Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O medo da mídia

Dentre tantos medos que a mídia nutre e sofre, o mais medonho é seu medo em relação aos assuntos do candomblé, da umbanda e de outras religiões e cultos de origem afrobrasileira. O medo é filho da ignorância, por isso, os produtores de jornalismo, radialistas e pessoas da televisão e da mídia exibem uma ignorância absurda sobre assuntos dos diversos modos de relação das pessoas com o sagrado, desde que não seja através do catolicismo e de outras religiões cristãs.

Sorrateiramente, as religiões de matiz pentecostal, também conhecidas como ‘evangélicas’, passaram a alimentar o medo ignorante da sociedade em relação à religiosidade não-cristã. Ora, todos sabem do novo poderio midiático de alguns desses conglomerados religiosos, sendo a Record o supra-sumo deste segmento no Brasil. Nossa primeira questão é: em que medida, na atualidade, os meios de comunicação interferem na relação da sociedade com as religiões dos negros escravizados e dos índios catequizados deste país? Quais são os pontos-chaves desta guerra religiosa, via mídia?

Na verdade, ‘guerra’ não define bem a correlação de forças dos candomblecistas, umbandistas, juremeiros contra católicos e evangélicos. A ritualística é diferente. Enquanto os primeiros lidam com o sagrado de uma forma orgânica, constitutiva e mística, o grupo adversário tem uma religiosidade calcada no simbólico, no discurso e na representação. Por isso as religiões de matriz africana e indígena não precisam da mídia para se propagar. Não dá para transmitir o que ocorre quando se entrega um ebó, por exemplo. É algo tão simples, tão orgânico, tão óbvio que para TV ‘não tem graça’. Por isso, o pessoal da ‘macumba’ poderia ser definido por Balula (2007), como os sem-mídia.

Morte no terreiro

Um episódio criminal recentemente divulgado na mídia local serve para ilustrar o que estamos tentando expor. Um homem é morto a tiros dentro de um terreiro de Umbanda na zona sul da cidade. O fato virou notícia em todas as TVs da capital, João Pessoa. A cobertura variou de canal a canal, mas a impressão que se teve, assistindo todas as reportagens, é de que o fato mais importante foi o de que o assassinato ocorreu naquele local.

Talvez, se tivesse ocorrido numa igreja qualquer, a cobertura da mídia local pudesse ter sido menos preconceituosa. Os programas policiais merecem especial atenção pelo modo grotesco como o fato é narrado. No emblemático Caso de Polícia, do canal 5, SBT, o repórter Ainoã Geminiano protagonizou o mais vexatório episódio ‘jornalístico’ na cobertura do referido fato.

Ele encerrou a matéria dizendo que havia pisado, sem querer, em cima de um ebó feito com farinha amarela e folhas, que estaria na frente do terreiro onde ocorrera o crime. O repórter explicou que alguém havia contado, certa vez, que quem pisa num ‘despacho’ morre ou sofre uma traição amorosa. A matéria mostra a oferenda derramada no chão e a cara de susto do repórter da TV Tambaú.

A reportagem da TV Cabo Branco, canal 7, afiliada da Rede Globo, registrou que o assassinato havia ocorrido num ‘terreiro de macumba’, mal sabendo a jornalista que macumba não é uma religião, mas um antigo instrumento percussivo utilizado pelos ogans nos terreiros de Candomblé. Os ogans são os adeptos responsáveis pelo chamamento e louvor aos orixás com a utilização de toques percussivos ancestrais.

Nas cerimônias umbandistas, candomblecistas e da jurema a percussão é central e indispensável, assim como, sem folha não tem orixá, porque essas religiões estão intimamente ligadas à ecologia humana e não-humana. Mas os repórteres não têm essa informação.

Então, repetem-se as falas do preconceito religioso, que fazem analogias dos cultos afrobrasileiros com os chamados ‘cultos ao demônio’, ou, pior, ‘cerimônias de magia negra’. Existe ‘magia branca’? Parece ser proposital chamar tudo que não for vinculado ao cristianismo de ‘coisas do diabo’, ainda mais se ocorre um assassinato no local onde as cerimônias são realizadas. É o que os semiólogos e lingüistas chamariam de demonização discursiva.

Discursividade satanizada

A demonização discursiva sobre religiões de matriz africana e/ou ameríndias ocorre por um fator historicamente determinado. A milenar estratégia cristã e católica de considerar como ‘pagãos’ todos os povos que desconhecessem a liturgia de seu modelo religioso.

Uma das coisas que mais surpreende os leigos em relação ao candomblé, por exemplo, é que, nesta religião, não há algo correspondente ao que se convencionou chamar de ‘diabo’, ‘demônio’ ou algo do gênero. Um erro freqüente, mesmo dos que dizem conhecer o candomblé, é atribuir ao orixá Exu as características do demo judaico-cristão.

O despreparo da mídia para a cobertura das religiões não-cristãs pode ser percebido em outras ocasiões, como por exemplo, na festa de Iemanjá em 8 de dezembro, em João Pessoa. Por trás da ignorância e do medo que a maioria dos jornalistas têm em relação ao candomblé e outras religiões afrobrasileiras, o que não se consegue esconder é a manifestação de um racismo midiatizado.

O discurso racista que vemos hoje nas mídias é o reflexo do discurso produzido secularmente pelas elites dominantes, que acabou por contaminar, inclusive, o discurso das classes subalternas. Van Dijck [1997, ‘El estudio del discurso’ en: Van Dijk, T. A. (Comp.). El discurso como estructura y proceso (p.21-65). Barcelona: Gedisa, 2000a.] vai lembrar que:

‘[…] Depois de analisar os discursos das pessoas na rua, de pessoas comuns, em bairros pobres e em bairros ricos, cheguei à conclusão de que grande parte da produção e reprodução dos discursos racistas é uma coisa das elites. Isto é assim porque as elites têm o controle sobre o discurso público. São elas que fazem as leis, escrevem os jornais, fazem a ciência, fazem a justiça. O discurso dominante em uma sociedade é o discurso das elites e não das pessoas comuns. A pessoa comum quase não tem voz no discurso público.’

O racismo midiático que assistimos cotidianamente nos meios de comunicação é reflexo, portanto, duma sociedade preconceituosa e racista. O racismo institucional é um fenômeno que se propaga facilmente sem uma devida ação de controle social que o desestimule.

No campo do jornalismo e da comunicação midiática, é urgente oferecer situações de diálogo entre os líderes religiosos discriminados e os fazedores de ‘notícia’, para que sejam iniciados basicamente no campo simbólico dos cultos das religiões afrobrasileiras.

Coabitação e laicidade

Dominique Wolton, um dos mais importantes pensadores franceses da atualidade, escreveu um livro (3) onde trata da importância da comunicação como fator de favorecimento à coabitação cultural. Wolton se espelha na França, mas no Brasil o processo de coabitação cultural e étnicorracial pode ser ainda mais complexo. Primeiro porque, diferentemente da França, o Brasil é uma nação que sofreu colonizações diversas. A coabitação aqui se deu de forma forçosa, com a imposição de uma cultura (européia) sobre outras (índia e africana).

No processo de colonização brasileira, os portugueses, mas também espanhóis, franceses e holandeses, trouxeram na bagagem, além de armas de fogo e armas biológicas, as armas ideológicas fundamentalmente baseadas na fé católica.

Mesmo depois do período colonial, com a fundação da República, nosso país jamais conseguiu introjetar o conceito e a prática da laicidade do Estado, uma exigência legítima da sociedade civil. Veja o que Wolton [2006; 112, É preciso salvar a comunicação – São Paulo, Paulus, 2006 – coleção Comunicação] diz sobre laicidade na realidade de lá:

‘Confiança e respeito são, portanto, as palavras-chave da sociedade de comunicação. Sendo assim, formam o próprio princípio da laicidade. Laicidade significa o direito à existência de todas as religiões, em um ambiente de respeito, o que implica a tolerância e organização da coabitação.’

Mas é preciso destacar que o processo comunicacional alcança o âmago da tese de Wolton, ao torná-lo seu objeto epistemológico imediato. Da mesma forma que a interpretação daquele fato noticioso produzida pelos jornalistas paraibanos é um sintoma claro da esclerose discursiva que ataca impiedosamente os homens (e mulheres) de imprensa neste país. Na Paraíba a coisa parece ser ainda mais grave. O sociólogo francês aprofunda sua análise para dizer que ‘(…) A obrigação de construir uma ‘nova laicidade’ nos países multiculturais hoje em dia, ou seja, respeitando a diversidade religiosa, traduz o fato de que não pode haver respeito sem comunicação’.

O que precisamos salvar, urgentemente no Brasil, são as garantias mínimas ao usufruto da laicidade. Um Estado que se diz ‘laico’ e uma sociedade que se define como ‘democrática’ não pode continuar privilegiando apenas as correntes hegemônicas das religiões. É preciso quebrar esse discurso monolítico que demoniza as demais religiões e credos. Um Estado laico deve respeitar e defender todas as formas de religiosidade do seu povo, não apenas uma meia dúzia de instituições religiosas.

E onde entra a Comunicação nessa história? O que os meios de comunicação e sua mídia têm a ver com essa história de coabitação, laicidade e democracia? O que os jornalistas temos com tudo isso? Para responder esse inquérito, é preciso, primeiramente, expor o conceito que temos do papel da mídia na mediação social. Obviamente vamos considerar o aparato comunicacional dos meios de comunicação da atualidade, e sua forma de transmissão/mediação dos conteúdos. Aquilo que se passou a ser chamado de mídia.

É o processo de mediação discursiva com que os jornalistas fazem de notícias como essa, que precisa ser melhorado. Na TV a situação de interpretação dos fatos que os jornalistas fizeram desse episódio é ainda mais preocupante. Nos portais da região e em alguns sites nacionais de notícia circulou, fundamentalmente, um release em que se lê no título: ‘Homem é assassinado durante sessão em terreiro de umbanda em JP’. O texto está, basicamente, baseado no B.O que a polícia fez do ocorrido. Identificou-se a vítima, Joelson Bento da Silva. A delegada que averiguou o crime, Darcinaura Alves, e o condutor da cerimônia religiosa, ‘Pai Romildo’. As informações parecem ser apenas as que constam do B.O. da polícia, não houve outro tipo de apuração, um elemento básico do bom jornalismo.

Do que tratamos, notadamente, é menos do fenômeno meramente antropológico que marca as diferenciações das matizes religiosas na disputa pela hegemonia cognitiva em sociedade, que dos fenômenos no campo midiático, ou, se preferirem, do campo comunicacional. A manifestação do racismo religioso no noticiário tabajara é apenas uma espécie de sintoma de uma esclerose cognitiva que acomete a mídia e seus operadores.

Esse desequilíbrio na cobertura jornalística e na opção editorial dos jornais paraibanos reflete, portanto, o preconceito que esses veículos mantêm com as religiosidades de matriz africana. O jornal Correio da Paraíba, por exemplo, dedica, todos os domingos, espaços generosíssimos aos dois principais líderes religiosos do catolicismo e do evangelicismo local, D. Aldo Pagotto e o pastor Estevam Fernandes, respectivamente. Sem falar do périplo pseudo-literário-beático da senhora Fátima Bezerra Cavalcanti.

Ora, por que em nossos gloriosos jornais não se abrem espaços para a opinião dos sacerdotes e líderes candomblecistas e umbandistas locais? Por que a Mãe Renilda só aparece na mídia local para fazer as famosas ‘previsões’ no final de dezembro? Por que não se ouve o que tem a dizer uma Mãe Lúcia Omidewa ou um Pai Erilvado? Ou será que apenas a sabedoria letrada dos bispos e pastores interessa à população?

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Jornalista graduado pela UFPB, mestre em Comunicação pela UFPE e ex-diretor do Sindicato dos Jornalistas da PB