Trafegar com seus dados pela internet é um direito básico, comparável ao direito de ir e vir, e não deveria se sujeitar a restrições de quem fornece os caminhos para isso. Essa é a opinião do diretor do Instituto Nupef, Carlos Afonso, que também representa o Terceiro Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Nos EUA, as políticas que impediam essas restrições sofreram um duro golpe na terça-feira (6/4) com uma decisão da Justiça. Em parecer, a Corte de Apelações do Distrito de Colúmbia não reconheceu a autoridade da agência reguladora de comunicações, a FCC, de impor ao provedor Comcast normas que controlavam a discriminação do tráfego em sua rede – forçando aplicações como o BitTorrent, por exemplo, a funcionar com velocidade reduzida.
Nesta entrevista ao IDG Now!, Afonso expõe suas ideias sobre a neutralidade na rede e suas implicações para os internautas brasileiros.
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Por que é importante discutir neutralidade da rede no Brasil?
Carlos Afonso – Porque em muitos países (e o Brasil não é exceção) as operadoras de telecomunicações responsáveis por grande parte (ou a totalidade) da conectividade na última milha atuam de maneira arbitrária – na maioria imensa dos casos, sem órgão regulador que possa estabelecer limites e regras de conduta – para maximizar lucros ao vender banda ao usuário final. Isso implica em monitoramento, bloqueio indevido ou degradação de tráfego de vários serviços, e banda real muito menor que a contratada, em função dessa maximização.
Pode a não-neutralidade da rede comprometer o acesso do cidadão a algum direito fundamental? Ou se trata mais de uma questão ligada a relações de consumo?
C.A. – Como o direito básico de ir e vir, ou de trafegar livremente em uma rodovia, está o direito de trafegar seus dados (que são só de sua responsabilidade) de e para a internet sem restrições por parte de quem fornece os caminhos físicos e lógicos para isso.
Nos EUA, a Justiça concluiu que a FCC não tem autoridade para tomar ações em relação à neutralidade da rede. Existiria tal órgão regulador no Brasil? Qual seria o palco legítimo para discussão de uma disputa dessas por aqui?
C.A. – Infelizmente, não existe. Serviços de transmissão de dados são considerados ‘serviços de valor agregado’ fora da legislação que considera telecomunicações como um serviço a ser prestado em regime público, e portanto sujeito a regras de universalização e qualidade de serviço. Esse vácuo regulatório precisa ser preenchido.
De que forma a atual organização do setor de telecomunicações no Brasil interfere na possibilidade de aplicação da neutralidade da rede?
C.A. – Acho que a resposta à primeira pergunta já aponta para a resposta a esta. Temos monopólios privados regionalizados que decidem arbitrariamente a que preços e com que qualidade de serviço as conexões à internet serão oferecidas ao usuário final. Esses monopólios operam de modo cartelizado no país, garantindo que os serviços, além de ruins, estejam entre os mais caros (muito mais caros) entre as 10 maiores economias. Essa situação é bastante objetiva e motivadora da resistência a qualquer regulação que requeira neutralidade no fornecimento desses serviços.
Qual é a situação do conteúdo digital gerado pelas ONGs no que se refere a políticas de gerenciamento de redes dos provedores? É de seu conhecimento algum caso de discriminação de tráfego no acesso a sites dessas organizações?
C.A. – Na verdade, a discriminação é bastante democrática – todos os usuários são afetados, excetuando-se contratos empresariais especiais, claro.
Que relações poderiam existir entre um eventual ‘provedor estatal’ definido pelo Plano Nacional de Banda Larga e a prática de não-neutralidade dos provedores do mercado? Teria uma ação estatal o efeito de ‘equilibrar’ o mercado?
C.A. – Um prerrequisito para um projeto estratégico nacional de universalização da banda larga é a prática de princípios que garantam isonomia e não interferência no fornecimento desses serviços ao usuário final. O CGI.br definiu 10 princípios que podem servir de referência para todo o setor (seja público ou privado) para garantir essas práticas.
Há mesmo possibilidade de fazer com que os provedores abram suas políticas de gerenciamento de rede e as submetam a regras estabelecidas por um órgão regulador? Ou a ‘caixa preta’ sempre existirá aos olhos do usuário?
C.A. – Sem regulação e monitoramento efetivo, essas práticas sempre existirão. O setor não está preocupado em definir selos de qualidade, práticas éticas ou o que seja. Acho que um empresário do setor que decidisse romper com essas práticas teria suas orelhas vigorosamente puxadas por seus investidores… são as regras do ‘mercado’.
Se um internauta brasileiro desconfia que o uso que faz da rede é discriminado por seu provedor, o que ele pode fazer?
C.A. – Recorrer à estrutura brasileira de defesa do consumidor (órgãos públicos e privados) que, uma vez acionada, tem se mostrado eficiente em pelo menos amainar essa situação. Mobilizar-se para insistir na importância de o serviço de conectividade ser prestado de forma isonômica, sem interferência da operadora, com qualidade e a preços justos.