Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O estado da banda podre

A imagem mais emblemática da situação de anomia a que chegou o espaço urbano carioca talvez seja a foto do ônibus em que embarcavam presos 59 policiais militares de um único batalhão, divulgada na quarta-feira (19/9). Anomia significa ausência de regras ou de leis. Embora o fato tenha sido uma conseqüência de medidas oficiais por parte do governo do estado, seu caráter alentador tem um lado sombrio, que é a constatação pública da realidade de um velho diagnóstico sobre a corrupção institucional, muito bem sintetizado na expressão ‘banda podre’, cunhada por Luís Eduardo Soares quando chefiava a polícia do Rio. Cheio de razão, Soares foi, como bem se sabe, defenestrado.

Dias atrás, nos falava um professor português, especialista em literatura brasileira, de quanto o chocava a bonomia com que elites intelectuais e membros da alta classe média se referem aqui à mafialização da cidade. Parece-lhes natural, diz ele, que os jornais dêem conta diariamente de ataques armados e chacinas ocorridas em determinados bairros. Como também ninguém parece sentir-se cúmplice indireto do que acontece, sentem-se à vontade para comentários frívolos sobre o comércio das drogas, quando não à vontade para consumir ou fechar os olhos ao assunto.

Fechar os olhos é não raro percebido como uma solução de natureza ‘terapêutica’. Uma visitante indiana, membro de uma organização internacional voltada para a ‘paz mundial’, aconselhava numa reunião recente com formadores de opinião que não se lessem jornais pela manhã, e sim no final do dia. Ela argumenta que negatividade do noticiário, que atinge aqui os graus extremos de uma escala avaliativa, impregna de tal maneira o espírito do leitor que só lhe resta habituar-se à violência, banalizando-a. Sua sugestão de um ‘jornalismo não-violento’ vai ao encontro de um certo wishful thinking militante, horrorizado com a deterioração da vida social.

A questão espinhosa do território

É realmente uma deterioração de que se trata e tem claramente a ver com a cegueira ou a indiferença social de que sempre deram provas as elites locais na administração do espaço urbano. Existe uma espécie de ‘filogênese’ histórica da territorialização local que se revela homogênea à marginalização de largos estratos populacionais e ao desenvolvimento dos ilegalismos.

Já nas primeiras reformas urbanas se pode observar o germe da matriz que orientaria o crescimento do Rio de Janeiro, em nada diferente daquilo que os teóricos chamam de ‘modernização excludente’, isto é, a aplicação do modelo europeu-moderno a uma parte privilegiada da cidade, acompanhada da segregação territorial dos mais pobres, com as inevitáveis conseqüências da falta de saneamento, riscos de desmoronamentos e violência sistemática. À elite dirigente, de pele clara, caberiam os centros planejados. E já no final do século 20 se tornaria claro para os pesquisadores que a desigualdade social – visível nas diferenças de origem familiar, escolaridade e renda – mostra-se de modo mais brutal nos locais de habitação. A segregação residencial alimenta a desigualdade e a pobreza.

Até mesmo as mais bem-sucedidas administrações da cidade passaram ao largo da questão espinhosa do território. Um bom exemplo é o do médico Pedro Ernesto, que assumiu a prefeitura no início da Era Vargas (setembro de 1931), atraindo intelectuais e gente de prestígio para a sua administração, particularmente nas áreas de saúde e educação. Defensor do ensino laico, ele fundou, juntamente com Anísio Teixeira, a ambiciosa Universidade do Distrito Federal e deu o ponto de partida para hospitais importantes e postos de saúde. Mas no setor fundiário e imobiliário, predominava a aliança com o velho clientelismo local.

420 policiais presos

A cidade oficial sempre finge não ver a cidade excluída, esta mesma que sempre se caracterizou pela ocupação ilegal do solo, decorrente da ausência de políticas públicas coerentes em matéria de produção do espaço urbano. O racionalismo dos planejamentos urbanos, modernista, funcionalista, o que seja, aliado a uma legislação fortemente discriminatória, anda sempre no sentido de neutralizar o que considera como caos, o que equivale a dizer a vida do povo nas ruas, em sua diversidade nem um pouco mecânica.

É essa diversidade que, abandonada a seu próprio movimento, vem assumindo formas perversas e violentas com a cidade oficial, isto é, aquela institucionalmente reconhecida como parceira na distribuição das benesses, dos serviços do Estado. Só que essa violência tomou proporções também não devidamente reconhecidas pela sociedade global como um todo. Agora não se trata apenas de ataques de traficantes, assaltos a motoristas e insegurança generalizada. A cidade, em si mesmo, como uma casa tomada por ‘Poltergeist’, é depredada e pilhada sistematicamente por bandos anômicos. Basta dizer que um único bando, que costuma assaltar na Linha Vermelha, tinha em seu poder 50 toneladas de fios de cobre e uma bobina de cabos elétricos e telefônicos (O Globo, 20/9).

Em determinadas áreas adjacentes ao Rio (São João do Meriti, Nova Iguaçu etc.) é preciso pagar pedágio a bandos armados para se trafegar depois das 22 horas. No âmbito das vans, impera uma espécie de ‘lei do cão’ E dessa pilhagem medievalista, típica do que Marx chamou de ‘modo de produção asiático’, participam, como agora se sabe, homens a quem o estado confiou armas, supostamente para defender a população.

Não se pode dizer que o atual governo estadual esteja indiferente: o Batalhão Especial Prisional, em Benfica, está lotado, com 420 policiais presos, e já se investigam centenas de outros. Mas a ‘banda pobre’ alastrou-se, não dá mais para a sociedade global fechar os olhos em nome do velho ‘estado de espírito carioca’.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro