Experimentei o ponto mais baixo da carreira de jornalista provinciano quando ‘matei’ o governador do estado. Na verdade, incluí as palavras ‘do coração’ numa frase que deveria ter sido apenas algo como ‘O governador será operado hoje’, seguida de ‘Ele volta ao trabalho na segunda-feira’.
Era uma sexta-feira, e o telejornal ia ao ar às 6h30. Naquele dia, além de ter produzido, redigido e editado o programa praticamente sozinho, na véspera e na madrugada, ainda tive o ‘privilégio’ de apresentá-lo.
Privilégio porque, para muitos, em televisão o melhor de tudo é aparecer na tela, assim como no rádio é falar e, no jornal, assinar, de preferência uma coluna diária. A ironia das aspas está em ter sido eu mesmo a ler a frase infeliz.
A cirurgia do governador era apenas para retirar um pólipo na garganta…
A ‘barriga’ de um especialista
As possíveis explicações para o erro – ato falho (naquela semana, meu avô morrera de infarto e eu cobrira a doença cardíaca de outra autoridade da província); condições de trabalho (não contei com a revisão do colega que apresentava o programa, o único profissional de texto no estúdio, além de mim); mera distração – não interessaram ao dono da emissora, que me disse: ‘Você não tem o direito de errar. Está demitido.’
O patrão dizia-se preocupado com a reputação da empresa mas, sobretudo, com a instabilidade política e econômica que poderia causar. E com o ridículo de um empregado seu sugerir, no ar, que alguém pudesse ser operado do coração na sexta e voltar ao batente na segunda.
A decisão acabou sendo reconsiderada. Mantive o emprego, estive na primeira coletiva do governador após seu retorno, mas, enquanto vivi na província, fui alvo de chacotas dos coleguinhas mais cruéis. Eu era ‘o jornalista que matou o governador’.
Lembro-me disso ao completar 25 anos de profissão (carreira, diria Cláudio Abramo), a qual me foi apresentada como ‘sacerdócio’, algo que exigia dos iniciados não ter hora de almoço certa e menos ainda pretensões de bom salário…
Lembro-me disso quando acabo de ouvir um colega pedir desculpas no ar pela ‘barriga’ que cometera no dia anterior (23/8). Jornalista especializado em tecnologia, com todas as credenciais de quem cobre o setor com indiscutível competência há quase meio século, parecia contente em trazer um tópico de astronomia a seu espaço (sem trocadilho) no rádio matutino.
Fenômeno astronômico
Na minha humilde avaliação de ouvinte assíduo e leigo, o referido espaço consiste num minuto diário pré-gravado dedicado a algumas informações relevantes sobre informática e telecomunicações, com inevitável destaque para determinadas marcas líderes de equipamentos e componentes, certo deslumbramento com a convergência dos meios e suas possibilidades comerciais, certa benevolência para com concessionárias de serviços públicos de telecomunicações – enfim, perfeitamente ajustado ao discurso ‘livre-concorrencial’, ou privatista, ou neoliberal, como queiram. Mas não vem ao caso.
(Tampouco sei exatamente como era avaliado aquele telejornal matutino da província, com sua bancada de entrevistados e minhas perguntas que, por vezes, a alguns causavam incômodo… Sei que, especialmente para os assessores daqueles, fiquei sendo o ‘assassino do governador’…)
Para minha surpresa, o respeitado comentarista, desta vez ao vivo, confessou ter sido vítima de um trote na internet… Havia noticiado o alinhamento de quatro corpos celestes – Sol, Marte, Terra e Lua – como só se poderia ver outra vez daqui a 60 mil anos… Chegou a dizer que tentaria observar o fenômeno num instituto astronômico, dada sua raridade…
… Mas, na verdade, tratava-se do mesmo alinhamento registrado quatro anos atrás… E o experiente jornalista havia recebido, em seu nome, uma mensagem de correio eletrônico, em inglês, repleta de detalhes, na qual acreditara… Agora, lamentava não ter verificado dados e fontes antes de gravar e enviar seu texto… E aproveitava para indicar aos ouvintes: ‘Cuidado com a internet!’
São coisas que acontecem. Aos melhores e aos mais humildes.
Em meio a risos, convites para novas participações ao vivo e saudações corintianas, comentarista e âncora despedem-se, colocando uma pedra sobre o assunto. Nada disso vai arranhar a reputação da rádio, ou macular as credenciais do jornalista especializado, nem prejudicar o relacionamento de uma ou de outro com suas fontes de notícias e receitas. Ainda bem.
Em tempo: aos 79 anos completados neste mês, o ex-governador continua vivo.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ