Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O elo frágil da democracia

A coexistência de televisões públicas e privadas fortalece o processo democrático – a decisão é política e custa menos do que investir em armas. O pensamento é do sociólogo francês Dominique Wolton, um dos maiores expoentes, na atualidade, das reflexões sobre a comunicação.

‘Le plus compliqué n’est ni le message, ni la technique, mais le récepteur’ (o mais complicado não é nem a mensagem, nem a tecnologia, mas o receptor), garante o pensador, autor de 16 publicações sobre o tema. Diretor do Laboratório de Informação, Comunicação e Implicações Científicas do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, Wolton alerta que o progresso tecnológico não significa, por si só, o avanço da comunicação humana e social.

No Brasil, Wolton é conhecido por obras como Elogio do grande público (1990) e Pensar a Comunicação (1997), além de outras publicações, todas fundamentadas em mais de duas décadas de pesquisa sobre comunicação política, espaço público, cultura, jornalismo, televisão, informação e novas tecnologias.

Em visita à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde participou de um seminário promovido em 2008 pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Wolton concedeu uma entrevista exclusiva à revista MídiaComDemocracia. O professor Juremir Machado da Silva foi o intérprete e as fotografias são de Gabriela Martins de Oliveira.

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No livro Pensar a Comunicação, o senhor afirma que é impossível, hoje, falar em comunicação sem falar em economia. Que o horizonte da comunicação é o mesmo da democracia: organizar a coabitação pacífica de pontos de vista contraditórios. Partindo dessas premissas, quais seriam, na sua opinião, as mudanças necessárias nos regimes democráticos para garantir uma comunicação também democrática?

Dominique Wolton – Não existe democracia sem comunicação, porque a mídia é a condição da igualdade de democracia para o cidadão, o lugar da discussão dos interesses políticos e, ao mesmo tempo, o pulso da democracia. O problema é que, hoje, a mídia está submetida a uma dupla influência muito forte: em primeira instância, à pressão econômica, através da concentração, e em segunda, à pressão dos políticos que querem controlar a mídia. O que agrava a situação, que já é complicada, é o fato que a elite dos jornalistas, ou a elite das empresas de comunicação, em geral, está muito próxima da classe dirigente. Seria necessário separar muito mais a mídia/comunicação do poder econômico e do poder político. A segunda coisa é o efeito da concorrência entre as mídias, que faz com que, em vez de tratar de assuntos diferentes, todos tratem do mesmo assunto. E esse comportamento mimético acaba por diminuir a confiança que o público tem no jornalista. Então, seria necessário que o jornalismo, apesar da concorrência, fosse menos autorreferente.

Se a televisão é feita fundamentalmente de imagens e laço social, como o senhor já afirmou em livros, associando ideologia e técnica, e se ambas são determinadas pelo mercado e pela política, é possível que a televisão pública num país como o Brasil, por exemplo, consiga recursos e apoio suficiente para expressar as diversidades de seu povo?

D.W. – Em países como o Brasil, a Índia e a Rússia é importantíssimo garantir a concorrência entre o setor público e o setor privado. E a televisão pública pode tranquilamente ser criada e existir, isso é uma questão de decisão política. Ela pode ser financiada seja por uma taxa, seja por impostos, e também, claro, pela publicidade. No Brasil então, em função do seu estilo [generalista], é a Globo [Rede Globo de Televisão] que acaba cumprindo um papel público, apesar de ser uma rede privada. Mas isso não é suficiente, porque, se os diretores da Globo hoje tratam de uma temática mais ou menos de interesse geral, isso poderá deixar de existir. O mais importante é que as grandes democracias devem criar televisões públicas para que elas possam coexistir com as televisões privadas. Isso custa menos do que investir em armas.

Em sua opinião, onde se pratica uma televisão que proporciona esse laço entre as classes sociais? Por quê?

D.W. – A televisão pública, sozinha, não vai fazer tudo isso. Realmente é importante a existência das duas, a competição, a coexistência da televisão pública e da televisão privada. Os cinco países onde existem esses limites em uma televisão pública são a França, a Grã-Bretanha, a Alemanha, o Canadá e o Japão. Nestes, a batalha pela qualidade dos programas é evidentemente uma batalha política, porque do lado oposto tem uma televisão comercial que faz programas visando à audiência.

Um país de dimensões continentais como o Brasil, não estaria carecendo da produção de mais conteúdo local para preservar as diversas culturas e características regionais?

D.W. – Dá para existir as duas coisas: uma televisão pública nacional e televisões regionais. As duas são importantes, porque uma preserva a diversidade de cada região e a outra estabelece um laço social, um vínculo social nacional, integrador.

Ainda em Pensar a Comunicação, o senhor sustenta que, se nos países democráticos destaca-se o discernimento do cidadão nas de cisões políticas através da eleição, esse mesmo cidadão não pode ser considerado um receptor passivo. Isso se confirma no caso brasileiro com o processo eleitoral de 2006? O senhor acredita que o cidadão brasileiro está mais crítico?

D.W. – As eleições de 2006 foram a prova de que o receptor brasileiro não é passivo, porque, se fosse assim, o Lula teria sido sempre derrotado. Todos os políticos acham que, se controlarem os canais, eles vão controlar as consciências, mas não é assim. É claro que a mídia tem uma influência, mas existem muitas contrainfluências, como a religião, a realidade, a conjuntura internacional. A mídia pode ter muita influência quando existe uma incerteza política. Mas mesmo num caso como esse, na perspectiva de uma eleição, pode existir um ‘efeito bumerangue’ dos meios de comunicação. A única salvação contra tudo isso é a pluralidade desses meios, a concorrência entre o público e o privado, vários grupos, vários veículos, cada um dizendo coisas diferentes. Mesmo que um veículo qualquer decida ou queira ter a influência para decidir uma eleição, ele vai pagar por isso depois, se as coisas não saírem muito bem, porque o cidadão irá perceber que foi manipulado. A grande ilusão dos políticos do mundo inteiro é achar que eles controlam as mídias e que também controlam a consciência coletiva.

O que leva o receptor a ser mais ativo? As tecnologias contribuem no sentido da participação política?

D.W. – As novas tecnologias têm um papel moderado na formação dessa nova consciência crítica. É verdade que essas novas tecnologias são um contrapoder, mas de uma espécie frágil, inclusive porque elas podem simplesmente ser compradas pelas grandes empresas de comunicação privada, pelos veículos já existentes, como acontece com os portais, por exemplo. O verdadeiro, o grande contrapoder, aquilo que realmente se opõe à propaganda política são os fatos, as experiências, as pluralidades, as opiniões dos veículos internacionais. Hoje, nós estamos vivendo um tipo de situação em que as pessoas estão muito menos fechadas no seu próprio mundo, elas podem comparar, elas podem perceber o que acontece.

Como evitar que a banalização das notícias e a saturação do receptor se imponham sobre uma comunicação humanizadora?

D.W. – Os jornalistas vão ter que sair um pouco dessa, vamos dizer, ‘obsessão pela competição’, parar de falar só de más notícias e perceber que também há boas notícias, fazer verdadeiras apurações, sair das redações, levar o conhecimento a quem tem necessidade de conhecimento, mostrar independência em relação aos poderes em geral e praticar certa austeridade, certa concisão. Quanto à saturação do receptor, esse é o grande problema enfrentado. Porque depois de certo momento, qualquer que seja o esforço do emissor, as pessoas estarão cansadas e vão desligar o televisor. O outro problema é que elas perdem a confiança no jornalista. E a única legitimidade do jornalista é a confiança que o público possa ter nele. Tudo isso é muito frágil, e os profissionais ainda não perceberam, não se deram conta de que o público é cada vez mais crítico. Depois do descrédito em relação aos políticos, pode ser desenvolvido o mesmo sentimento em relação aos jornalistas.

O conceito de ‘comunicação social’ tende a se esgotar frente à convergência tecnológica e a proliferação das formas de comunicação individuais?

D.W. – Primeiramente, essas novas tecnologias vão ajudar a comunicação social porque elas permitem contatos, através de blogs, grupos de discussão e tudo mais. Mas, num segundo momento, há a possibilidade de acontecer um desinteresse geral. A solução é sempre a mesma: que os jornalistas sejam mais independentes, mais críticos, que parem de viver assim, umbilicalmente, enxergando uns aos outros, e escutem mais, prestem mais atenção ao que a sociedade quer. As pessoas só confiam nos jornalistas na medida em que elas os percebem interessados e com uma postura reflexiva sobre todos os problemas da sociedade. Senão, elas os deixam de lado.

Qual a sua opinião a respeito da teoria do agendamento?

D.W. – Como nós conhecemos, a teoria da agenda setting se resume em dizer que a mídia não impõe o que pensar, mas como pensar. Isso não é completamente falso, mas quanto mais existe desconfiança em relação à mídia, menos o agendamento funciona. A hipótese do agendamento está baseada numa outra hipótese, a de que as pessoas estão realmente obcecadas pela mídia, realmente conectadas aos meios de comunicação. E, se funcionava, se era verdadeiro quando não havia tanta diversidade de veículos, o que mudou depois dessa proliferação de mídias é que há uma relativização do agendamento. O que verdadeiramente conta é que os jornalistas ainda não perceberam que, em função disso tudo, o público se tornou muito mais crítico. O contrapoder jornalístico é fundamental para uma sociedade com características democrática, mas é preciso que os jornalistas consigam ser críveis para o público, que o público consiga acreditar nesse jornalista, senão ele não serve como contrapoder. O jornalista deve repensar a sua profissão, levando em consideração as pressões políticas, econômicas, o crescimento das novas tecnologias, além do fato, é claro, de que o público se tornou mais crítico. O jornalista é o elo frágil da democracia, mas indispensável.