Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O linchamento do promotor

Ainda não se tem a sentença, mas qualquer que seja a decisão pode-se desde já afirmar: o promotor de justiça Thales Ferri Shoedl está sendo ‘linchado’ por grande parcela da mídia.

O empenho para incriminá-lo, por meio de abusos, omissões, distorções factuais e arroubos sensacionalistas, tem levado à contaminação da opinião pública, que, perplexa com os reiterados casos nacionais de corrupção e de impunidade, tende a generalizar, sem o discernimento necessário para perceber as nuanças e as distinções entre os fatos.

Trata-se de uma dessas tantas campanhas diuturnas que mais do que atingir o indivíduo comprometem os pilares do Estado Democrático de Direito.

Em 30 de dezembro de 2004, Thales protagonizou um episódio trágico, na Riviera de São Lourenço, condomínio de alto padrão situado no município de Bertioga, no litoral paulista. Nessa madrugada, véspera de réveillon, ele matou um jovem e feriu um segundo, resultado de um desentendimento supostamente originado por comentários grosseiros das vítimas sobre os dotes físicos da namorada do então promotor substituto de Iguape, no litoral sul de São Paulo.

Foram quatro tiros em Felipe Siqueira Cunha de Souza, que sobreviveu, e dois em Diego Ferreira Modanez, que não resistiu.

Assassinato ou legítima defesa

De acordo com a Procuradoria Geral de Justiça, o promotor Thales teria atirado tão-somente por ciúme ou irritação, descontrolado com não mais do que alguns olhares desses e de outros rapazes para a sua namorada. Thales teria cometido os dois crimes por motivo fútil. Ainda que as vítimas tivessem feito os comentários constrangedores, o promotor deveria ter ido embora, sem se importar com o que havia sido dito. No entanto, o promotor preferiu discutir e, imprudente, pois estava armado e podia prever as conseqüências do seu gesto, não só deu início à briga como disparou com o intuito de matar os seus oponentes.

O promotor Thales, por sua vez, alega ter agido em legítima defesa. Felipe e Diego, dois jogadores amadores de basquete, ambos com quase 2 metros de altura e muito mais fortes, teriam tentado agredi-lo e, talvez, assassiná-lo.

Eis como tudo se deu, de acordo com a defesa: quando Thales e a sua namorada Mariana Ozores Bartoletti passavam pela calçada, nas imediações de uma rotatória (e não em um ‘luau na praia’, como a mídia várias vezes divulgou), um ou mais jovens que estavam diante de um carro, encostados, ouvindo música e bebendo, teriam chamado a moça de ‘gostosa’, mais de uma vez e em voz alta, em tom de provocação. Também olhavam para os seus quadris de forma libidinosa.

Thales cobrou-lhes respeito, dizendo-lhes que a moça estava acompanhada. Como os outros ficaram agressivos e o ameaçaram, ele identificou-se, para contê-los, como promotor de justiça, alertando-os de que estava armado.

Os jovens do carro ficaram ainda mais agressivos. Disseram que Thales era ‘promotor de balada’ e passaram a avançar contra ele, que, mais uma vez para contê-los, sacou a arma, uma pistola Taurus de calibre 380 – arma de baixo poder de parada, ou seja, que dispara munição de pequeno impacto – e deu um tiro de advertência para o alto. Os jovens, então, duvidaram de que a arma fosse de verdade (‘é festim!’) e, incentivados por ‘uma multidão’, continuaram avançando, enraivecidos.

Thales então disparou para o chão. Não adiantou. Teve então de fugir dali, ao lado da namorada. Foram, em seguida, perseguidos por cerca de 100 metros. Felipe e Diego alcançaram o promotor e tentaram tirar-lhe a arma. Mariana refugiou-se em um outro local.

Encurralado entre um poste e uma quadra de tênis, Thales, 1,70m de altura, diante de dois rapazes fortes de quase 2 metros, foi obrigado a atirar nos seus agressores, como último recurso para preservar a sua vida. Diego e Felipe tentavam tirar-lhe a arma. Tanto é assim, argumenta a defesa, que o promotor acabou sendo ferido nos braços, na hora em que lutava para se defender, como é atestado pelo seu exame de corpo de delito.  

Desesperado, na iminência de ser espancado ou assassinado com a sua própria arma, Thales teve de disparar várias vezes, atingindo, de início, perna e braço dos agressores, que assim mesmo não paravam e continuavam a investir contra ele, tendo sido contidos apenas quando foram atingidos no tórax.

Certeza do ‘linchamento’

Não há como saber o que aconteceria, caso ele não reagisse. Teria sido agredido até a morte? Teria sido ‘chacoalhado’, passando apenas por um susto? Impossível saber.

Em meio a tantas dúvidas, emerge, até este momento, apenas uma certeza que, revestida de materialidade, tem o poder de esbofetear-nos a todos: a certeza do ‘linchamento moral’ a que o promotor tem sido submetido por parcela significativa dos meios de comunicação.

Tão certo quanto dizer que a mídia brasileira recorre, com uma constância assombrosa, à prática de erros e crimes é afirmar que a mídia brasileira tem deteriorado a olhos vistos, carcomida por sua indigência moral. As técnicas de que dispõe para evitar os abusos e as práticas criminosas são esquecidas ou estrategicamente evitadas. Dolo? Culpa? Pouco importa. Nada disso nos serve.

Manipulação e histeria

Na ânsia de enfileirar os casos de impunidade, jogando-os indiscriminadamente na vala-comum da infâmia, não são poucos os que violam as regras básicas do bom jornalismo, em troca de audiência e do aumento da vendagem; ou em busca da cumplicidade (no mau sentido) com o seu público, à custa da distorção dos fatos; ou, ainda, à conta de um ‘idealismo’ salvador que, não raro, resulta em injustiça.

A construção de teses que devem ser confirmadas a qualquer preço é dessas fragilidades que se verificam no dia-a-dia jornalístico. Tenho três más notícias para os ‘idealistas’: idealismo não é sinônimo de justiça; idealismo não é o mesmo que verdade; idealismo não é o mesmo que pensar com apuro e eqüidade, em busca de um mundo melhor.

Há, contudo, aqueles que se contentam com pouco e acham suficiente clamar contra a impunidade ou o corporativismo. Fazem-no ‘para melhorar o país’. Ainda que os fatos não os autorizem a tamanha convicção.

‘Assassino’

Por que o promotor Thales Ferri Shoedl está sendo ‘linchado’ pelos meios de comunicação e, em conseqüência dessa campanha, pela média da sociedade? Em primeiro lugar, porque está sendo tratado como assassino, apesar de não ter sido julgado. ‘Ora, ele confessou ter matado um jovem e atirado no outro que sobreviveu. Logo, ele é um assassino confesso.’ É o que deve ter pensado, por exemplo, um repórter do G1:

‘Segundo o advogado, Rebelo Pinho é autor da denúncia criminal contra o promotor Schoedl – assassino confesso do jovem Diego Ferreira Modanez em dezembro de 2004’.

Pior, por seu destaque, é esta chamada de um vídeo do mesmo portal:

‘Assassino reassumirá lugar no Ministério Público’.

Note a manipulação. A chamada equivale a este enunciado: ‘Veja que absurdo, o sujeito é um assassino, mas vai continuar trabalhando como promotor, recebendo salário de mais de 10 mil reais por mês. Os promotores são corporativistas’.

O G1 fez às vezes de um tribunal. Julgou e condenou o réu. Pergunta-se, com interesse: os juízes do G1 terão lido as cerca de 1.500 páginas do processo judicial? É de duvidar…

Maus exemplos como esses pululam. Há também os bons, como este título do portal Estadão:

‘Pichadores atacam promotor acusado de homicídio’.

É preciso observar que o promotor alega ter agido em legítima defesa. Se ele conseguir prová-la em juízo, será absolvido. Implica dizer que não será condenado nem por homicídio doloso (com intenção de cometê-lo), nem por homicídio culposo (sem intenção). Ainda que, de outro modo, ele seja condenado, não se deve tomar a dianteira da Justiça.

Vejamos o que, acertadamente, ensina o Manual de Redação da Folha de S.Paulo:

‘Assassinar – Use sempre que alguém tira deliberadamente a vida de outra pessoa. Quando não houver premeditação ou a morte for provocada em legítima defesa, use matar. Não chame de assassino quem não foi julgado e condenado em última instância. Nesse caso, use acusado do assassinato ou suposto assassino. Veja eufemismo; executar; matar. Consulte também o anexo Jurídico’.

Modelo faroeste

Editores do Diário de S.Paulo parecem discordar, como atesta este título eivado de ilegalidade: ‘Promotor assassino é afastado do cargo, mas mantém o salário’.

Nada disso interessa, dirão os defensores do modelo faroeste de democracia. Se alguém parece culpado, deve ser ‘exterminado’. Se alguém parece inocente, deve ser incensado. Convido-os a ler as mais de 1.500 páginas de documentos que este articulista teve de analisar, por dever de ofício, para dar início a esta série de artigos. Sim, uma série de artigos. Trata-se de um caso complexo, embora considerável parcela da mídia se esforce para transmitir a sua visão simplista e lesiva ao Estado Democrático de Direito.

Não se deve incorrer na superficialidade que conduz à ignorância a que estamos sendo condenados. Daí a necessidade de irmos devagar, sempre em busca da verdade.

Nos próximo textos, a serem publicados em breve por este Observatório, proponho-me a trazer a público as informações que constam do processo criminal.

De antemão, pode-se dizer: várias testemunhas de defesa e de acusação apresentaram a mesma versão do fato. O que chama a atenção de quem pugna pela verdade. É o que se espera de um jornalista.

De minha parte, tenho ciência de que não sou juiz. Deixarei as conclusões para o leitor.

Outros fenômenos que serão abordados, à luz e à sombra deste caso:

1. A mídia se deixa manipular para, em seguida, manipular a opinião pública;

2. A influência deletéria da mídia sobre o trabalho de juízes e promotores de justiça;

5. A profusão de erros e abusos deste processo informativo, dos mais simples ao mais cabeludos;

4. Como a histeria confundiu o público, que, mal informado, careceu dos elementos necessários para apreciar o conteúdo e as implicações de dois processos distintos: o administrativo, que analisa o vitaliciamento de Thales e a sua permanência na carreira, e o criminal, que compreende os fatos ocorridos em 30 de dezembro de 2004 na Riviera de São Lourenço.

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Jornalista