenção’ ou ‘neutralidade’.
Ouso fazer duas indagações: a eticidade da informação só envolve a verdade e a objetividade? Relatar os fatos tal como são percebidos é exatamente dizer como eles ocorreram, ou não seria algo também do campo da subjetividade? Apenas para ilustrar, digo que compartilho da opinião de que as polêmicas sobre objetividade como sinônimo de verdade e de eticidade são muitas:
‘A noção de informação, como a de comunicação, é passível de múltiplas abordagens, com contornos pouco precisos. A confusão persiste quando os autores se propõem a estabelecer a diferença entre os dois conceitos. O termo informação, em português, é polissêmico, apresentando pelo menos três significados distintos: os dados (de um certo problema ou da informática – data), as notícias jornalísticas (news) e o saber de uma forma geral (knowledge)’. (Barros Filho 1996).
Apenas uma saída
Considerando o exposto, muitas pessoas optam por um ou por outro destes três aspectos, ou significados, e outras conseguem ter uma visão de que a informação envolve dados, notícias e o conhecimento/saber. Em qualquer das opções, a exigência ética fundamental é que a informação esteja baseada na realidade da qual se fala.
No senso comum a informação consiste na veiculação da realidade (verdade) de dados e fatos (fatualidade) sem juízo de valor (imparcialidade) e que verdade, fatualidade e imparcialidade são os alicerces da objetividade, a garantia basilar da eticidade da informação. Como têm o dever de saber as jornalistas,
‘a eticidade de um órgão de imprensa não se restringe ao ‘mundo’ de como/onde/por que a notícia é gerada (jornalista) e veiculada (órgão de imprensa), mas é algo que objetiva e possibilita um consenso entre a visão de mundo (a moralidade) de quem seleciona e emite a notícia (jornalista e órgão de imprensa) com o mundo privado/político/ideológico da pessoa receptora (leitor/a).
Portanto, a eticidade informativa é, ao mesmo tempo e simbolicamente, intrínseca ao emissor e à pessoa receptora, mas não restrita a ambos, pois encontra-se intimamente vinculada com o mundo do público/coletivo/social e com os interesses mercantilistas da empresa emissora/produtora de notícias e, sobretudo, com a busca, dentre outras aspirações, de manter forte a fé no produto informativo e consolidar a expectativa da objetividade para sua clientela e para a sociedade’.
Este trecho está no relatório final de minha pesquisa ‘Divulgação e popularização da bioética: direitos reprodutivos’, que reproduzo no livro Olhar sobre a Mídia (CCR/Mazza Edições, 2002). O que exijo é pouco. Tão-somente que eu possa manter a fé no que veicula a Agência Câmara em todos os assuntos. Não peço muito do suor do meu trabalho, que também paga a boa ou má vida de funcionários públicos do meu país, porém exijo respeito com as mulheres que a crueldade do Estado brasileiro permite que morram por abortamento inseguro e repudio jornalistas que se dão a luxo de alegar ‘isenção’ diante de tanta calamidade. Só há uma saída contra isso: a legalização do aborto.
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Médica, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde, da coordenação política das Jornadas pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, autora de Engenharia genética: o sétimo dia da criação (Moderna, 1995, 14ª impressão, atualizada em 2004), Bioética: uma face da cidadania (Moderna, 1997; 8ª impressão, atualizada em 2004), Oficinas Mulher Negra e Saúde (Mazza, 1998), Transgênicos: o direito de saber e a liberdade de escolher (Mazza, 2000); ensaios ‘O estado da arte da Reprodução Humana Assistida em 2002’ e ‘Clonagem e manipulação genética humana: mitos, realidade, perspectivas e delírios’ (CNDM/MJ, 2002); Saúde da população Negra, Brasil 2001 (OMS-OPS, 2002); A hora do Angelus (Mazza Edições, 2005)