.1.
A palavra utopia tem todo tipo de usos. Admito que é uma utopia falar do triunfo da seleção colombiana de futebol enfrentando o Brasil. Mas também se falou de utopia quando se apresentou a idéia de construir Brasília; na Espanha do século 15 soou utópica a proposta do marinheiro genovês que falava em encontrar um caminho para as Índias além dos abismos do mar tenebroso, e no século 20 o projeto de Werner Von Braun (1912-1977), de colocar um homem na Lua soou como um absurdo utópico.
A utopia não serve apenas para aclimatar na realidade os nossos sonhos, também disfarça nossos medos e impotências. Volto ao meu primeiro exemplo, falar da utopia colombiana de vencer a seleção de futebol do Brasil disfarça o medo de uma derrota e a impotência para constituir uma equipe que possa se mostrar decorosamente nos campos.
A todos esses usos da palavra utopia acrescentarei hoje um novo, ao falar da utopia ética.
**
Temos que aceitar que é utópico falar de ética a jornalistas que recebem salários ruins. Ouço isso em todos os lugares da América Latina aonde chego a falar sobre o tema. Um jornalista com problemas para pagar o supermercado semanal de sua família, ou para pagar o seu aluguel, ou a educação, ou a saúde, ou o vestuário de sua família, condenado ao duplo oficio de repórter e de vendedor de publicidade, é um trabalhador à beira do suborno para sobreviver, ou obrigado ao heroísmo para desempenhar decorosamente seu trabalho. Ninguém pode ser obrigado ao heroísmo diário. Nessas condições a ética é uma utopia.**
Tem muito de utopia a pretensão de fazer jornalismo político ético, quando o meio de comunicação é conduzido por políticos em exercício, por candidatos em campanha ou por ativistas políticos com planos de transformar a informação em propaganda. Todos conhecemos essa situação nos países latino-americanos onde os meios de comunicação fazem parte principal do arsenal que fornece aos políticos armas eficazes. Diante da alternativa de servir com a informação a todos os eleitores, ou somente aos partidários de um grupo político, para o jornalista não há escolha possível: a aposta é pelo candidato ou partido da casa, e ponto final. É claro que aí a ética aparece como uma utopia.**
Uma situação parecida se apresenta ao jornalista que no cumprimento do seu ideal ético se propõe a fiscalizar os atos de um governo que fornece a seu meio de comunicação as finanças indispensáveis, através da publicidade oficial. Se o governante reclama direta ou indiretamente, pudica ou impudicamente a contrapartida por sua ajuda econômica, o dever ético de fiscalizar assume a categoria de uma sonora utopia. Entre a possibilidade de manter ‘flutuando’ a empresa jornalística com ajuda do dinheiro oficial, ou a de deparar-se com uma frágil e difícil situação econômica, é claro em muitas empresas que em primeiro lugar está a saúde do caixa, mesmo que as utopias da ética devam ser postergadas.**
Sentimos distante a utopia ética quando o dever da verdade para com os leitores expõe e põe em questão a publicidade comercial com a qual se sustentam jornais, canais ou estações de rádio. A publicidade é o reino das meias verdades onde as bondades de produtos, instituições ou pessoas se magnificam, e suas fraquezas ou defeitos se disfarçam. O jornalismo, ao contrário, é ou deve ser o reino das verdades completas. Quando em nome dessa verdade e dos direitos do leitor, o meio ou o jornalista devem optar pela verdade-serviço ou pela meia verdade publicitária que paga ao meio, o mandato ético que privilegia como dever à verdade completa soa como utopia. Como ir na contramão dos interesses comerciais dos donos do anúncio que sustenta a economia do meio, e tudo em nome do compromisso ético da verdade total? Como esquecer que a publicidade é ao mesmo tempo uma meia verdade e um apoio financeiro aos meios jornalísticos? Sob a luz dessa inegável realidade, os mandatos éticos de compromisso com a verdade aparecem como uma utopia.Situações adversas
**
A luta entre utopia e realidade se apresenta na própria mesa de trabalho do jornalista quando a ética impõe o dever de confrontar fontes, ou localizar três ou quatro ou mais fontes diversas e o relógio sentencia, inapelável, que não há tempo para isso. O que fazer? Mandar a ética para a lata de lixo e entregar a tempo uma informação de uma ou duas fontes de mesma perspectiva, ou apostar tudo e esperar até o dia seguinte quando tenham sido localizadas todas as fontes? A cara amarga do editor ou do chefe de Redação seria suficiente argumento para encontrar o rosto utópico da ética.**
Pois uma é a cara amável e dignificada da ética nestas conferências e nos manuais, e outra a que nós descartamos quando, publicada a crônica sobre corrupção, na qual todas as armações dos corruptos são expostas, e outra quando chega a resposta dos corruptos na forma brutal de uma ameaça. A voz delicada da ética que te indica que antes de tudo deves a verdade a ti mesmo e à sociedade, que necessita conhecer quem são e como operam os corruptos, é uma voz que termina abafada pelo tom bronco e imperativo da ameaça: ou se cala ou morre. Quando isto acontece pensamos descobrir, por meio do terror, que a ética é uma utopia.**
Não é tão dramática a situação de quem não dispõe de mais recursos para informar do que os boletins da imprensa, as entrevistas coletivas, as previsíveis fontes oficiais, as ajudas das agências de relações públicas ou a propaganda oficial. Com tão duvidoso material sobre a mesa de trabalho, o jornalista recorda as exigências éticas de uma informação integral, independente, contextualizada, enriquecida por todas as técnicas de interpretação científica, e conclui que a distância entre sua percepção da realidade e o dever de ser um jornalismo de excelência é tão grande que a conclusão se impõe: em minhas circunstâncias e com meus recursos, a ética é uma utopia.**
Acrescentem mais elementos reais: como as fontes que mentem ao jornalista, os editores-ditadores que não enxergam além de suas ordens, colegas de trabalho que nunca param de ruminar suas inseguranças e frustrações, instrumentos de trabalho sem motivação nem estímulo e um ambiente rotineiro e adverso a qualquer iniciativa de mudança ou de superação. Neste marco, falar de ética, que é um constante chamado à excelência pela via da autocrítica e do melhor serviço ao leitor, deve soar como uma voz estranha, exótica, quase burlesca, pois em um meio como esse a ética aparece como uma utopia.Eu poderia continuar enumerando situações adversas para quem quer exercer um jornalismo ético, mas não quero angustiá-los nem me angustiar. Qualquer dessas situações pode ser um argumento para dizer que a ética, com sua convocação à excelência é uma utopia irrealizável.
.2.
Em Atenas os sofistas faziam um exercício de acrobacia intelectual ao qual chegaram a aficcionar-se os atenienses. Consistia em defender desde a tribuna dos oradores uma tese qualquer, em longas e brilhantes exposições retóricas, e no dia seguinte, diante do mesmo auditório, provar com o mesmo brilho e clareza a tese contrária. O exercício colocava à prova a agudeza e o engenho do orador, mas ao mesmo tempo chegou a sustentar a doutrina dos sofistas, ou seja, que não há verdades absolutas e que toda afirmação tem, como os poliedros, caras distintas.
Façamos agora esse exercício e depois da visão obscura e pessimista do início, ensaiemos a descoberta de um jornalismo reconciliado com a utopia e do qual também se possa afirmar que a ética jornalística é uma utopia.
Estou me referindo em primeiro lugar a essa classe de jornalismo que vocês conhecem, que talvez pratiquem diariamente, que está convencido do seu poder. Não é poder da força, nem da chantagem, nem da imposição brutal. Mas sim o poder da influência, essa força silenciosa que cresce na consciência individual e coletiva e que está presente na hora em que se tomam as decisões. Este é um jornalismo presente na história local e nacional, porque sua informação diária criou uma forma de ver os fatos, de olhar o país e de enfrentar problemas, soluções e processos. Quando isto ocorre, meios e jornalistas enfrentam cada nova jornada com a certeza de que fazer jornalismo é ter a oportunidade de mudar algo todos os dias, que é a formulação que deu Gabriel García Márquez à utopia fundamental do jornalismo: ‘Registramos os fatos para mudar a história’.
Claro que é uma utopia essa convicção crescente nos melhores do grêmio para os quais sua tarefa vai além da somente reprodução mecânica de boletins, documentos ou entrevistas. Esta das reproduções é uma etapa que quando superada dá lugar a umas tarefas complexas e ambiciosas de interpretação daquilo que acontece, a uma elaboração de conhecimento, que é o resultado do processamento da informação, em busca de uma visão mais ampla, com perspectiva de futuro, dos fatos de cada dia. Não estou falando de teorias de universidade, mas de realidades concretas como as que viveu e protagonizou o grande polaco Ryszard Kapusciski. Ele dizia:
‘O homem inteligente compra o jornal para encontrar as explicações daquilo que estava ocorrendo na tarde anterior nos telejornais. Para dizer algo novo a esses homens e mulheres pensantes que compram o jornal com a expectativa de encontrar explicações e estímulos à reflexão, nós os jornalistas devemos ser cem vezes mais sábios do que eles. Isso nos impõe a tarefa de estudar continuamente’. [Ryszard Kapuscinski: Los cinco sentidos del periodista. Fondo de Cultura Económica, México, pp 41-42]
É utópico, mas uma utopia obrigatória se queremos responder às exigências profissionais da atualidade.
Metáfora brilhante
São utopias obrigatórias porque nós as impomos a nós mesmos. Bem como ocorreu no dia em que decidimos ser jornalistas. Deixadas de lado as motivações bastardas: seguir uma carreira fácil e sem matemática, seguir uma carreira divertida que nos torna famosos e ricos. Deixadas de lado essas criancices, apareceu a utopia de construir realidades com palavras. Depois o desafio foi o de transformar esses relatos feitos com palavras em conhecimento. Já é por si só suficientemente ambiciosa a tentativa de reduzir fatos a algumas frases.
Desde sempre foi um desafio criador que as palavras se convertam em fatos. Disso dá uma majestosa ilustração o gênesis: disse Deus e foram feitas todas as coisas. Mas no caso do jornalista o processo é inverso, ele transforma os fatos em palavras, para que muitos, incontáveis receptores de suas notícias se transformem em testemunhas de fatos que não viram e dos quais estiveram distantes, no tempo e no espaço. Enunciado dessa forma, é uma ambiciosa utopia que esteve na origem consciente de qualquer vocação jornalística. Mas é a utopia que nos mobiliza todos os dias: aprisionar a vida que foge na prisão de nossas palavras.
E apesar de ambiciosa e alta, a utopia do jornalista não para por ai, pois não se trata de contar os fatos somente por contá-los. Há um para que desse ato de contar. Se o escritor for indagado pelo objetivo de sua criação literária é porque se trata de um ato que vai além da criação artística. A pessoa é jornalista para contar o que sucede e fazê-lo com eficácia, mas não é só isso. Nossa utopia é transladar os fatos a palavras, pois assim abrimos caminho rumo ao conhecimento e, uma vez ali situados, aportamos a matéria prima da liberdade.
O homem é livre quando decide, a partir do conhecimento da realidade; só assim age sobre essa realidade para transformá-la. Soa a utopia, mas informamos para que a sociedade seja mais livre. É a utopia que explica as mobilizações na Venezuela por um canal de televisão, a persistência dos grandes jornais em incorporar técnicas e conhecimentos que lhes permitam informar cada vez melhor, também explica a paixão do jornalista para conhecer em primeira mão e sem risco de alteração dos fatos aquilo que sucede. Não é suficiente para nós ver publicado nosso trabalho, aspiramos mais. Queremos que essas nossas histórias se acolham no conhecimento e na consciência dos leitores para que enxerguem claramente, sejam cada vez mais livres na hora de decidir e produzam mudanças. Essa é a nossa utopia, criar uma sólida base para a liberdade.
Talvez Joseph Pulitzer (1847-1911) não tenha se proposto a isso, mas propiciou a aparição de uma brilhante metáfora disto que estamos dizendo, quando convocou os leitores de seus jornais a dar contribuições para construir um pedestal monumental para a Estátua da Liberdade em Nova York. Nós os jornalistas construímos, com o conhecimento que comunicamos, uma sólida base para a liberdade da sociedade. É nossa obrigatória utopia.
Tempo sem limite
Em 1950 Albert Camus (1913-1960) lançava um olhar pessimista sobre o mundo, transformado em um imenso maquinário da mentira. Desde então as coisas não mudaram, se agravaram e se fortaleceu e sofisticou esse maquinário de mentir, de modo que, o século 20 deixou para esse nosso século, como ovos envenenados, a mentira como instrumento de poder. Hoje o poder mente porque a mentira está na sua essência; e a mentira do comércio, que é a publicidade, essa refinada arte de dizer meias verdades e de manter ocultas as outras metades. Nesse contexto se movimenta a utopia jornalística de dizer a verdade, nada mais que a verdade e somente a verdade.
Isso é o que nos propomos todos os dias, encontrar e dizer a verdade de algo. Sentimos que é nossa tarefa, mesmo sabendo que todos mentem. Sabemos que as verdades obtidas com trabalho árduo, crescem como frágeis plantas e cercadas de inimigos. Todos querem destruir ou menosprezar as verdades dos jornalistas que são, geralmente, classificadas como inconvenientes, ou prematuras, ou perversas, por aqueles que preferem o alucinógeno da mentira. Entretanto persistimos na utopia da verdade.
Sabemos das nossas limitações para chegar à verdade, nem sempre podemos remover os obstáculos com os quais se costuma fechar o acesso à verdade e, entretanto, todas as manhãs esse é o nosso programa diário: encontrar a verdade de algo.
Os filósofos, século após século, têm acumulado argumentos para demonstrar que o entendimento humano não pode aspirar a obter a verdade de nada; mas ninguém nos tira da cabeça que estamos ali, em algum meio de comunicação para encontrar e difundir todos os dias a verdade dos acontecimentos; é nossa utopia, tanto mais arraigada, pois é ao mesmo tempo, a razão de nosso orgulho profissional.
Essa utopia produziu mortos. Nós os recordamos como mártires da liberdade de imprensa, sentimos que cada um deles elevou o nível de dignidade desta profissão. E é verdade, da mesma forma que são testemunhas da utopia jornalística. Eles estavam convictos de que não havia poder mais forte do que a força da verdade. Foi tão forte essa utopia que com ela amarraram o animal desembestado de seus medos e sentiram-se protegidos por trás de sua condição de jornalistas. Os assassinos os olharam como iludidos que se alinhavam por trás de suas trincheiras de palavras e de sua frágil bandeira, a verdade. E quando os mataram, outros tomaram essa bandeira e seguem atrás de suas utopias. A verdade é que quando os violentos pensaram ter colocado um sangrento ponto final, a persistência da utopia transformou esses assassinatos em um ponto e vírgula. Hoje ninguém lembra dos assassinos, mas sobrevivem os nomes dos jornalistas assassinados. E se mantém a sua utopia.
Há uma utopia que se soma àquelas que animam o jornalista, apesar de tudo. A gente se surpreende ao comprová-lo, mas é assim.
Refiro-me à utopia da imortalidade, essa que construiu pirâmides colossais, monumentos funerários, aquela que aparece nas placas de mármore ou de bronze que perpetuam o nome de algum funcionário, diretor, construtor, governante ou mecenas. Essa utopia é aquela que silenciosa, mas efetiva, estimula ao jornalista. A notícia de nossa autoria, a investigação que revela algo que não se sabia, o personagem: esportista, político ou intelectual que evidenciamos, são sinais que lançamos para sobreviver no tempo. Embora inconscientes, na maioria dos casos, queremos viver o tempo sem limite da imortalidade. É nossa utopia.
.3.
Estas duas enumerações, a primeira em clave de não e esta última em clave positiva, demonstram que há dois tipos de utopia: a que nos serve como desculpa para nossos medos e covardias, ou de nossa preguiça, ou de nossa surpresa diante da grandeza que também para nós é possível.
A outra utopia é o chamado a estarmos por cima de nós mesmos. Dizia Friedrich Nietzsche (1844-1900) quando escrevia que se via por debaixo de si mesmo. Talvez reproduzia a Sêneca quando recomendava montar sobre os próprios ombros [citado por Antonio José Marina, Etica para Náufragos. Anagrama Barcelona 2006, p.15]. Distintas maneiras de dizer a mesma realidade que é a que todo ser humano é uma possibilidade, ou se vocês quiserem, que não há ser humano que já seja uma obra acabada. Os humanos sempre estão em obra, a todo o momento há um trabalho em andamento, como acontece como as cidades que nunca terminam de construir-se. A vida humana é um processo interminável de construção e aperfeiçoamento.
Como humanos e como profissionais nos construímos à imagem e semelhança de nossas utopias, que são as que impedem que permaneçamos como essas construções inacabadas. A utopia explica o melhor do jornalismo que se está fazendo, mas, além disso, é razão pela qual os melhores são os menos satisfeitos com o que fazem porque têm uma viva consciência de que sempre é possível fazê-lo melhor. Esse é um impulso que não conseguiram deter editores medíocres, diretores sem visão, publicistas, políticos, ou governantes que pretendem uma imprensa sob sua medida pobre, ou assassinos que acreditam no poder superior de suas armas.
Tudo isso me faz pensar que é preciso olhar a utopia além do preconceito, do medo, da preguiça ou da covardia, e perguntar-se: o que é utopia?
Utopia é um vocábulo que devemos a Tomas Morus (1478-1535), que uniu duas palavras gregas para significar o lugar que não existe. Deixou como opções aos leitores entender que se é um lugar que não existe, utopia é um vazio definitivo; ou que não existe porque a utopia deve ser construída. Em nenhuma parte Morus afirmou que a utopia é impossível. Ele mesmo constrói aquele lugar de tolerância e de liberdade no decorrer de seu relato. Platão já havia tentado, não em um livro, mas na realidade, quando quis fazer de Siracusa a democracia ideal, e pensou no filósofo rei; não conseguiu e obteve em troca uma temporada na prisão. Mas a utopia ficou e permanece.
A história do pensamento está atravessada, como por raios de luz, pelas distintas descrições desse dinamismo do espírito humano, cujos primórdios acreditam encontrar os estudiosos nos heróis homéricos como Aquiles, doutrinado por seu pai Peleas para ser ‘sempre o melhor’. Este é um dos personagens arrancados de seus limites e lançado ao domínio da possibilidade, segundo a expressão de Lledó [Emilio Lledó: Memoria de la ética. Santillana, Madrid, 1996, p. 32]. A utopia, de fato, nasce nos terrenos do possível. Que é um dos terrenos favoritos do jornalista.
Território de máximos
Reviso velhas coleções de jornais e encontro os clássicos editoriais inaugurais: ‘Esta será uma voz argentina, clara e valente’, foi a apresentação à sociedade de Noticias Gráficas; a história do jornalismo mexicano recorda El Popular, que apareceu como um jornal ‘a serviço da nação’. Nas hemerotecas de Honduras se conserva o arquivo de La Epoca, em cujo primeiro número se lê: ‘Pensar alto, sentir profundo, falar claro’, que foi seu cartão de entrada. E notificava ao nascer, como o primeiro grito, Prensa Libre de La Habana: ‘Nem com uns nem com outros, e sim com a República’.
O fundador do jornal mais antigo dos que hoje circulam em meu país escreveu, em 1887, que El Espectador não é um negócio e sim um serviço público, ‘para difundir e propagar as idéias liberais’. Um enunciado parecido foi o de El Colombiano, de Medellín, que em 1912 apareceu ‘para contribuir ao bem-estar da pátria’. El Tiempo, de Bogotá, afirma que ‘sua missão é informar cada 24 horas de maneira oportuna, objetiva, imparcial e veraz’. O Washington Post também o diz com certa solenidade: ‘Seu objetivo é a busca intensa, responsável e imparcial da verdade’. Em 1870, quando nascia o ano, La Nación, de Buenos Aires, apontou alto: seria ‘tribuna de doutrina’. E em 1945, Roberto Noble criou um jornal moderno e inovador, com independência de critério, seriedade profissional e compromisso com o país, segundo recordou a presidenta e diretora editorial do Clarín.
Os editoriais de El Listín Diário, de Santo Domingo, mantêm o tom. Lá se lê o propósito de ‘lutar agora e sempre contra tudo que possa ser obstáculo para o progresso moral de nosso povo. Tal é o nosso dever’. Este jornal havia nascido como um prosaico registro dos barcos que entravam e saiam do porto e das mercadorias de importação e exportação, que era o conteúdo das tábuas escritas faz cinco mil anos e descobertas no templo de Uruk. A imortalidade da escrita se colocou a serviço de umas contas de sacos de cereais e cabeças de gado que entravam no Templo. A escrita alcançou toda a sua dignidade quando se colocou a serviço de utopias como as que vibram naqueles velhos editoriais. São textos nos quais a utopia é levada a sério. Esses jornais nasceram inspirados em uma utopia. Neles, da mesma forma que nas constituições e na primeira página dos diários pessoais, fala a utopia, essa voz interior que convence a todo ser humano da necessidade de corrigir o presente e de construir uma realidade melhor.
Que é a que recordam, insubornáveis, os códigos éticos. Quando lemos estes códigos, temos a sensação de entrar em um território de máximos, de requerimentos que superam o real de cada dia. A ética se situa em níveis mais altos que o real, como expressão, não de outra realidade, mas elevada à sua mais alta potencialidade.
Realidade desafiadora
Fundada na natureza do ser humano, parece estar calcada no perfil dessa natureza, a ética assinala todas as possibilidades que cabem ao ser humano. E essas possibilidades têm a altura das utopias. É a utopia do ser humano perfeito que sonharam os filósofos, é a do homem novo que é o cume dos sonhos revolucionários. Acreditou-se vê-la nos santos e a igreja celebra o achado de sua utopia em cada canonização; entre os gregos foi o herói, para os romanos foi o guerreiro vencedor, no século das luzes foi o cientista, o substituirão depois os técnicos. Também teve seus vislumbres no empresário, para muitos foi o astronauta, e talvez tenhamos entrado na decadência das utopias até chegar aos baratos olimpos de hoje, povoados de futebolistas, cantores ou estrelinhas do cinema ou da televisão.
Apesar dessa decadência, todas as atividades humanas sob o mandato da competitividade, de algum modo cedem ao imperativo genético da espécie de descobrir, entalhar e dar a luz seres humanos perfeitos. A filosofia se empenha em descrevê-lo, os educadores se aplicam em esculpi-lo, pois todos sabem, ou ao menos intuem, que há uma perfeição possível. Vocês sabem que não está ao alcance da mão, mas sim como objetivo dos esforços de toda uma vida, quando o jornalista escreve e adota o seu código, que é um compromisso com a utopia, com o melhor de si mesmo, e com as mais altas expectativas da sociedade. Nos suportam limitados em conhecimentos e em técnica porque acreditam que não há mais a seu alcance, mas nos exigem ser honestos com uma independência sem suspeitas, apaixonados pela verdade, distantes do poder e intimamente ligados ao serviço de todos.
Se algo nos liga às grandes figuras jornalísticas do passado, é a utopia da profissão. Nos anos 1940 conheceu-se um texto que hoje é clássico, escrito por William Allen White (1868-1944), no qual descreveu uma forma de ser jornalista que conduz à fama e à riqueza. ‘Se escolherem essa trilha’, escrevia, ‘encontrarão o brilho momentâneo do sucesso. Se escolherem a outra trilha, a da utopia’, acrescentava, ‘lhes serão oferecidos momentos agradáveis, grandes alegrias e numerosas satisfações no caminho, mas tais satisfações são do espírito. A recompensa material não costuma acompanhar a excelência espiritual, como tampouco os castigos materiais seguem os delitos do espírito. Em nossa civilização não se morre de inanição, mas pode-se sofrer fome e andar mal vestido; a satisfação deverá vir do respeito de si mesmo’ [William Allen White. La integridad del diario. En Arte y Sentido del Periodismo, Troquel, Buenos Aires, 1966. pp 50-51].
É legítimo perguntar-se a esta altura de nossas reflexões se estamos diante de um enganoso jogo retórico, ou diante de uma surpreendente e desafiadora realidade. É esta a dimensão do humano? É esta grandeza a que reflete o espelho no qual nos olhamos todas as manhãs? Ou, como escreve Sartori ‘de fato estamos nos perguntando se a utopia é ou não praticável’ [Sartori, ¿Qué es la democracia? Altamir, Bogotá, 1994., p 44]. Que é a mesma pergunta que vocês vêm se fazendo desde que entrei no tema: pode esta utopia mudar nossas vidas e nosso exercício profissional?
Parecem entrar em conflito em nossas mentes, três conceitos: o real, o possível e o impossível.
Ser inacabado
A realidade simples, tal como a vimos ontem nas redações e no trabalho diário, a que encontraremos ao regressar às nossas tarefas, é uma realidade cinzenta, para não dizer pequena e apagada e, principalmente, distante da realidade possível, aquela que irradia seus esplendores desde o código. A análise dessa distância pode ser deprimente e concluir em um taxativo diagnóstico: isto é impossível, conclusão que pode ser ditada pela depressão ou pela comodidade, porque se é impossível, é justificável que continuemos como estamos, sem esforços suplementares.
Lanço mão de Juliana González, a filósofa mexicana e sublinho sua expressão: ‘O ser humano é possibilidade, o seu ser possível implica uma alternativa’. Enunciado deslumbrante que coloca em evidência um fato: nem sempre nos contemplamos como possibilidade e sim como limite, não somamos, mas subtraímos.
Uma forma maliciosa de subtrair é exigirmos de uma só vez a perfeição que mostra a utopia, sem etapas intermediárias e como resultado de uma decisão definitiva e única da vontade. Descartam-se os retrocessos, as fadigas, os desalentos, os erros e a humildade das correções e das retificações. ‘Esse perfeccionismo’, escreve Sartori, ‘deriva de um modo equivocado de entender e de empregar os ideais’ [Sartori, op.cit. p 47].
Uma compreensão e uso adequados da utopia implicam:
**
Olhá-la como uma reação perante o real. Identificar nela nossa insatisfação perante o real. Reconhecer nela o estado desejável das coisas. Em uma palavra, aceitar que o real não nos agrada e que necessitamos mudá-lo.**
O uso adequado da utopia exige, além disso, uma clara visão da distância entre o real e o possível. O possível é parte da realidade, mas é uma parte invisível que só emerge lenta e dificilmente à vista. Por isso, responde Sartori: as utopias são realizáveis parcialmente [Sartori, op.cit. p. 48]. E acrescenta Benjamin Constant: entre utopia e realidade seria necessária a interposição de princípios intermediários, ou seja, as etapas que supõe todo ascenso, porque passar da realidade para a utopia é um ascenso que deve ser feito gradualmente. Sigo a lógica de Constant ao afirmar que cada vez que uma utopia nos parece impossível é porque ignoramos o trabalho árduo de visualizar o possível [citado por Sartori, op.cit. p 48].É tanto mais cansativo e extenuante este trabalho quando se pensa que para culminá-lo não há prazos porque forma parte da construção de si mesmo, que é uma necessidade que nunca termina. O homem é um ser inacabado, que sempre está por terminar, como se parte de sua natureza mais profunda fosse estar sempre em obra e conservar um lado provisório que é parte da lealdade à sua condição utópica.
Nem pausas nem sossego
Competir pelo primeiro lugar foi um ideal grego aprendido em Homero, que transmitiu em Aquiles ‘a trágica amargura de saber-se mortal e de ser somente um semideus’ [H. Bloom, ¿Dónde se encuentra la sabiduría? Taurus, Bogotá, 2005. p 73].
O povo hebreu também tem seus heróis e aparece na historia com encarnações da utopia como David, a quem Bloom, o crítico literário nova-iorquino, compara com Aquiles. ‘Que significa, depois de todo, ser o melhor dos aqueus?’ pergunta-se para responder que dentro do contexto homérico o melhor ‘é aquele que pode matar Heitor.’ ‘David é uma nova classe de herói ao qual Yaveh decidiu tornar imortal através de seus descendentes’ observa Bloom. Mas sua comparação dos dois heróis segue: o povo grego ‘cujo ideal é a contenda, não pode destoar na hora de honrar aos pais, mas um povo, o hebreu, que exaltou a paternidade e a maternidade, lutou não para ser o melhor, mas para herdar o tempo sem limites’. Em Homero lutamos para ser o melhor, para arrebatar a mulher aos inimigos e para sobreviver o maior tempo possível; na Bíblia não lutamos por isso. Livramos as guerras para ser imortais,’ conclui o crítico literário [H. Bloom, op.cit. pp 75,76].
É o mesmo impulso: para ser os melhores, proclama o grego, para ser pouco menos que anjos, cantava David, ou para ser imortais; O certo é que se trata de uma força adormecida, latente, ou ativa em todo homem. ‘Não nascemos para morrer, escreve feliz Hannah Arendt, nascemos para renascer.’ Volto a Homero, para quem os homens não são espíritos encerrados na matéria, mas forças e impulsos que vivem ou, segundo a explicação de Bruno Scull, citado por Bloom, ‘um homem é um campo de batalha de forças arbitrarias e poder sobrenaturais’ [H. Bloom, op.cit. p.70].
Uma dessas batalhas é a que pode estar gerando as depressões que afligem ao homem de hoje, ou as baixas de moral e motivação de que fala a psicologia caseira e que Bloom diagnostica ao comparar David e Hamlet quando acreditavam ao mesmo tempo que eram tudo ou nada [H. Bloom, op.cit. p.133]. Entre esses dois extremos flutua a vida dos homens, que do alto das utopias ameaçam precipitar-se aos cumes da impotência e do fracasso. É uma dinâmica que Shakespeare encarna no ser ou não ser de Hamlet e que Friedrich Hegel (1770-1831) visualizou nesse processo sem fim em que se chocam uma tese e uma antítese para dar lugar a uma síntese que como nova tese continuará o espiral sem fim. Simples e abstrata maneira de dizer que para a história e para o ser humano nunca haverá pausas nem sossego porque cada vez a utopia aponta metas mais altas. É uma rebeldia contra o real, inspirada no pensamento de que o de hoje é melhor que o de ontem, mas o de amanhã deverá superar ao de hoje; inquietação e dissabor de todas as horas, inscrita na natureza dos humanos. Basta ser humano para sentir o impacto desse desafio; não é necessário entrar na esfera homérica dos heróis; é suficiente impulso sentir-se responsável de ser humano.
Conclusão
Ao chegar a este ponto de nossas reflexões, é imperativo concluir.
**
Primeiramente, que essa realidade negativa que contemplamos ao início, está lá, a reencontraremos ao voltar a nossos afazeres habituais, mas é uma realidade que tem que ser mudada. O dilema é claro: ou nos resignamos à realidade e a vida sempre transcorrerá na vulgaridade e na insignificância, ou nos rebelamos contra essa realidade, a subvertemos e a transformamos e, então, a vida pessoal e profissional adquirem outra fisionomia.**
Essa fisionomia é a que lhe confere a utopia. Vimos como ética e utopia se reclamam: a ética se realiza somente como utopia e esta, por sua vez, é o outro nome da ética: é a excelência para a qual nasce todo homem.**
A ética é, efetivamente, uma segunda natureza. A primeira nos é dada com todas as suas chaves e possibilidades; a segunda é de nossa autoria, ninguém a impõe a nós, ninguém nos substitui nessa tarefa; tem como matéria prima a primeira natureza com suas possibilidades. Ao convertê-las em algo real é como se nascêssemos de novo. A ética é uma forma de renascer, mas não de qualquer maneira, mas sim de encontrar a excelência para a qual todo homem nasce. É a razão de ser das utopias.**
E da mesma forma como ética e qualidade técnica são inseparáveis nos afazeres do jornalista, ética e dignidade se geram entre si. A dignidade é esse nível de honra que cada um reclama de acordo com os valores de sua natureza, como pessoa e como profissional. Na dignidade de cada um brilham seus valores sem necessidade de maquiagem nem de pedidos de reconhecimento. E são tanto mais evidentes porque se destacam como a criação de cada um. Uma pessoa digna, um profissional digno e respeitável, resultam reconhecíveis porque neles aparece a utopia ética com a mesma naturalidade surpreendente com que uma mulher formosa, um homem sábio, ou uma pessoa justa se impõe no silêncio, e apenas com a força de seus valores.**
Por último, este oficio nosso se redime da vulgaridade e da suspeita quando olhado e exercido à luz da utopia ética. Um sábio editor do jornal El Comercio, de Lima, conseguiu impressionar-me quando me descreveu o ritual de iniciação de seus redatores. É algo simples, mas imponente que transcorre em uma espécie de santuário, resguardado do ruído onipresente na velha construção. Recordo esse lugar como um oásis de silêncio, com uma certa penumbra e com esse ambiente impressionante dos templos. Mas não há altares nem imagens hieráticas. Só estão as estantes de madeira envernizada cor de mel, que cobrem a totalidade das paredes, e atrás dos vidros que os protegem como jóias, os grossos volumes escuros nos quais se conservam as edições do jornal desde 1839.Pensando nos jovens redatores, recorri em silêncio as estantes como se quisesse com esse exercício andar no tempo, e pareceu-me escutar esse coro de vozes múltiplas que através de 168 anos disseram a história, as idéias, os sentimentos, os sonhos, os triunfos e as derrotas daquela sociedade. São vozes que não morreram, que voltam a ser sonoras quando o investigador abre os pesados volumes, os interroga e os escuta. O novel jornalista faz esse percurso, ouve o editor que lhe recorda que lá estão os textos de todos aqueles que fizeram e relataram a historia do Peru e que a partir de seu ingresso à redação do jornal, seus escritos começarão a ocupar um lugar nessa galeria onde nem o tempo, nem a condição efêmera de sus relatos conseguirão apagar sua voz nem sua presença porque, diante daquele desfile de jornalistas do passado redivivos em seus textos e naquele lugar, é inevitável concluir que nós, os jornalistas, trabalhamos para permanecer.
Experiências como essa fazem descobrir a dimensão utópica, ética e imortal desta profissão.
******
Jornalista, autor de vários livros e fundador da Comissão de Ética do Circulo de Periodismo de Bogotá. trabalha com Gabriel García Márquez na Fundação para um Novo Jornalismo Iberoamericano.