Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O diagnóstico que a mídia não faz

Dez dias depois de preso sob os holofotes da grande mídia, que abriu aspas para as declarações incomprovadas dos ‘homens de preto’ e as pirotecnias verbais de autoridades do Rio de Janeiro, o cirurgião Joaquim Ribeiro Filho, referência em sua área, reconhecido por seus pares no Brasil e no exterior, doutor em transplantes hepáticos pela Universidade de Paris, teria desaparecido do noticiário se não fossem algumas curtas matérias relatando apoio de pacientes e outros médicos a ele.


Simples? Não. Jornais, sites jornalísticos e emissoras de rádio e TV estão devendo desculpas pelos equívocos da cobertura inicial, que caiu como uma bomba entre os mais de mil pacientes do estado do Rio de Janeiro que aguardam um fígado numa fila regional – hoje inteiramente paralisada e que há muitos anos anda mal por razões que nada têm a ver com a equipe de cirurgiões que opera no Hospital da UFRJ (Fundão) e em um hospital privado (sim, porque não é ilegal nem antiético operar em hospitais privados).


Quem é generoso com os cruéis acaba sendo cruel com os generosos, diz o ditado. A grande mídia nunca explicou as causas da crise dos transplantes no estado do Rio. Uma crise que é política, e não médica, e na qual os médicos são tão vítimas quanto os pacientes. Como explicar isso em poucas palavras?


De fato, é trabalhoso investigar em vez de ouvir apenas o lado das fontes oficiais, mas isso daria sentido à cobertura – como, aliás, sugeriu o ombudsman da Folha de S.Paulo (10/8/2008), Carlos Eduardo Lins da Silva, o único que li mostrando preocupação com a falta de uma apuração decente (no sentido profissional, não moral) do caso.


Gargalo da cobertura


Veiculam-se na internet diversas manifestações favoráveis ao médico, inclusive um blog que se apresenta como ‘em defesa do transplante e da vida… para dar voz a alguém que foi silenciado e que sempre se colocou na mídia para denunciar o que considerava errado nas políticas públicas para a saúde no Rio de Janeiro’.


Segundo o grupo Tortura Nunca Mais, ‘o expediente da prisão preventiva do Dr. Joaquim Ribeiro Filho fortalece e banaliza um modelo de Estado penal e punitivo, no qual o libelo acusatório da imprensa substitui o processo e as garantias de defesa, os direitos humanos são ignorados e as práticas repressivas de exceção são naturalizadas’.


Editoriais foram publicados, listando as inconsistências das acusações, e o Globo Online publicou uma esclarecedora entrevista de José Camargo, diretor do Centro de Transplantes de Órgão, em Porto Alegre. Mas muito menos gente lê blogs ou editoriais do que lê manchetes, vê fotos ou assiste à TV no horário nobre. E as imagens e as manchetes não se esquecem rapidamente. 


Seria ingenuidade pedir que as TVs renunciassem a abrir microfones e câmeras para a repetição de lugares-comuns sem prova; mas seria igualmente ingênuo pedir uma apuração mais atenta da pauta de saúde nos jornais e nas revistas? Não me refiro à irretocável cobertura dos avanços da medicina no mundo; o gargalo aqui é mesmo no cotidiano coberto pelas editorias de Cidade, que pode influir muito mais sobre as condições de saúde da população do que o anúncio de uma nova droga emagrecedora.


Fila única


Na terça-feira (12/8), uma notícia na página 12 de O Globo escancara uma cobertura burocrática, quase chapa-branca, sob o título ‘Cabral afirma que médicos faltosos fazem covardia com a população’. No corpo da matéria não assinada, que abre com a convencional fórmula ‘o governador criticou’, a presidente do Conselho Regional de Medicina, Marcia Rosa de Araújo, esclarece que os ‘faltosos’ de hospitais da Zona Oeste do Rio simplesmente renunciaram aos empregos diante dos salários irrisórios. Quais são esses salários? E quais são as condições de trabalho em Santa Cruz e Campo Grande? Informações relevantes não foram dadas. Por quê? Falta tempo, faltam repórteres, falta vontade…


Foi dessa maneira, sem se preocupar em dar as informações relevantes no noticiário, escondendo-se atrás das frases feitas, que a grande mídia cobriu o ‘caso’ Joaquim Ribeiro Filho. Passou-se ao público uma percepção de que ‘desviar’ órgãos é quase tão simples como arrancar um dente. Não é, e por vários motivos. Um deles é que o sistema de transplantes no Brasil não é privado. Sequer é misto, aliás. É inteiramente público, com a maior parte dos procedimentos pagos pelo SUS (Sistema Único de Saúde).


Ou seja: você não pode vender ou doar o órgão em testamento, como poderia fazer nos Estados Unidos, onde o sistema é privado. Nosso sistema é parecido com o europeu, que funciona muito bem, com a existência de centros transplantadores – no Rio, esse centro é o Hospital do Fundão. Isso não significa que não se possa operar um paciente, submetido às normas da fila, numa clínica privada às expensas do plano de saúde ou da família. Existe a idéia da fila única nacional, mas ela é formada por listas regionais, por conta do tempo máximo de duração do órgão até chegar ao paciente.


Sistema ineficiente


A captação de órgãos é apenas um entre os recordes negativos do estado do Rio de Janeiro. A Secretaria estadual de Saúde anunciou, logo após a prisão do médico, a intenção de ‘reorganizar’ a fila para ‘elaborar novo ranking’. Convocou para exames de sangue os pacientes à espera de um fígado.


Como assim? Isso contradiz o critério atual para a cirurgia, que é de gravidade do paciente, baseado no índice Meld – e que, feito a partir de exames de sangue, muda de modo quase permanente. Quem hoje está em vigésimo lugar na lista estadual pode fazer novos exames, daqui a um mês, e saltar para o primeiro lugar (o critério anterior era cronológico).


A convocação – jogo para a arquibancada, o que inclui a mídia – foi noticiada sem comentários, o que faz supor, aos olhos leigos, que a equipe do cirurgião de algum modo atrapalhava a tal reorganização. Também se noticiou que há 20% de erros na atual lista fluminense (pessoas mortas, ou já transplantadas). Isso foi indiretamente imputado, também, ao cirurgião e sua equipe. Não cabe dúvida, contudo, de que quem opera tem de fornecer as informações, mas não é responsável por manter os registros burocráticos atualizados.


Também foram buscados pela mídia ‘personagens’ sofredores para demonstrar os ‘podres’ do sistema, como uma senhora que confundiu conceitos ao atribuir à equipe de cirurgiões hepáticos o fato de a fila não andar e sua mãe ainda não ter sido operada. Dar esse tipo de informação como se verdade fosse, abrindo aspas, é primário demais.


E por que se repetiu, também sem qualquer comentário, o anúncio do governador, de que vai fazer um esforço na agilidade da doação? Quer dizer que ele não sabia que o sistema de captação, gerido pelo estado, é ineficiente há muitos anos, com alguns intervalos de excelência? Alguém perguntou quanto se gasta com um sistema cheio de furos? Não que houvesse resposta, mas até a falta desta seria em si uma resposta.


Direito à informação


Pelo menos desde 1994 Joaquim Ribeiro Filho defende, em entrevistas, mais profissionalismo e transparência do sistema RioTransplante. E não só ele. Todos os especialistas da área, e os exemplos brasileiros e estrangeiros, insistem que a captação de órgãos não exige alta complexidade (ao contrário da cirurgia, que é complexa). A simples colocação de acadêmicos de Medicina numa sala com telefones, e que atendam aos avisos de médicos, de hospitais de emergência sobretudo, reportando a presença de pacientes com morte encefálica, é eficaz para salvar outras vidas.


Um doador pode deixar córneas, rim, fígado, pulmão, coração. Mas para isso é preciso, além da sala simples e dos telefones, uma ambulância e um isopor para guardar os órgãos por algumas horas até o momento da cirurgia. Só não é preciso licitação nem obras.


Outra questão a ser resolvida é a constante lotação da UTI no centro de transplantes fluminense, no Hospital do Fundão. Seria preciso determinar – e não só para casos de transplantes – que razões provocam essa situação, que já obrigou os médicos a dispensarem órgãos por não ter como internar o paciente transplantado num local apropriado.


Levar os transplantes para um hospital geral, nos quais a equipe não tem a mesma experiência, seria mesmo uma solução, como tem sido anunciado nos jornais? Qual seria a vantagem, para o cidadão, de trocar uma equipe de alta expertise por uma inexperiente, quando se sabe que no mundo todo a referência são centros transplantadores ligados a hospitais universitários? Há alocação de recursos envolvidos nessa passagem? Se sim, quantos milhões? O público tem direito a esse tipo de informação, ou pelo menos a ser colocado diante de algumas dúvidas.


Questões burocráticas


Mas a área dos transplantes é tão incompreendida que muitos tomadores de decisões e legisladores brasileiros ainda a consideram experimental: a lei 9.656/98, que regula a saúde suplementar no Brasil, não tornou a cobertura para transplante hepático e renal obrigatória para os seguros, algo na contramão do desenvolvimento científico.


O transplante de fígado deixou de ser experimental em 1983 e passou a ser indicado amplamente em 1993, no mundo desenvolvido. Aliás, não foi só o transplante que evoluiu. Na última década, avanços cirúrgicos adiam a necessidade de transplante – como uma válvula que, colocada no fígado, impede hemorragias fatais.


A evolução na área é tamanha que a cirurgia de transplante hepático, que antes demorava de 12 a 14 horas, hoje demora menos de 6. No Hospital do Fundão, as taxas de mortalidade, que eram de 20 a 25%, despencaram e a expectativa de sobrevida em um ano, que se aproximava de 65%, aumentou. O próprio Joaquim Ribeiro Filho, autor de mais de 400 cirurgias, inclusive na França, defende a adoção pelo sistema público de novas técnicas de tratamento hepático que reduzam o sofrimento dos pacientes e os custos do transplante – que seriam evitados se políticas de prevenção se generalizassem no setor. (Mal comparando, algo similar a reduzir os custos do transplante de rim tratando mais cedo a hipertensão arterial, uma das causas de falência renal.)


No caso dos transplantes, destaca-se no Brasil o desconhecimento sobre os custos diretos da cirurgia e a relação entre gastos e retorno em vida útil do paciente. Onde está o levantamento dos custos, inclusive históricos? Por que a mídia não faz isso?


O Brasil é um dos poucos países onde os gestores, profissionais aptos a contribuir para a melhoria do sistema, não estão à frente desse tipo de serviço. Em vez deles, cirurgiões e clínicos deixam suas funções primordiais para envolver-se em questões burocráticas. Então, como me escreveu uma oncologista da UFRJ, não há como ‘os médicos não fazerem besteiras administrativas na correria para salvar vidas’. Também não li uma palavra sobre esse problema grave na grande mídia.


 


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Jornalista e tradutora, Rio de Janeiro, RJ