Mais do que segredos militares e diplomáticos, o advento do polêmico site WikiLeaks está desvelando, perante os olhos das sociedades ocidentais ditas democráticas, toda a hipocrisia e contradição dos discursos habituais dos governos e do establishment midiático tradicional. Vamos analisar, primeiro, as reações tupiniquins ao WikiLeaks. Nos últimos anos, temos visto a mídia brasileira espernear contra qualquer tipo de discussão a respeito de marcos regulatórios para a imprensa, supostamente em defesa da mais ampla e irrestrita liberdade de informação (e, por tabela, ignorando por completo a diferença elementar entre ‘liberdade’ e ‘libertinagem’ de imprensa).
Pois bem: agora, que Julian Assange foi convertido em ‘criminoso’ caçado pela Interpol, onde estão os bravos e destemidos defensores da liberdade de imprensa absoluta e irrestrita? Onde estão os editoriais coléricos, bradando contra a postura orwelliana do governo dos Estados Unidos e das instâncias internacionais a ele subordinadas? Onde estão os colóquios, seminários e simpósios sobre liberdade de informação como condição de possibilidade para a democracia, para reconhecer o fenômeno WikiLeaks como uma consequência natural da evolução conjunta da tecnologia, da democracia e do acesso à informação, e não como um empreendimento terrorista capitaneado por um criminoso?
Constrangida entre o desejo de ver o fim do WikiLeaks e a preocupação de ser acusada de evidente contradição em seus discursos libertários, a mídia brasileira ora se abstém de emitir juízos de valor sobre o tema, ora tenta conciliar (sem sucesso, é claro) as suas contradições latentes. Em editorial do jornal O Globo, publicado na internet em 02/12/2010, Ricardo Noblat afirma que o problema de Assange seria ‘não pensar duas vezes antes de divulgar tudo o que lhe chega às mãos, sem critério, como demonstra a atuação do site’.
O que ‘interessa’ ou ‘não interessa’
Segundo Noblat, é nesse ponto que a superioridade da ‘velha imprensa’ se manifesta, pois ‘estas redações exercem um papel estratégico de filtro, ainda mais essencial no universo da internet, um avanço tecnológico histórico, mas que também serve para toda sorte de malfeitorias: denegrir pessoas e instituições, caluniar, manipular com interesses político-ideológicos etc.’ (como se nas redações dos jornais e revistas não ocorressem frequentemente essas mesmas práticas).
Noblat elogia as redações de jornais como o New York Times e Guardian, afirmando o seguinte: ‘Tem sido exemplar o comportamento destas redações. Em duas ou três semanas, antes da primeira publicação coordenada da série de matérias, editores se lançaram a um enorme trabalho de garimpagem, para escolher o que lhes interessava, e de triagem. Como sempre ocorre nestas situações, tem de ser pesado o interesse público das informações, se a divulgação delas colocará em risco a integridade física de pessoas e avaliar-se até mesmo questões de segurança nacional – as quais costumam ficar em segundo plano diante do interesse da sociedade.’
Censura prévia em nome da ‘segurança nacional’? Redações escolhendo ‘o que lhes interessa’ publicar? Ponderação de princípios no sentido de limitar/mitigar a liberdade de imprensa e o livre acesso à informação? Ora, mas isso não representa tudo aquilo que a imprensa brasileira, até anteontem, identificava com a censura, com o abalo das instituições democráticas e com o ‘perigo’ do ‘avanço do autoritarismo’ na América Latina? O pressuposto implícito do referido editorial é de que as redações são entidades suprademocráticas, capitaneadas por sábios, aos quais cabe decidir, com base em seus juízos de valor subjetivos, aquilo que ‘interessa’ ou ‘não interessa’ publicar.
‘Último poder’
Repare que essa prerrogativa de censura, aparentemente, é intransferível: o governo democraticamente eleito pelo povo não pode fazê-lo. O legislativo eleito pelo povo também não pode fazê-lo. Só quem pode decidir o que a patuleia inculta deve ou não ficar sabendo são as redações dos jornais e revistas, estas invejáveis távolas redondas de sábios magos.
Mas, em se tratando do desvelamento das hipocrisias, o editorial do jornal O Globo não é nada na comparação com as palavras de Geoff Morrel, secretário de Imprensa do Pentágono. Entrevistado há dois dias pela rede de televisão norte-americana Fox News, Morrel foi perguntado sobre o por quê de o Pentágono não ter se utilizado ao máximo de seus recursos tecnológicos para tirar o site WikiLeaks do ar. Tão assustador quanto sincero, Morrel respondeu que não existia motivo para preocupação diante do vazamento dos documentos secretos porque, afinal de contas, ‘as pessoas não fazem negócios com a América necessariamente porque gostam de nós, ou mesmo porque confiam em nós. Eles o fazem porque precisam. Nós somos o último, o único, remanescente e indispensável poder’.
Para nós – resilientes idealistas que ainda acreditamos em democracia e sonhamos com a sua plenitude –, diante dessas alarmantes sequências de eventos envolvendo o WikiLeaks e seu criador, só resta desejar o seguinte: Assange, que a força esteja com você! Pode ter certeza de que ele vai precisar.
******
Advogado e mestrando em Direito Público pela Unisinos, RS