Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O papel da mídia no Estado republicano

A preservação e realização dos princípios que regem uma dada sociedade não é função unicamente do Estado. Todas as instituições sociais têm um relevante papel a cumprir nesse processo. A mídia é uma delas. No Brasil, não é diferente. De acordo com a Constituição Federal em vigor, em seu artigo 1º, caput, somos uma república federativa constituída em Estado Democrático de Direito.

Como Estado de Direito, portanto, e não absolutista, nossas instituições possuem algumas características comuns, inerentes a esse modelo civilizatório. Em linhas gerais, podemos dizer que vivemos numa sociedade aberta, cujas instituições são coletivas e regidas por hierarquia e disciplina. Trata-se da chamada sociedade disciplinar, conforme expressão utilizada por Michel Foucault.

A sociedade disciplinar surge em substituição à sociedade de polícia, sua antecessora, na qual a vida das pessoas era parametrada de acordo com o lugar em que elas nasceram, sua classe ou segmento social. Numa sociedade disciplinar, aberta, como a nossa, essa regra se modifica. Hoje, o sentido de apreço, de auto-imagem, é dado pela opinião dos outros, ou seja, pela imagem que gozamos no ambiente social. A opinião alheia é algo estruturante do significado de viver em nossa sociedade.

Nessa sociedade aberta, a opinião do outro é essencial, afetando todos os aspectos da vida, desde os menores e mais corriqueiros, como os creditícios, em que a opinião do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) é determinante para a obtenção de crédito, até elementos fundamentais, associados à imagem do indivíduo. Além do direito à vida, é direito fundamental da pessoa ter possibilidade de acesso à felicidade. Essa é a essência da ordem jurídica. Mas esse direito fica comprometido na sociedade aberta em razão de uma imagem negativa.

Quando essa imagem negativa é formada em razão de fatos verdadeiros, cabe ao indivíduo suportá-la, isso é conseqüência do exercício de sua autonomia e liberdade. O problema é que a maioria dos fatos nesse universo de signos em que vivemos não são ocorrências da realidade, mas sim construções lingüísticas. Não decorrem das nossas condutas, mas de construções lingüísticas dessas condutas. Isso interfere no funcionamento do Estado republicano e, ao mesmo tempo, é inerente a ele. É, na verdade, elemento conformador da República moderna. O problema é que esse mecanismo de construção de imagem não tem funcionado de forma republicana.

Inversão de papéis

A idéia de Estado republicano repousa na inadmissibilidade de poder insuscetível de controle pela sociedade. Todo poder emana do povo e deve, por ele, ser exercido e controlado através de mecanismos específicos. A lei, por exemplo, é mecanismo de controle do Executivo; a eleição é uma forma de controle da escolha dos agentes políticos; o Conselho Nacional de Justiça e o Tribunal de Contas são meios de controle do Judiciário. O próprio poder Judiciário tem entre suas funções o controle das atividades do Executivo e do Legislativo.

É assim que a liberdade é garantida, através da contenção do poder. Numa sociedade aberta e livre, uma das maiores formas de poder é essa construção de mecanismos lingüísticos que vão incidir sobre a imagem das pessoas. É aí que entra a mídia, como principal veiculadora e articuladora dessas construções lingüísticas, interferindo de forma decisiva no processo de criação, preservação ou destruição de imagens.

Nesse ponto, é preciso distinguir o conceito de direito à liberdade de expressão, garantido pela Constituição Federal como sendo fundamental ao ser humano e inalienável, e a liberdade de expressão em si mesma. Se a liberdade de expressão não traz em sua definição espécie alguma de limite, o mesmo não se pode dizer do direito à liberdade de expressão. Para o direito, qualquer conduta humana é limitada pela alteridade. O direito de um indivíduo pode ser exercido desde que esse exercício não usurpe, não prejudique o direito do outro. Essa limitação é ainda mais relevante quando falamos de um poder, e não mais de uma conduta humana. Se não houver limites ao poder, a sociedade não poderá funcionar. Encontrar mecanismos sociais de controle a esse poder que a mídia tem é absolutamente relevante.

Não é difícil encontrar casos reais que ilustrem o poder da mídia. Toda a reverberação que houve decorrente do chamado Dossiê Vedoin, poucos dias antes da realização do primeiro turno das eleições presidenciais, interferiu no processo eletivo, mesmo considerando o fato de que o caso ainda estava sob investigação e não havia sido comprovada a responsabilidade desse ou daquele indivíduo.

O único fato que dispensa comprovações nesse cenário é o poder da mídia junto à sociedade. Por conta, também, dessa pressão que a mídia exerce, há uma inversão no papel dos poderes. O Executivo acaba legislando em vez de administrar. O Legislativo vira uma grande delegacia de polícia. E o Judiciário não julga, acaba só decidindo por liminares.

Processo crítico

A pressão que a mídia faz resulta muitas vezes na prisão liminar de pessoas que sejam acusadas. O clamor público, por exemplo, invocado muitas vezes como justificativa da prisão preventiva, é um dos conceitos comunicativos criados que traduz uma das formas de manifestação do poder da mídia. Por meio dele, ela interfere diretamente no elemento jurídico criador do poder de aprisionar.

Alguns sistemas, no interior da sociedade aberta, adaptam-se bem a essa pressão que a mídia exerce. O sistema político, por exemplo, consegue, de alguma forma, dialogar bem com esse poder da mídia. Também o sistema econômico consegue conviver e estabelecer mecanismos de relacionamento com alguma eficácia.

Já o sistema jurídico não. A garantia do devido processo legal, por exemplo, está na base do sistema jurídico. E essa garantia demanda, entre outros recursos, tempo, um tempo que a mídia não tem. A mídia necessita produzir a informação de modo quase instantâneo. Impossível garantir a lisura da apuração, o direito de defesa, a razoabilidade que o processo jurídico exige num curto espaço de tempo. A rapidez no processo de obtenção de informação junto às pessoas predispõe esse processo a muitas injustiças.

Claro que a solução para esse problema não passa pela censura. Não acredito na hipótese de censura como forma de controle. Porém, a procedimentalização do trabalho de apuração e divulgação da informação é necessária. Alguns desses procedimentos já foram muito claramente definidos pela própria mídia, como a busca incessante da imparcialidade, o dever de ouvir todos os lados da questão ou mesmo a instituição da figura independente do ombudsman. No entanto, tais mecanismos não se têm mostrado suficientes.

Para que a mídia possa exercer a contento o seu papel no Estado republicano é preciso discutir novos procedimentos. E dessa discussão tem que participar não só a mídia em geral, mas toda a sociedade.

Não acredito em mecanismos de controle estatal sobre a imprensa. Não acredito em mecanismos de controle burocrático. Tenho certeza de que a única forma de se definir esses mecanismos seja pela via democrática, e não vejo ninguém melhor preparado para levar à frente esse processo do que os próprios jornalistas, sempre com a participação da sociedade.

Para que a mídia, como instituição, exerça o papel que lhe cabe no Estado republicano, mais do que modificações legislativas é preciso haver uma mudança de cultura. Esse é o meio mais eficaz de se solucionar o problema. Não será a intervenção estatal que resolverá essa questão, mas sim um processo crítico, reflexivo, que os próprios agentes de mídia, em primeiro lugar, terão que conduzir, e do qual a sociedade como um todo tem que participar. Esse é o objetivo dessa crítica à mídia: promover a reflexão.

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Advogado, professor de Direito Constitucional da PUC-SP e autor de O desvio de poder na função legislativa (Editora FTD)