O Brasil é um dos poucos países do mundo que tem uma terceira edição de um Programa Nacional de Direitos Humanos apresentada pelo governo federal. Por si só, isso já demonstra uma preocupação do Estado brasileiro com a situação desses direitos em território nacional. Mais positivo ainda é se este programa é atualizado periodicamente em diferentes espaços de diálogo e interlocução com a sociedade civil. No caso da terceira edição do PNDH, estamos falando de um processo que envolveu mais de 14 mil pessoas em todo o país. Um processo que deve ser saudado para que, imediatamente, se possa cobrar deste mesmo governo um compromisso com o mesmo.
Infelizmente, as recentes alterações sofridas pelo PNDH-3, via decreto presidencial, revelam a outra triste face desta moeda. O Decreto 7.177, de 12 de maio de 2010, alterou sete e revogou duas ações do Programa Nacional. Ficou explícito que, apesar de despontar como promissora potência mundial, o Brasil ainda se curva a setores autoritários com grande tradição na arte de manter o país, simbólica e estatisticamente, no ‘terceiro mundo’.
Desrespeito pela 13ª Conferência
Desde a publicação do Decreto 7.037/2009, que institucionalizou o PNDH-3, bispos católicos, militares, latifundiários e donos da mídia bombardeiam a sociedade com suas opiniões sobre as diretrizes que buscam a redução dos conflitos no campo, o respeito ao Estado laico e aos direitos da mulher, à memória e à verdade e a democratização das comunicações. Agem como uma tropa, colocando os meios de comunicação na linha de frente da artilharia daquilo que consideraram uma ‘obsessão totalitária’, como observou um dos articulistas da revista Veja.
A constatação óbvia – e triste – que este governo não foi capaz de enfrentar setores que tornam o Brasil um país profundamente desigual e arcaico é tão grave quanto o desrespeito aos processos democráticos e participativos promovidos pelo próprio governo. O Programa foi construído por meio de Conferências Municipais, Estaduais e Nacional de Direitos Humanos, convocadas pelo Executivo. O resultado dessas conferências, abertas a toda sociedade, é um indicativo aos gestores públicos e legisladores sobre as mudanças que devem acontecer na área.
Foi a partir da 13ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que nasceu o PNDH-3. Ao alterar seu texto, o governo desrespeita frontalmente essa construção e abre precedente para que outras Conferências e Programas sejam alterados à revelia de todos aqueles que, com debate público e espírito democrático, definiram objetivos, diretrizes e ações para as políticas públicas no Brasil.
Mas o que poderia ter levado o governo a estabelecer tamanho recuo e desrespeitar o processo da 13ª Conferência de Direitos Humanos?
O conceito de democracia direta
A crítica ao PNDH-3 e a seu processo originário não veio isolada na artilharia dos grandes meios de comunicação. Na edição do dia 17 de janeiro de 2010, o jornal O Estado de S. Paulo publicou dez matérias e artigos que trataram das Conferências e do Programa Nacional de Direitos Humanos. Só sobre as Conferências foram quatro no caderno ‘Nacional’. Na primeira matéria, com o título ‘Um debate que cabe em qualquer evento’, os repórteres Felipe Recondo e Marcelo de Moraes sentenciam:
‘No governo Lula, as Conferências nacionais têm sido realizadas constantemente e produzido propostas polêmicas, mas inócuas. Na prática, servem para que o presidente Lula dê voz ao público interno do PT e dos movimentos sociais, que levantam bandeiras controvertidas, mas acabam não tendo conseqüências.’
A matéria seguinte traz na manchete um ataque feroz: ‘Conferência de Cultura arma novo ataque à mídia’. Dois parágrafos para o Ministério se defender. Mas a entrevista de página inteira coroa a série: o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, no bojo de sua autoridade de intelectual, é acionado para finalizar o massacre:
‘Usado para fundamentar as conferências nacionais promovidas pelo governo, o conceito de democracia direta ainda custa a ganhar a adesão de alguns estudiosos, a exemplo do cientista político Leôncio Martins Rodrigues. Para ele, a proposta não apenas é `impossível de ser realizada´, como representa mais uma fórmula para que uma minoria organizada mobilize a maioria. Foi por trás da tese de contato direto de um líder com a população, argumenta, que nasceram ideologias como o fascismo.’
‘A última fronteira para o mal’
Não há outra explicação que não a pura e simples manipulação ideológica do leitor para comparar as Conferências com práticas fascistas. Em artigos de opinião de outros três cadernos, a edição daquele domingo seguiu desferindo golpes no ministro da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, e no governo federal.
O exemplo usado foi o de uma edição de janeiro de 2010 de O Estado de S. Paulo, mas poderia ser de uma edição do Jornal Nacional, do jornal O Globo, do Correio Braziliense ou da Folha de S.Paulo dos últimos seis meses. Não faria diferença. A artilharia contra o PNDH-3 e os processos participativos foi arquitetada pela Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que representam, junto com a Associação Nacional de Editoras de Revistas (Aner), toda a patota de empresários de mídia que se organizou para fuzilar o PNDH-3.
O aparato bélico também foi apontado para a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), espaço que essas mesmas entidades abandonaram sem explicação convincente. Acusaram os participantes de ser contra a liberdade de expressão e de desejar a volta da censura. Espaço para o contraditório em seus veículos? Nenhum. Quem censura quem, afinal?
Falando em censura, ela não apareceu apenas nas justificativas acusatórias da Confecom, mas foi também pano de fundo de uma propaganda produzida pelo Conselho de Autorregulamentação Publicitária (CONAR) e seu braço acadêmico, a Escola Superior de Marketing e Propaganda. A peça, inserida propositadamente em meio ao bombardeio de notícias sobre o PNDH-3, envolve o telespectador numa animação sombria de animação científica com a seguinte narrativa:
‘Ele era conhecido como o Último Suspiro, o laboratório mais seguro do mundo, a última fronteira para o mal. Ali, foram eliminadas as maiores aberrações existentes na face da terra, vírus, seres das profundezas oceânicas, bactérias. Experiências secretas foram feitas ali e, em uma cela especial, ainda habita a criatura mais terrível, o mostro da censura, que agora repousa fora de combate. A temperatura da sua cela é cuidadosamente controlada, o frio tem que ser constante, assim ele já mais despertará de novo. Nada pode distrair a tarefa da sentinela! Não deixe o mostro da censura acordar!’
Cotas, limites e sanções
Em pouco tempo, o governo atendeu ao terrorismo midiático da peça publicitária e cedeu à metralhadora giratória do jornalismo praticado por essas empresas, modificando pontos significativos relacionados à mídia no texto do PNDH-3. Levantou a bandeira branca e, numa canetada, reescreveu sozinho o que foi construído por milhares de mãos em todo o Brasil, e que estava compilado na Diretriz 22: ‘Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos’.
Foi alterada a ação programática ‘a) Propor a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas’.
Na Constituição Federal, o artigo 221 diz que ‘a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família’.
Desde 1963, no entanto, o Decreto 57.795 estabelece, por exemplo, um mínimo de 5% da grade de programação diária para o jornalismo, de 5 horas de programação educativa por semana e também o limite de 25% da grade diária com veiculação de publicidade. O decreto também prevê multas, suspensões e cassações, caso haja descumprimento das normas estabelecidas. Ou seja, estabelece alguns parâmetros que, posteriormente, foram recepcionados pela Constituição, criando cotas, limites e sanções para os radiodifusores.
Preconceito, estereotipização e discriminação
O que a redação original do PNDH-3 previa era a inclusão dos direitos humanos como um desses parâmetros, para evitar que práticas racistas, machistas, homofóbicas e outras de mesma natureza acontecessem na programação das concessionárias de rádio e TV.
A grande mídia chiou e, com a nova redação, a ação programática ficou bem mais genérica, sem avanços: ‘a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados’.
Cabe perguntar, então, se os meios de comunicação são favoráveis a conteúdos que violem direitos humanos, já que foram contrários a que esse fosse um critério para outorga e renovação das concessões. Ou se acreditam que estabelecer os direitos humanos como critério para ocupar um espaço que é público é censura, pois foi isso que bradaram aos quatro ventos em seus veículos.
O segundo pecado do PNDH-3, na visão dos donos da mídia, foi a ação ‘d) Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações’.
Essa ação, que foi apagada da nova versão do Programa, simplesmente já é executada desde 2002. A Campanha Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania, coordenada por entidades da sociedade civil em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, recebe denúncias dos telespectadores e, a partir delas, faz um ranking para classificar os programas que incentivam o preconceito, a estereotipização e a discriminação. Depois buscam sensibilizar anunciantes para que deixem de financiar esse tipo de conteúdo. Logo, é difícil compreender por que os empresários da grande mídia, mais uma vez, tacharam de censura esta forma de coibir violações de direitos humanos na mídia.
Uma luta de todos
Na verdade, ao contrário do que dizem Abert, ANJ e Aner, o cerceamento à liberdade de imprensa ou de expressão está longe de ser o problema de conferências e programas nacionais delas resultantes. O grande problema desses instrumentos de participação popular é que eles colocam o dedo na ferida das estruturas fundantes da desigualdade histórica em nosso país. Neste caso, um dos mais notórios problemas da democracia brasileira: os monopólios e oligopólios de mídia.
Para se ter uma ideia, as cinco principais redes de TV controlam 65% das emissoras (284 emissoras), são responsáveis por 82,5% da audiência nacional, e controlam 99,1% das verbas publicitárias. A Globo, sozinha, tem 44,3% da audiência e 73,5% das verbas publicitárias. Isso tudo apesar da explícita vedação ao monopólio dos meios de comunicação presente em nossa Carta Magna.
O monstro da censura, portanto, que esses empresários não querem acordar, é na verdade o monstro da democracia nos meios de comunicação. Democracia que só pode ser exercida plenamente quando houver mecanismos que garantam a circulação da pluralidade de ideias e da diversidade característica da sociedade brasileira na esfera pública midiática. Afinal, somente num espaço onde todos e todas tenham voz, os direitos humanos poderão ser conhecidos, reconhecidos, protegidos, defendidos, reivindicados e efetivados.
É isso o que defendem o PNDH-3 em sua Diretriz 22 e todas as organizações, movimentos populares e defensores de direitos humanos organizados em torno da Campanha Nacional pela Integralidade e Implementação do PNDH-3. Esta é uma luta de todos e todas nós.
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Jornalistas e integrantes do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social