Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O homem que salvou Lílian Celiberti

‘Hay una pareja uruguaya desaparecida en la calle Botafogo’, dizia a voz, firme mas tensa, que fazia um telefonema anônimo à sucursal da revista Veja, naquela manhã de sexta-feira, 17, novembro de 1978. Perguntei o que significava ‘casal desaparecido’, e o homem respondeu, antes de desligar: ‘Detenidos’.

Começava ali o fiasco do seqüestro de Lílian Celiberti, seus filhos Camilo e Francesca, e seu companheiro Universindo Rodrigues Diaz, localizados e presos em Porto Alegre pelo braço longo da repressão de Montevidéu com a cumplicidade do DOPS gaúcho. Eram as duas ditaduras, a brasileira e a uruguaia, agindo em conjunto segundo os padrões bandoleiros da Operação Condor, a transnacional do terror que unia os generais do Cone Sul no desrespeito às fronteiras dos países e do direito internacional.

A voz que salvou a vida dos quatro uruguaios calou-se, para sempre, na madrugada de sexta-feira (8/12): Hugo Cores, o homem do telefonema, morreu aos 68 anos do coração, em casa, em Montevidéu.

Livre de fantasmas

Durante meio século, este professor de História de testa larga e sorriso fácil ecoou todas as vozes e cores da luta pela democracia no Uruguai, mergulhado na ditadura a partir de 1973. Militante sindical, fundou o PVP (Partido por la Victoria del Pueblo), foi preso, torturado e exilado, seguindo a rotina de milhares de patrícios. Enfureceu os militares quando redigiu no exílio, em 1977, o manifesto de uma Frente Anti-Ditadura.

Era Hugo Cores que Montevidéu mirava quando mandou o comando militar a Porto Alegre. Ele, então vivendo clandestinamente em São Paulo, tinha um encontro naquela sexta-feira, na capital gaúcha, com o casal uruguaio, ambos militantes do PVP. Mas Lílian tinha sido presa na Rodoviária pelo delegado Pedro Seelig, no domingo anterior. No apartamento da rua Botafogo, o DOPS encontrou um telegrama de um dirigente do PVP em Paris, que reclamava do silêncio da uruguaia, obrigada a fazer contato dia sim, dia não.

Ao ligar para Paris, de dentro do DOPS, mesmo vigiada por Seelig, Lílian conseguiu passar uma mensagem cifrada. Paris avisou Hugo Cores, que então localizou meu nome, no expediente da revista, e telefonou para a sucursal. Minha inesperada aparição no apartamento, junto com o fotógrafo J.B. Scalco, desmontou a ratoeira que o DOPS e o Exército uruguaio tinham montado para capturar Cores. O seqüestro virou um fiasco binacional.

Certo de que o alvo maior do seqüestro era ele mesmo, Cores embarcou a mulher, Mariella, e um punhado de livros numa velha Kombi, abandonou o apartamento onde morava e foi se esconder na agitada ‘Boca do Lixo’ de São Paulo. Ele acompanhava a repercussão do seqüestro pelas manchetes, cada vez maiores, dos jornais brasileiros.

Na semana seguinte, ele trocou a agitação da ‘Boca’ pela calma do Guarujá, no litoral paulista. E, à medida que o tempo passava, Cores percebeu, aliviado, que o longo braço do regime de Montevidéu já não o alcançaria mais: ‘Todos os uruguaios seqüestrados no exterior, que são ao redor de 180, estão desaparecidos até hoje. Os únicos que estão vivos são Lílian, as crianças e Universindo. O seqüestro de Porto Alegre foi o único realizado no Brasil e o último praticado pelo Uruguai. Depois dele, nunca mais houve outro’, festejava ele, em 1993, numa entrevista a Zero Hora, reinstalado na capital uruguaia, livre dos fantasmas do passado. Então, com 55 anos, ocupava uma das 99 cadeiras do Parlamento uruguaio, pelo agora legalizado PVP, integrante da frente de esquerda que preparava o prefeito Tabaré Vasquez para a inédita vitória presidencial da Frente Ampla, em 2004.

Operação Condor

A travessia foi longa. Vez por outra uma bomba terrorista tentava perturbar a tranqüilidade do país. Parte deste clima se deve à complicada ‘Lei da Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado’, que livrou os militares de qualquer punição pela tortura que adotaram como forma de governo. Pelo ‘conceito de obediência devida’, todos os torturadores seguiam ordens de seus chefes e, com isso, ninguém precisou pagar nada.

No plebiscito de abril de 1989, para avaliar o que o povo uruguaio achava da ‘Lei da Caducidade’, o país se dividiu ao meio: 52% aprovaram o projeto dos militares, 48% não. Em vez de engolir em seco, o Uruguai ficou com os militares atravessados na garganta.

Nos últimos dias, Hugo Cores estava cuspindo fogo, em seus artigos na imprensa, engrossando o movimento nacional que pede o fim da caducidade. Mês passado, a Justiça começou a agir: botou na cadeia o ex-ditador Juan Maria Bordaberry, acusado de envolvimento no assassinato em Buenos Aires, 30 anos atrás, de dois líderes da oposição uruguaia – o senador Zelmar Michelini e o deputado Gutierrez Ruiz. Era a mesma Operação Condor que funcionou em Buenos Aires e fracassou em Porto Alegre.

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Jornalista, chefiava a sucursal da Zero Hora em Brasília, em 1993, quando Cores admitiu ser o autor do telefonema de 15 anos antes, à sucursal da revista Veja, que denunciou o seqüestro dos uruguaios