Os dois jornais paulistas de circulação nacional, Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo, comemoram os 458 anos da metrópole com seus tradicionais cadernos especiais sobre a maior e mais complexa cidade do país. Com fartura de anúncios, os dois suplementos sofrem do mesmo pecado: falta de originalidade.
No Estadão, predomina a tentativa de humanizar a cobertura com personagens, a maioria deles revisitada após terem protagonizado alguma notícia relevante no passado. O pano de fundo é um velho bordão: São Paulo não pode parar. Na Folha, a idéia de retratar uma cidade mutante remete ao mesmo conceito, mas a abordagem é feita pelo olhar urbanístico.
Em geral, cadernos desse tipo são uma forma de celebração, mas também uma oportunidade para refletir sobre as escolhas que fazem da cidade o que ela é.
A cidade desumana
Mobilizada nas últimas semanas pela operação de esvaziamento da região central conhecida como Cracolândia, a capital paulista se encontra, no seu aniversário, mais uma vez agitada por uma nova mudança.
Com todas as polêmicas provocadas pela falta de planejamento e pela truculência da ação policial, a cidade amanhece em seu aniversário aparentemente livre daquela chaga social: a Cracolândia está vazia – pelo menos durante o dia – conforme atestam os jornais. Mas, como todas as operações desse tipo, a imprensa não sabe dizer para onde foram aqueles infelizes escravos do narcotráfico.
Da mesma forma como não saberemos, dentro de algum tempo, onde foram parar os milhares de moradores do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), que também foram retirados de suas casas nesta semana.
Em sua busca por personagens, o Estadão foi procurar uma jovem que, em 2004, apareceu em reportagem sobre incêndio numa favela, e um homem cuja casa foi destruída pela queda de um avião em 1996. Mas, no geral, a cidade é retratada por meio dos mesmos ícones que fazem o dia a dia da imprensa: o ex-campeão de automobilismo, os ex-jogadores de futebol, a artista plástica famosa.
A rigor, ao falar da cidade desumana, a imprensa repete o modelo que exclui o cidadão comum, passa ao largo dos motivos que tornam tão duro, para a maioria, viver numa metrópole como São Paulo.
A cidade impossível
A Folha se arrisca a buscar as razões pelas quais a capital paulista chega aos seus 458 anos sem conseguir superar suas deficiências crônicas. Não é por falta de planejamento, diz o jornal. É por falta de respeito ao planejamento.
O jornal publica alguns mapas antigos e revela velhos planos que nunca saíram do papel, mas não se aprofunda no paradoxo principal que torna a cidade tão caótica: a especulação imobiliária, motor do crescimento da mancha urbana, também é a força que atropela todas as tentativas de organização do futuro.
O tema faz parte dos debates em torno de mais um plano diretor, que deverá ser concluído neste ano. Como sempre, os objetivos são auspiciosos: fazer com que São Paulo seja, em 2025, uma cidade com mais parques, mais transporte público e menos necessidade de deslocamentos, a partir de restrições mais rigorosas a construções em áreas saturadas e ocupação mais organizada de regiões com melhor infraestrutura.
Os jornais apenas não informam como impedir que as contribuições para campanhas eleitorais, despejadas pelo setor de construção civil, deixem os futuros vereadores e os próximos prefeitos impossibilitados de realizar esse plano ambicioso.
No entanto, é preciso reconhecer que tem havido mudanças. Mas elas são estimuladas pelos novos paradigmas de qualidade de vida que precisam levar em conta a questão ambiental. E o movimento que deu partida a esse novo conceito não nasceu nos gabinetes oficiais: foi criado pelo empresário Oded Grajew, o mesmo que fundou o Instituto Ethos e trouxe para o Brasil os planos que permitiram reorganizar e humanizar a cidade de Bogotá, na Colômbia.
O Movimento Nova São Paulo, liderado por Grajew, tem contribuído para convencer urbanistas e autoridades a mudar seus conceitos sobre desenvolvimento urbano. Faz parte desse novo modelo a democratização dos benefícios que uma cidade grande pode oferecer, a partir de direitos básicos como moradia digna e educação de qualidade. Mas a pressa de “higienizar” o centro da cidade para apresentá-lo como cartão postal nas eleições deste ano atropela esse propósito.
Os cadernos comemorativos citam esses episódios, quase constrangidos. Talvez porque os jornalistas, que vivem enfiados nos desvãos dessa cidade impossível, não acreditem que ela possa um dia ser um bom lugar para todos.