‘Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.’ (Clarice Lispector)
As últimas décadas foram marcadas pela invasão de privacidade em nome de todos. Não é filme de sacanagem, muito menos um vizinho voyeur. É a máxima McLuhaniana em que o homem cria a ferramenta e a ferramenta recria o homem. O espaço dividido por todos e por ninguém. Cidades como Londres reduziram a possibilidade do anonimato A zero. Não há um ponto sequer sem cobertura visual, sem uma câmera apontada naquela direção. Hoje, o Reino Unido tem 4,2 milhões de equipamentos, um para cada catorze habitantes. Só no metrô londrino, 60 mil câmeras vigiam os usuários.
Semana passada, uma universitária do interior paulista foi hostilizada por ter ido à aula de vestido curto. O fato poderia ter ido parar nas páginas dos jornais locais, mas ganhou dimensão nacional por ter sido flagrado por câmeras de segurança da própria faculdade e celulares dos alunos. Neste caso particular, a tecnologia prestou o desserviço de publicitar. Será que essa moça terá a mesma vida de antes?
Este artigo tem a pretensão de escapar do maniqueísmo. Portanto, apresenta o outro lado, como o do juiz assassino Pedro Percy Barbosa de Araújo, captado pela câmera de um supermercado do interior do Ceará onde sua vítima trabalhava como vigia. Ou o caso do coordenador do grupo AfroReggae que, graças às câmeras de uma agência bancária, permite perguntar: morto por bandidos que o assaltaram ou pelos policiais que deixaram seu corpo estendido no chão e ainda por cima levaram o que tinha sido roubado pelos marginais?
O conceito cristão de perfeição
Na cidade de São Paulo, o número de câmeras cresceu dez vezes de 1998 à 2008. Pulou de 50.000 para 500.000, ou seja, uma para cada 22 paulistanos. Um mercado potente que só ano passado movimentou quase 3 bilhões de reais. Mesmo com tantos pontos absorvidos pelo registro, nada mudou. Isso porque o ator continua o mesmo. Filmar tudo é utopia, e mesmo que aconteça sempre haverá uma margem descoberta pela criatividade.
A literatura criou um cenário parecido com o que vivemos. Escrito em 1948 e publicado no ano seguinte, 1984, de George Orwell, mostra uma sociedade de controle altamente reprimida e vigiada. Apesar de ter sido o primeiro contato, não foi Orwell que me apresentou o sentido real dessa ação. Aldous Huxley escreveu cinco anos mais tarde Portas da Percepção, no qual, com a ajuda da mescalina, encontra uma maneira de fugir das amarras formadoras do caráter. Foi ali que Huxley teve a sua e a minha revelação, por ele batizada de Beatífica Visão, Sat Chit Ananda – Existência-Consciência-Beatitude.
No momento ápice da alucinação, Huxley foi tomado pela pergunta ‘Isso é agradável?’, e depois pela resposta ‘Nem agradável, nem desagradável. Apenas existe.’ Aí está a núcleo para compreender a pulsão sobre o controle dos espaços e, ao mesmo tempo, a retirada dos mesmos. Essa vontade de onipresença nada mais é que a vontade de ser Deus. Só que quando nos deixamos conduzir por essa vontade, levamos junto o conceito cristão de perfeição. É por isso que sempre que olhamos na tela e flagramos o corte na carne ou o sangue espirrando, caímos no abismo e retornamos ao começo. Isso não tem fim – quanto mais conjugarmos esse verbo, mais estranhamente humanos seremos.
O mundo precisa de gente nas ruas
Para ver e ser visto sem regorjear, é preciso primeiro compreender a sociedade moderna onde tudo o que falta à vida, segundo Debord, acha-se no conjunto de representações independentes do espetáculo. É a tal cegueira branca de Saramago que nada mais é que o excesso de luz. É o jorrar, e não a seca, que atua estrangulando a observação. As duas últimas gerações nasceram atrasadas. É por isso que nada é novo.
O mundo não precisa de câmeras, e sim, de gente nas ruas. De pessoas trocando apertos de mãos, olhares, fluidos. Apesar de sermos empurrados para dentro, há uma força que empurra de volta e diz: se for filmar, que pelo menos coloque meu nome nos créditos finais.
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Jornalista, Fortaleza, CE