‘Somos os filhos do meio da história e fomos ensinados pela televisão a acreditar que um dia seremos milionários, astros de cinema e do rock, mas é mentira’ (Tyler Durden, personagem do livro Fight Club, de Chuck Palahnuik)
No dia 9 de novembro, o Jornal Nacional exibiu uma matéria comemorativa da queda do muro Berlim. Durante a matéria, que buscou o respaldo científico intercalando fala de historiadores, além das clássicas cenas das marretadas no muro, a edição reforçou a alegria dos alemães orientais com a unificação. O elemento concreto da unificação apresentado pela matéria foi a moeda coberta pela bandeira alemã. Em seguida, uma imagem antiga de Pedro Bial em meio à multidão exibindo uma cédula, logo substituída por imagens de prateleiras e caixas de supermercado e uma voz em off dizendo sutilmente que ‘Cuba empobreceu’ por não aderir àquela prosperidade e riqueza trazida pelo modo de vida capitalista.
Esse tipo de edição poderia muito bem circular nos tempos da bi-polaridade. Apenas não entendo a razão. Penso que talvez seja uma espécie de temor: mas que tipo de temor? Medo de uma ameaça do torto comunismo chinês (economia socialista de mercado) ou da entrada de Chávez no Mercosul, srs. editores? É isso? Se não há mais muro, se não há mais ameaça comunista, porque essa retração do outro lado? Outro lado que, aliás, não existe. Será um reflexo condicionado adquirido ao longo da história, incorporado como doença crônica pelos editores, pungindo toda vez que a ameaça vermelha inexistente é mencionada, até mesmo em datas comemorativas?
Coisificação e antropomorfização
Na mesma edição, foram exibidas cenas do desastre em El Salvador. O jornalista aproxima-se de uma casa soterrada, a câmera corre curiosa até uma janela. A voz do sujeito pronuncia: ‘É uma janela, e isso aqui… Isso aqui é uma porta.’ O tom de fato curioso continua sobre as pedras que rolaram, sobre os destroços, sobre as pessoas que passam ao fundo. O tom de turismo prossegue a tal ponto que sequer podemos vislumbrar que viviam pessoas naquelas casas, mesmo quando o jornalista pronuncia rapidamente que as casas eram habitadas; quando tal nota vem, já é tarde demais: estamos submersos.
Não foi isso que aconteceu na edição de domingo, 8 de novembro, do Fantástico, em uma matéria referente ao derretimento das geleiras. Enquanto na matéria sobre El Salvador do JN há uma coisificação das pessoas, no Fantástico (talvez por isso esse nome) há uma antropomorfização dos ursos polares. Numa tomada digna de filmes da Disney, os pobres ursos polares sofrem isolados e sozinhos, famintos, ‘entregues a própria sorte’ – diz a voz em off. Depois, um giro pela Europa, onde a voz diz, diante da imagem de uma santa ‘agora é a montanha que roga por proteção’; depois passamos pela África do Sul, onde mais animais são mostrados, a desertificação no nordeste, uma mulher colhendo água na Bolívia, e o guia turístico dos Andes, não nos comovem tanto como o pobre urso faminto, ‘entregue a própria sorte’.
Exploração e desigualdade
O muro que não cai, que permanece firme, rijo, absoluto, é o da prosperidade da economia de mercado; o muro que não cai é aquele que ofusca a visão de que os efeitos colaterais do aquecimento global vão afetar, e já estão afetando, primeiro os mais pobres. Não se toca no assunto de que a queda do muro de Berlim é um dos grandes responsáveis pelo crescimento do consumo, já que se celebra não apenas a queda de um poder totalitário, mas a prova concreta de que o consumismo, a economia de mercado, é a melhor coisa que homem inventou para si em todos os tempos. Não adianta o respaldo risonho de doutores em história, não é uma celebração da democracia, não é algo tão simples, ingênuo e nobre assim; é uma exaltação quase religiosa ao símbolo maior das regras da riqueza pela riqueza e do poder pelo poder, o custo de exploração e da miséria. Não se toca nesse assunto. É querer demais…
E cá ficamos nós, afinados com discurso de coral que canta o desenvolvimento sustentável: desenvolvimento sustentável do capitalismo de mercado com todas suas formas de exploração e desigualdade. Somos nós carregando as latas de cimento nas costas, sol a sol, fixando tijolos, amarrando vergalhões – erguendo esse muro que não cai. Nós: conscientes e preocupados com o pobre ursinho faminto, ‘entregue a própria sorte’.
‘… A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio. Falava que os vazios são maiores e até infinitos’ (Manoel de Barros)
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Escritor, contista, editor do selo Terceira Margem (Ed. Multifoco) e graduando em Filosofia pelo UNIS-MG/Varginha, Luminárias, MG