Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O imbróglio do voto obrigatório

Em face da rejeição da PEC nº 28, de 2008, que altera o Art. 14 da Constituição Federal, para tornar o voto facultativo (ver aqui) caberia insistir em possível reapresentação da Proposta, tendo em conta o silêncio sobre os fundamentos do voto facultativo no Article 21 da Universal Declaration of Human Rights-UDHR (ver aqui).

Essa questão tem enquadre nas Convenções Internacionais comprometidas com a defesa da UDHR. A PEC nº 28/08 não poderia ser repelida pelo relator em conjunto com outras diferentes e sem o respectivo alcance e aplicação. A devida menção ao Article 21 UDHR devia ter sido conhecida, com mais razão em virtude do caráter moral da citada PEC, originada em sugestão de associação civil, acolhida junto a uma comissão justamente identificada à defesa da UDHR, que, por sua vez, ao produzir a referida PEC agasalhou a mencionada sugestão civil sob o manto da UDHR, como não poderia deixar de fazê-lo.

Ao silenciar entende-se que o Relator adotou por omissão a versão espanhola do Article 21 em detrimento do texto original da UDHR, com o qual aquela versão é dissidente, conforme o parecer ‘Divergence on Article 21 of the Universal Declaration of Human Rights‘ divulgado na WEB da SSF-Think Tank (ver aqui).

O eleitor faltoso

Todo o mundo sabe que o aperfeiçoamento democrático do regime do voto é matéria de Direitos Humanos. O voto obrigatório como qualquer outra imposição de força que restrinja as prerrogativas individuais tem efeito nocivo sobre a sociabilidade, e por esta via macula o princípio acentuado com a globalização de que todos os seres humanos têm direitos iguais à sua própria identidade particular, personalidade, fé e cultura. Suscitando daí a defesa da UDHR que, neste caso, pode ser ensaiada em liberdade de expressão, por quantos respeitem nossa democracia atual e sejam solidários da associação civil originária da PEC nº 28/08, em foco. Tal a orientação deste artigo.

Nada obstante, a defesa aqui visualizada não é abstrata nem despreza as exigências de correção de funcionalidade que toda a ação social deve ter. Se a vontade draconiana é obtusa em face de qualquer alteração que suprima o termo ‘obrigatório’ do Art. 14 § 1º da CF, pode-se pleitear em compensação a imediata revogação por decreto dos dispositivos da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, que preservam em desvario a esdrúxula figura do eleitor faltoso.

Seriam duas ações complementares. A primeira teria em vista reapresentar a PEC nº 28/08 mediante o embargo do Relatório da rejeição, acima mencionado.

A segunda ação pleiteia como foi dito um ato revogatório, e sustenta a tese de que a extinção da esdrúxula figura do eleitor faltoso não exige alteração expressa na redação dos termos do Art.14 CF. Isto em razão de que, com a revogação pleiteada, passaria o voto a ser proclamado como obrigação no sentido de um dever imperioso do cidadão, sem vingar a obrigatoriedade com sanções. Tornar-se-ia uma disposição com incentivo moral mais adequada ao propósito civil de motivar ao comparecimento eleitoral, deixando-se de forçar as pessoas por obediência. Isto perduraria até o momento em que a consciência pública resolvesse instituir expressamente o voto facultativo, e notadamente atenderia à necessidade de desfazer o imbróglio do voto obrigatório, cujo cerne é a esdrúxula figura do eleitor faltoso.

Coação recorrente

Com efeito. A obrigatoriedade do voto com sanções administrativas leva a uma desclassificação do cidadão. Além de sanções cominadas, tais dispositivos draconianos são impostos juntamente com a indisponibilidade das instâncias de recursos, impossibilitando aos eleitores atingidos toda a oposição. Há quem diga que tal cerceamento das instâncias de recursos ofende o Article 8 UDHR, seguinte: ‘Everyone has the right to an effective remedy by the competent national tribunals for acts violating the fundamental rights granted him by the Constitution or by Law‘ [Toda a pessoa tem direito a recurso efetivo para os tribunais nacionais competentes contra os atos que violem os direitos fundamentais a ela concedidos pela Constituição ou pela lei].

Do ponto de vista da UDHR, na democracia o voto é um Direito, não uma obrigação. O voto sob pena de (…) exclui absolutamente todo o Direito. Dizer que o voto é ‘um direito e uma obrigação’ constitui um imbróglio, aumenta a carência de bem-estar e gera desconforto. Em face disto são necessárias providências para suprimir toda a cominação de sanções obrigando ao voto sob pena de (…), a fim de restituir ao cidadão sua prerrogativa, dotando-o das condições que a Constituição lhe concede para impugnar os dispositivos que o ameaçam e o atingem com o referido estigma do ‘eleitor faltoso’.

Vale dizer, sem alternativa para impugnar os dispositivos draconianos que os atingem, aos eleitores classificados como ‘faltosos’ no atual estado de coisas e, ato contínuo, postos ante a recorrência da obrigatoriedade – que reaparece, forçando-os sucessivamente – só resta negar seus direitos/prerrogativas para promover a assim cerceada defesa da votação livre, de que nos fala o igualmente desatendido Article 21 UDHR (vejam o link acima). Isto em razão de que, sob o pretexto de justificar ‘obrigação não cumprida’ há uma coação recorrente que impõe inapelavelmente a declararem-se exatamente (…) faltosos!

Tutela imerecida da cidadania

Em hipótese alguma pudera ser estabelecida em norma oficialmente editada a indevida e abusiva cominação das sanções, situando de antemão o eleitor na perspectiva do ‘faltoso contumaz’ para torná-lo passível de ter bloqueado seu direito de votar e contra isto impossibilitado para oferecer oposição.

Neste sentido, quando, resgatando o ‘direito seu’, uma associação civil solicita providências aos Direitos Humanos e apresenta sugestão em vista de alterar o Art.14 da CF para tornar o voto facultativo, arguida fica necessariamente a Inconstitucionalidade da citada Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, e acolhida está a causa do atingido pela esdrúxula figura do ‘eleitor faltoso’.

Igualmente suscitada está a competente instância de recursos e criada a legítima alternativa jurídica indispensável para embargar e extinguir os obsoletos dispositivos institucionais draconianos que aí estão: no presente caso tal instância é o competente decreto revogatório.

Com efeito, razões para acionar a instância revogatória não faltam. Os radicais dispositivos de voto sob sanções cominadas, que aí estão, (a) são estranhos à estrutura elitária (baseada no primado da representação de interesses e no Pacto Federativo) com sua tradição histórica parlamentar clientelista; (b) têm origem excepcional no regime autoritário e constituem tutela imerecida da cidadania, sem correspondência com a realidade social de um eleitorado que já deu provas de sua vocação para as eleições diretas e aspira em modo justo exercer sua parte no compromisso com a sustentação de um regime democrático.

‘Papel moderante’

Deixando de lado a crosta do establishment e a inércia dos aparelhos burocráticos, ambos não-negligenciáveis como entraves no atual esquema de um voto (obrigatório) moderando o contencioso recorrente dos grupos em luta, pergunta-se: o que falta para que seja proposta e tenha curso possível iniciativa em prol de revogar por Decreto a esdrúxula figura do eleitor faltoso? Lembrando que a Constituição original da República (24 de fevereiro de 1891) somente exigia o alistamento do eleitor e conhecia unicamente o voto não-obrigatório (sufrágio direto), tendo vigorado por quarenta anos – a mais duradoura dentre as sete Constituições Brasileiras depois do regime monárquico.

Trata-se é claro do problema sociológico das relações entre os partidos políticos e os eleitores no Brasil, atualmente subordinadas à intromissão burocrática. Essas relações encontram-se prejudicadas em consequência do costume de convocar os eleitores a votar nas eleições não para expressar seu compromisso maior ou menor com a sustentação de um regime democrático, como deveria ser para atender ao aludido Article 21 UDHR, mas obrigam-se os eleitores a votar unicamente para exercer um papel moderante em face do contencioso recorrente dos grupos em luta, os quais desta forma se revelam incapazes de pactuar.

Na história parlamentar, a proclamação do voto obrigatório veio a ser cogitada como se sabe somente na Constituição de 1934, mas sem as atuais sanções e com propósitos sociais progressistas (assegurar o voto da mulher). Antes disso, o voto não-obrigatório correspondia a uma estratificação social conhecida no Ocidente desde a Renascença e baseada no prestígio dos notáveis locais. Eram exercidos na Primeira República (ou ‘República Velha’ – como se dizia na ultrapassada retórica desenvolvimentista da Revolução de Trinta) como ‘clientela política‘ ou ‘clientelismo‘, na qual se premiava com favores o eleitor que votava ao invés de estabelecer punição expressa ao que não comparecia.

Quer dizer, o voto não-obrigatório praticado ao longo dos quarenta anos de Primeira República no Brasil não era visto como hoje o é o voto obrigatório, unicamente como forma de participar a distância e periodicamente nas disputas políticas. Tampouco o voto não-obrigatório reduzia-se ao ‘papel moderante’ do atual voto obrigatório, embora resultasse do sufrágio direto a maioria necessária para o cargo de Presidente e para as eleições da Câmara dos Deputados, formando um critério de equilíbrio para os grupos em luta (que os havia sim já naqueles idos).

‘Mandonismo local’

Além de forma de participação exercida mediante a escolha de um representante constitucional, o voto não-obrigatório como prerrogativa do cidadão podia valer e valia como um bem individual e personalizado, tendo alcance moral e material: um direito seu.

A República conhecia no cidadão sua posse do seu voto e o indivíduo podia dispor dessa posse para os fins de participar da eleição e para escolher seu representante. Tal o fato normativo da cidadania republicana que a instituição do sufrágio direto tencionava proteger. Este conhecimento do principii individuationis nada tem a ver evidentemente com as posteriores práticas de barganha conhecidas como ‘compra de voto’ – essas práticas decorrentes da estatolatria projetada aos anos trinta o alienariam se ainda fosse preservado o voto como direito seu, e são condutas coibidas por regulamentação específica.

Aliás, embora praticamente não tenha exercido a Democracia para além dos limites do Pacto Federativo dos grandes Estados, devido notadamente às projeções repressivas do mandonismo local (as reivindicações sociais como questões de polícia), cabe notar sem apologia que o primeiro passo da história parlamentar em direção a uma democracia social no Brasil foi dado ainda na Primeira República, com a Ementa Constitucional de 1926, que incluiu nas atribuições do Congresso a capacidade para legislar sobre Direito do Trabalho.

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Obrigatoriedade constrangedora

O sentimento de impotência como lugar da ideologia do absenteísmo.

Todavia há mais. Há os efeitos do referido papel moderante do voto obrigatório, as conseqüências desse costume de convocar os eleitores a votar nas eleições não para expressar seu compromisso maior ou menor com a sustentação de um regime democrático – como deveriam ser para atender ao aludido Article 21 UDHR –, mas obrigam-se os eleitores a escolher unicamente para exercer moderação, como dito acima.

O papel moderante do voto obrigatório, com seu caráter restritivo sobre a votação livre preceituada no supracitado Article 21 UDHR, na medida em que traz consigo a incapacidade das elites em compactuar seus negócios contenciosos, tem reflexo no plano existencial e moral: atinge como foi dito o bem-estar das pessoas, da mesma maneira como qualquer outra imposição que macule os Direitos Humanos tem efeito nocivo sobre a sociabilidade. Só que, neste caso, as pessoas que sofrem tais efeitos não são aquelas diretamente implicadas no contencioso não compactuado dos grupos em luta pelos controles políticos, mas sim aquelas que estão lá na ponta, a saber: nós, os eleitores que, em conformidade com o aludido Article 21 UDHR aspiram exercer sua parte no compromisso com a sustentação de um regime democrático.

Com efeito. Sem mencionar o fato de que, volta e meia, os profissionais que prestam serviço público são chamados como se sabe para apresentar seu comprovante de comparecimento às eleições, o problema existencial com o voto obrigatório é que no mínimo ele é dois: há o constrangimento no ato de votar e há o constrangimento em comparecer aos locais de votação.

Se no ato de votar cada um de nós é obrigado a comprovar que votou nas eleições anteriores para poder acessar a urna, no comparecimento aos locais de votação, por sua vez, cada um de nós é obrigado a aceitar a obrigatoriedade de ir votar, deve estar ciente e consciente de que pode comprovar seu comparecimento às eleições anteriores.

Posto a individuação do ato de votar, o desconforto tem início no momento em que cada um de nós sente ser necessário estar consciente dessa obrigatoriedade constrangedora.

‘Povo ausente’

Como se sabe, há desconforto na experiência de cada um lá onde em maneira geral a domesticação do outro penetra na formação das mentalidades. Quer dizer, sempre que os amparos à afirmação do indivíduo, notadamente as relações ativas com outrem, deixam de vigorar ou simplesmente mudam de função e, ao invés de suscitá-la, passam a reprimir a afirmação individual positiva, mais ou menos consciente da liberdade (escolha, imagem ideal a alcançar, aspiração) pode-se constatar o desconforto – seja como decaimento ou falta de vitalidade, seja como inquietação moral.

Objetivamente, o desconforto faz parte do processus em que, por um desenvolvimento posterior, os indivíduos se tornam condicionados socialmente, equiparados ao sistema dominante na ambiência em que tomam parte.

É este processus de domesticação que se observa no regime do voto obrigatório, em tal modo que o argumento draconiano da ‘obrigatoriedade / absenteísmo’, reforçado pela mídia, vem a ter eco nos indivíduos, tornando-se um standard da mentalidade desse sistema.

E não há exagero nisto. Basta lembrar que, datando de 1965, como dito acima, a lei instituidora de sanções cominadas sobre os eleitores releva do autoritarismo tecno-burocrático e foi concebida exatamente para cercear previamente qualquer tentativa de boicote das eleições indiretas então estabelecidas. Daí o suposto combate ao pretenso absenteísmo como característica do establishment.

Nada obstante, o desconforto se agrava, torna-se consciente quando cada um de nós é provocado a refletir sobre sua postura em relação ao voto obrigatório, formar sua opinião a respeito de si como eleitor. É quando o sentimento de impotência fala mais alto: posso me opor a tal ordem? Tal o lugar mental do discurso draconiano: o absenteísmo como mistificação da impotência.

De fato, o mito do absenteísmo só toma corpo como argumento do ‘povo ausente’ porque cada um de nós padece o sentimento da impotência ante a obrigatoriedade constrangedora e, então, faz eco à proposição de que o voto deve ser obrigatório porque ‘o povo precisa aprender a votar‘.

Agravamento do desconforto

E isso é assim porque há uma inversão no lugar da ideologia. Basta lembrar que, na história parlamentar e como cidadão da República, o eleitor brasileiro nasceu felizmente antes da obrigatoriedade do voto.

Vale dizer, a obrigatoriedade como imposição legal do voto sob sanções não é um instrumento originalmente inserido pela República para sua defesa, como pudera haver ocorrido em outras sociedades periféricas sob o neocolonialismo.

Por sua vez, em nossa história, o voto obrigatório tampouco surgiu como ideologia draconiana, mas como simples instrumento proclamado de defesa da cidadania socialmente ampliada.

Daí que é difícil compreender a obrigatoriedade constrangedora vigente sem levar em conta a existência do estado de impotência do eleitor que lhe dá o suporte.

É porque o eleitor encontrou-se impotente para opor-se e exercer a votação livre preceituada no supracitado Article 21 UDHR que se passou a fazer eco ao argumento absenteísta e, por esta via de recorrência, submeteu-se, subordinou-se, configurando-se uma psicossociologia da obediência na base do sistema do voto obrigatório compondo a estrutura elitária em nossa democracia, em plena consonância com o papel moderante do mesmo – os resultados das eleições por mais disparatados que sejam decidem os contenciosos não-pactuados, valem como decisões finais do juiz: não se discutem! São obedecidas, cumprem-se!

Daí o agravamento do desconforto com o voto obrigatório: constrangimento no ato, constrangimento na presença, constrangimento na aceitação reflexiva do (…) constrangimento!

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Sociólogo, Rio de Janeiro, RJ