Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo e as pessoas com deficiência

É ainda muito comum o uso errado de terminologias e nomenclaturas em reportagens nas quais uma ou mais personagens são pessoas com deficiência, partindo do princípio de que condições de natureza física, intelectual ou sensorial podem ser usadas como identificação. É um equívoco que denuncia desconhecimento sobre o universo da pessoa com deficiência e destaca ausência de pesquisa básica sobre as circunstâncias da história a ser contada.

Uso dois casos divulgados recentemente para explicar como essa prática não colabora em absolutamente nada para ampliar a discussão sobre inclusão, integração, acessibilidade e respeito ao ser humano, bem como alimenta estigmas, preconceitos e cria a desinformação.

No último dia 8 de maio, um homem de 32 anos estava de frente para o caixa de uma farmácia de São Vicente, no litoral sul de São Paulo, quando uma diferença no preço de um remédio o levou de volta ao balcão de atendimento. Ele esclareceu a divergência de valores e retornou à fila, com a orientação dos funcionários daquele estabelecimento de que ele poderia retornar imediatamente ao caixa quando chamado para concluir sua compra. Ao fazer isso, com a preocupação de informar o cliente que aguardava na fila à sua frente, o homem foi violentamente agredido com um soco no rosto, caiu no chão e desmaiou. O agressor fugiu, acabou encontrado logo depois e foi levado à delegacia, onde prestou depoimento e foi liberado. Desde a primeira reportagem publicada sobre este caso, no portal do jornal A Tribuna e na página de Santos e região do G1, o título destaca que um “deficiente mental” foi agredido, mas jamais explica qual seria essa deficiência e por que a informação tem relevância na contextualização da história. Ao contrário, usa a suposta deficiência (porque essa não é explicada) como identificação.

Em 18 de abril, uma mulher que usa uma cadeira de rodas guiava seu carro em Santos, também no litoral paulista, quando teve um mal súbito e ficou desacordada. O carro, descontrolado, bateu em veículos estacionados. Note que o fato da motorista usar um equipamento de mobilidade não tem nenhuma relação com a causa do acidente. Ainda assim, o título usado pelo portal do jornal A Tribuna, – “Cadeirante se envolve em acidente de carro” – usa essa forma de identificação, novamente fortalecendo o estigma, relacionando a deficiência aos motivos da batida.

Os direitos das pessoas com deficiência

Há também um terceiro caso recente que demostra esse erro, mas neste caso com uso de termos que já deveriam ter sido descartados quando as pessoas envolvidas na história têm algum tipo de deficiência. Em 14 de abril, um homem cego morreu após cair no vão entre o trem e a plataforma na estação Sé do metrô de São Paulo. Quase todos os veículos que publicaram a história usaram as palavras “deficiente visual” para identificar a vítima, exceto o Terra e sites especializados, que o chamaram, acertadamente, de “homem cego”.

O uso de palavras específicas para divulgar histórias que envolvem pessoas com deficiência não tem base em práticas politicamente corretas ou em um excesso de cuidado com essas pessoas. Trata-se de uma forma de ampliar o conhecimento. Quando um pai diz que seu filho é “especial”, eu e você não temos o direito de corrigi-lo. Quando um homem que não enxerga diz ser cego, ou até “deficiente visual”, não há motivo para tentar convencê-lo do contrário. Mas jornalistas têm, sim, a obrigação de escrever da forma correta, inclusive quando isso significa não citar que a pessoa envolvida na história tem alguma deficiência somente porque esse fato não tem qualquer relação com a reportagem.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 13 de dezembro de 2006, marcou definitivamente uma nova fase de debate e entendimento com a criação de um Protocolo Facultativo, ambos assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. No Brasil, convenção e protocolo foram promulgados em 25 de agosto de 2009 por meio do decreto nº 6.949, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No Artigo 8, que trata da conscientização, o decreto determina que “Estados Partes se comprometem a adotar medidas imediatas, efetivas e apropriadas para”, no item C, “incentivar todos os órgãos da mídia a retratar as pessoas com deficiência de maneira compatível com o propósito da presente Convenção”. E o propósito da convenção é “promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”, além de estabelecer que pessoas com deficiência são aquelas “que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.

Mudança na área psiquiátrica

No que diz respeito ao uso dos termos “deficiência mental” ou “deficiência intelectual”, o professor Romeu Kazumi Sassaki – especialista em aconselhamento de reabilitação, consultor de inclusão social e autor do livro Inclusão: Construindo uma sociedade para todos – destaca em texto publicado em 2004 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que a palavra “deficiência” é a mais adequada – inclusive quando traduzida do inglês (disability) e espanhol (discapacidad). “Esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas com deficiência como dos campos da reabilitação e da educação. Trata-se de uma realidade terminológica histórica. Ela denota uma condição da pessoa resultante de um impedimento. Exemplos de impedimento: lesão no aparelho visual ou auditivo, falta de uma parte do corpo, déficit intelectual. A palavra impairment (em inglês) pode, então, ser traduzida como “impedimento”, “limitação”, “perda” ou “anormalidade” numa parte do corpo humano ou numa função do corpo, de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), aprovada em 2001, que diz: “As funções fisiológicas incluem funções mentais. O termo ‘anormalidade’ é utilizado na CIF estritamente para se referir a uma variação significativa das normas estatísticas estabelecidas, como um desvio da média da população dentro de normas mensuradas, e ele deve ser utilizado somente neste sentido”.

Sassaki ressalta que, a partir da década de 80, o termo “deficiência intelectual” tem sido adotado mundialmente. “Concordo por duas razões. A primeira razão tem a ver com o fenômeno propriamente dito. Ou seja, é mais apropriado o termo ‘intelectual’ por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo. A segunda razão consiste em podermos melhor distinguir entre ‘deficiência mental’ e ‘doença mental’, dois termos que têm gerado muita confusão há décadas, principalmente na mídia. Os dois fenômenos trazem o adjetivo ‘mental’ e muita gente pensa que ‘deficiência mental’ e ‘doença mental’ são a mesma coisa. Então, vamos separar os dois fenômenos. Também no campo da saúde mental (área psiquiátrica), está ocorrendo uma mudança terminológica importante, substituindo o termo ‘doença mental’ por ‘transtorno mental’. Permanece, o adjetivo ‘mental’, o que é correto, mas o grande avanço científico foi mudar para ‘transtorno’. Aqui também se aplica o critério do número (singular e não plural) para a palavra ‘transtorno’. Dizemos: ‘pessoa(s) com transtorno mental’, e não ‘pessoa(s) com transtornos mentais’, mesmo que existam vários transtornos mentais”, conclui o professor. Dez anos depois, a explicação permanece atual.

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Luiz Alexandre Souza Ventura é jornalista e correspondente freelancer do Estado de S.Paulo na Baixada Santista