Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo nos limites da liberdade

Em dezembro de 1968, três padres franceses e um diácono, todos da Congregação dos Agostinianos, foram detidos pelos militares em Belo Horizonte por seu envolvimento com a Pastoral Operária. Quase um ano depois, em novembro de 1969, onze dominicanos foram presos, alguns deles torturados, acusados de apoiar o ex-deputado Carlos Marighella. Seis anos após a prisão dos dominicanos (1975), o padre francês François Jentel foi expulso do Brasil por apoiar a luta dos camponeses pela posse de terra, em São Félix do Araguaia. Dois anos mais tarde (1977), mais dois religiosos foram ameaçados de expulsão: o espanhol dom Pedro Casaldaliga, na época bispo de São Félix, e o sacerdote suíço Romain Zufferrey, ligado à Pastoral Operária da arquidiocese de Olinda e Recife.

Segundo Ismar Soares (1988, p. 270), de 1968 a 1978, 122 religiosos e 273 leigos foram presos e nove padres expulsos do Brasil. Os cinco casos lembrados acima são, portanto, apenas uma pequena amostra do grande número de padres e freiras acusados pela ditadura de praticar atividades subversivas. Um arquivo jornalístico com 18 desses casos, no período de 1968 a 1979, é cuidadosamente guardado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em sua sede, em Brasília.

As ameaças, prisões, tortura, expulsões e assassinatos de religiosos, durante a ditadura foram acontecimentos que atingiram o próprio seio da Igreja Católica no Brasil. Sabe-se que a instituição religiosa, assim como outros segmentos da sociedade, apoiou o golpe de 64, acreditando, sobretudo, lutar contra o comunismo.

Agendamento e enquadramento

Entretanto, a situação se inverteu. A instituição que outrora lutara contra o comunismo, passou a ser acusada de comunista, vendo seus membros perseguidos pelo regime militar sob a suspeita de subversão. Mesmo clérigos da alta hierarquia foram chamados de bispos vermelhos como, por exemplo, o arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara, silenciado pela ditadura. Mais ainda, a imprensa foi proibida de fazer qualquer referência sobre ele.

Esses acontecimentos fizeram com que a CNBB se posicionasse tanto na defesa de seus membros como na de sua própria imagem. Com a gravidade da repressão militar, a Conferência dos Bispos foi além e assumiu uma causa ainda maior: a defesa dos direitos humanos. E a imprensa, enquanto espaço de mediação pública no qual atuam forças hegemônicas e contra-hegemônicas na disputa pela visibilidade midiática, foi um instrumento propício para a atuação da CNBB, que só pelos meios de comunicação seria capaz de alcançar o público que alcançou naquelas circunstâncias.

O assunto foi objeto de estudo no programa de Pós-graduação em Comunicação da UNB, a partir da hipótese do agenda-setting e do enquadramento. Para a análise que consta na dissertação ‘O jornalismo nos limites da liberdade: um estudo da cobertura da imprensa sobre os casos de religiosos acusados de praticar atividades subversivas durante o regime militar’ foram selecionadas 53 notícias, publicadas pelos jornais Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Estado de S. Paulo e O Globo sobre os cinco casos de religiosos acusados pelo regime de subversão. Os objetivos: analisar o processo de agendamento da imprensa pela CNBB neste seu propósito de defesa dos religiosos e estudar o enquadramento dado pela imprensa aos acontecimentos, considerando-se os enfoques da subversão e dos direitos humanos.

Promotora de notícias

Entre as estratégias de agendamento, a que mais chamou a atenção foi a divulgação de notas pela Conferência dos Bispos. Sobre os cinco casos, a instituição divulgou 13 notas, publicadas na íntegra por 23 veículos. De certa forma, essas notas substituíram as declarações verbais da CNBB e, ao mesmo tempo, asseguraram a integridade do que fora dito à imprensa a respeito dos fatos. Representaram a segurança de que o pronunciamento da instituição religiosa não seria distorcido, evitando colocar em risco suas relações com o Estado. Já para a imprensa, a publicação das notas era uma forma de dizer: ‘Esta afirmação pertence a qualquer pessoa, menos ao repórter.’ Essa estratégia foi importante para os jornalistas brasileiros durante a ditadura, pois lhes garantiu segurança perante as possíveis ações repressivas do regime. As notas serviram para distinguir bem a quem pertencia a fala, ou seja, que ela era da CNBB, e não do jornalista que noticiava os fatos.

Além das notas, outro fator interessante que consta nas notícias analisadas é a publicação, também na íntegra, de telegramas de solidariedade recebidos pela CNBB. Estratégia importante adotada pela Conferência, por meio da qual pôde mostrar que a instituição não estava só na defesa desses religiosos.

O estudo da cobertura da imprensa sobre esses casos revela ainda que a CNBB foi uma fonte acessível aos jornalistas, mas sobretudo uma importante promotora de notícias, na conquista do espaço público da imprensa. A instituição religiosa esteve presente em 49 das 53 notícias analisadas, geralmente com destaque em fotografias e títulos.

Fonte preciosa

Entretanto, em dois casos a CNBB foi mais silêncio do que voz. Foram os casos que tiveram conseqüências mais dramáticas: os dominicanos que foram brutalmente torturados e o padre Jentel, que foi expulso do Brasil. Ao relembrar casos como esses, dom Aloísio Lorscheider, na época secretário-geral da Conferência, em entrevista para esta pesquisa enfatizou: ‘A Igreja poderia ter feito muito mais.’ A falta de posicionamento da cúpula da Igreja sobre esses dois casos permitiu que as notícias tivessem um enquadramento voltado para o enfoque na subversão.

Mas, apesar do silêncio da CNBB em determinados momentos, constata-se que a atuação da instituição junto à imprensa foi de fundamental importância para que a repressão não se intensificasse ainda mais. Diferentemente da ditadura na Argentina, onde a Igreja chegou a ceder lugar para as ações repressivas – e que resultou em cerca de 30 mil desaparecidos –, a Igreja no Brasil assumiu uma postura de defesa dos religiosos e de denúncia das violações dos direitos humanos.

Mesmo vivendo nos limites da liberdade, sob a censura e a autocensura, entre o consentimento e a reação, a imprensa foi, sem dúvida, o meio mais eficaz para a atuação da CNBB, a qual também se tornou preciosa fonte para imprensa num momento em que assuntos eram censurados e as fontes de informação escassas, devido ao silêncio imposto pela ditadura.

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Jornalista da assessoria de imprensa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB); defendeu a dissertação de mestrado ‘O jornalismo nos limites da liberdade’ na Faculdade de Comunicação da UnB, em 8/8/2007