De passagem por Manaus, Klester Cavalcanti causou rebuliço com o lançamento do seu O nome da morte (Editora Planeta), na quinta-feira (3/5). No livro, a morte chama-se Júlio Santana, nome mais pronunciado da noite. Pudera: antes de se aposentar da pistolagem, esse homem riscou 492 vidas do mapa – uma ficha extensa, de causar inveja a muito bandido pós-graduado. No currículo de Júlio, consta um tiro dado no guerrilheiro José Genoíno, quando serviu às forças armadas na repressão ao movimento do Araguaia.
Coisas tão fundamentais e tão esquecidas no jornalismo – como ‘lugar de repórter é na rua’, ‘de uma pauta ruim podem sair grandes matérias’ e ‘uma boa notícia pode estar logo ao lado’ – foram lembradas por Klester. Mas não teve jeito: a maioria das pessoas queria mesmo era saber as histórias do matador e se o repórter tinha problemas de consciência com seu trabalho. Aí a principal polêmica do evento, a cooperação entre Klester e Júlio – ‘imoral’ para alguns, ‘profissional’ para outros, incluindo o jornalista-autor –, relação esta que permitiu o levantamento de informações, das mais reveladoras às mais pitorescas.
Ficou-se sabendo, entre outras coisas, que uma das formas de punir trabalhadores escravos fujões era encomendar (para o céu) a vida de parentes destes e também que o matador era pessoa religiosa – odiava ver os outros sofrendo (tiro certeiro, na cabeça) e rezava sempre 10 ave-marias e 20 pai-nossos (Deus perdoa tudo).
Em determinado momento do debate, o mediador criticou o moralismo de muitas intervenções da platéia e salientou um aspecto da obra que estaria sendo esquecido: seu caráter literário, sua narrativa, sua boa história, já que é um livro de leitura instigante, para ser lido de uma tacada só.
O caminho do meio
Foi então que se sentiu a forte impressão de que estávamos todos, ali, diante de algo que ia muito além de juízos estéticos, éticos e morais. E, com licença para discordar de Klester – que está de parabéns pelo trabalho, com sete anos entrevistando alguém que poderia a qualquer instante alcançar a marca dos 500 –, falar em profissionalismo é argumento que serve de desculpa para as maiores atrocidades. Até o traficante de órgãos e o agenciador de prostituição infantil podem agir profissionalmente – ou não podem?
Estávamos diante de uma questão muito mais complicada. Temos, sim, grandes limitações em lidar abertamente com a maldade, o negativo, o indigesto – ao mesmo tempo em que tiramos de letra demagogia, cinismo, eufemismo e hipocrisia. Não só toleramos como muitas vezes preferimos. Se, por um lado, certa curiosidade mórbida nos faz público cativo de histórias e cenas trágicas – afinal a morte é a grande certeza que nos ronda –, por outro, nossa moral monoteísta nos impede bastante de absorver e compreender tudo aquilo que não faz Um, que não é Bem, que não está Certo. Assim, acabamos restringindo nosso juízo às razões mais simples e simplistas, mais primárias e primeiras. No dia-a-dia, adoramos o dual, o dicotômico, onde o Outro só está ali para servir ao Mesmo, enquanto mera sustentação. ‘Deus, permita que o mal seja sempre visto e sentido para que Tua casa esteja sempre cheia.’ Não é assim com os palanques eletrônicos (assistencialistas ou policialescos) das emissoras de rádio e televisão?
Ou então, aparecem equilibrismos que, com pouca criatividade, se contentam em imaginar algum caminho do meio. Estes, muitas vezes, ao invés de reconhecerem o sim e o não dos problemas e de apontarem novas saídas e possibilidades, preferem imaginar um lugar de equilíbrio onde não sejam tão urgentes novos compromissos, superações ou rupturas.
Informação sobre o Outro
É antigo o debate sobre o papel da mídia na influência negativa dos nossos jovens. Não difere muito daquela história de famílias que proibiam as crianças de assistirem ao Super-Homem na TV, pois poderiam jogar-se da janela tentando voar. A polêmica reaparece, por exemplo, quando a polícia critica a divulgação de nomes e siglas associadas ao tráfico de drogas. Os jornais estariam glorificando bandidos, tornando-os estrelas midiáticas. Afinal, na sociedade do espetáculo e do consumismo, o que aparece é bom e o que é bom aparece (Debord). Logo, é preciso defender a sociedade de si mesma (Foucault), como se sistema da mídia e sistema da repressão (hegemonia e violência) não fossem importantes mecanismos reprodutores desses fenômenos.
É uma grande pena, porém, que outros tantos debates não façam o mesmo sucesso. Por exemplo, a ameaça à sociedade representada pela forma frívola e cotidiana com que assuntos sérios são tratados pela cobertura jornalística, a falta de diversidade nos meios de comunicação de massa, a apropriação privada do espaço público de comunicação e outras barbaridades.
Excelentes jornalistas brasileiros têm conseguido fazer muito mais pelo jornalismo investigativo, crítico e polemista em livros como este do que em seus empregos em Casas Grandes como Veja e Globo. O direito social à informação de qualidade sobre o Outro, sobre o anormal, o diferente, o errado, o nocivo, deveria ser tão óbvio quanto o juridicamente consagrado direito à defesa dos acusados. Uma mídia tão abarrotada de heróis, fantasias e dualismos baratos não tem conseguido fazer de nós uma sociedade melhor.
Fazer outras perguntas
No país em que vivemos nada acontece a um matador de aluguel com esse currículo, mesmo quando se publica seu nome real e o de seus poderosos contratantes. Frente à morte anunciada de jovens que vivem nos guetos e periferias, realidade tangível a milhares de pessoas no Brasil todos os anos, também nada acontece. Vivemos, enfim, no país que matou Dorothy Stang, Chico Mendes, os sem-terra de Corumbiara, o índio Galdino, os meninos de rua da Candelária e muitos outros. Aos que vêem ou escutam de longe estas notícias e estes tiros, por vezes surge o conforto da explicação de que, de uma forma ou de outra, essas pessoas já estavam destinadas ou procurando um fim como esse. E aí, pronto, tudo resolvido, já podemos ver os anúncios e as novelas.
Precisamos, e muito, saber (com mais detalhes e justiça) das histórias desses crimes cotidianos. A perfumaria já não esconde esse cheiro de carniça no ar, mistura fétida de odores exalados também por juízes craques da propina e universitários craques do vestibular. Perguntar aos universitários ou esperar a sentença de doutos juízes, não adianta. Precisamos mesmo é de muita análise, precisamos, nós mesmos, encontrar outras respostas. E fazer outras perguntas.
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Professor, Manaus, AM