Nada como começar um novo ano com planos. No caso do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), a terceira versão foi divulgada no fechar das cortinas de 2009, mas a discussão está pegando fogo pra valer agora. Primeiro, houve um alarde sobre a reação dos militares ao conteúdo que mexeria na Lei da Anistia. Agora, é a vez do empresariado da comunicação espernear.
E não é de se estranhar a reação exagerada dos meios de comunicação ao PNDH. Primeiro, porque se analisarmos as propostas de comunicação do Plano, ele tem uma boa dose de ousadia – inclusive, algumas propostas batem de frente com a atuação do próprio Ministério das Comunicações (Minicom), como, por exemplo, as de incentivo à comunicação comunitária e avaliação do compromisso público dos meios de comunicação, com monitoramento das concessões. Segundo, porque o empresariado ainda deve estar farto desta coisa de democracia nas comunicações, em função da recentemente realizada Conferência Nacional de Comunicação.
Semana passada, na maioria dos telejornais, apareceu um dos motivos pelos quais a mídia está fazendo uma verdadeira campanha contra o plano divulgado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) e que é fruto, segundo a secretaria, de ‘amplo debate entre o poder público e a sociedade civil’.
A gritaria se deu especialmente em relação ao item d da diretriz 22 do objetivo estratégico 1 do plano, que prevê a elaboração de ‘critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações’.
A proposta tem como responsáveis o Minicom, a SEDH-PR, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e os Ministérios da Cultura e da Justiça. Como recomendação geral, este item sugere ‘aos estados, Distrito Federal e municípios fomentar a criação e acessibilidade de Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em Direitos Humanos’.
Monitorar não é censurar
A participação popular na definição de critérios para avaliação das concessões de rádio e TV e o monitoramento da programação para evitar a violação de direitos é uma das principais e mais antigas reivindicações do movimento de comunicação. Na imprensa comercial, é tachada prontamente de censura, mas sabemos bem que não se trata disso. Não podemos confundir censura com monitoramento de programação e criação de critérios de avaliação das concessões, que favoreçam o compromisso com o interesse público que veículos de comunicação devem ter com a população. Em especial, os veículos de comunicação como rádio e TV, que são concessões públicas.
Hoje, o que vemos é um verdadeiro desmando, como denunciou, há cerca de dois anos, a Campanha por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV. Na época, o movimento de comunicação conseguiu realizar uma grande mobilização nacional, que trazia a público a falta de regras para concessão e de critérios para avaliação para estes empresários, a quem o direito de comunicar é outorgado por regime de concessão pelo Estado Brasileiro. A campanha denunciava que não existe qualquer mecanismo de avaliação destas outorgas, o que as diferencia de outros serviços públicos, como por exemplo, os transportes, cujos concessionários são obrigados a apresentar planos de exploração e tem seu trabalho monitorado pelo próprio Estado e inclusive pela população.
Acontece que no caso da comunicação é comum se confundir concessão com propriedade. Historicamente, é isso que acontece por conta de diversos fatores. Entre eles, está o de a principal mídia do nosso país, a televisão, ter nascido e se expandido no sistema privado. E outro é o de o sistema de concessões não possuir nenhum tipo de revisão, tornando as televisões e rádios do país em verdadeiras capitanias hereditárias, exploradas por famílias que, uma vez sendo concessionárias, sempre serão concessionárias.
Mas a radiodifusão tem que ser tratada como coisa pública e não pode ser usada para fins corporativos ou defesa de interesses próprios, que é o que acontece. É preciso que a participação popular (que pode ser expressa por outros termos como gestão democrática ou controle público) se dê tanto em relação às políticas que perpetuam esta situação, quanto em relação aos conteúdos da mídia, que são os grandes formadores de visões de mundo e valores da população brasileira.
Voltando ao assunto do Plano Nacional, não é coincidência que os outros pontos do documento que aparecem como ‘polêmicos’ são relativos à propriedade de terra. O Brasil precisa de uma reforma agrária na terra e no ar.
Propostas ousadas
Para desespero dos empresários de comunicação e gritaria da mídia comercial, a diretriz 22 do Plano vai mais longe. Sob o título de ‘Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos’, ela tem outro objetivo estratégico: a ‘Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação’, que contém itens sobre comunicação popular e alternativa e fomento a pesquisas, iniciativas que, se tiradas do papel, podem bater de frente com políticas tocadas pelo Minicom, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Polícia Federal na repressão às rádios comunitárias, por exemplo.
O objetivo 1 é mais ousado, quando propõe um avanço em relação às políticas de comunicação comunitária e a ação do Ministério Público ‘para proposição de ações objetivando a suspensão de programação e publicidade atentatórias aos Direitos Humanos’. Esta proposta é inspirada no episódio do Direito de Resposta, programa que, entre dezembro de 2005 e janeiro de 2006, levou ao ar diariamente uma programação sobre direitos humanos, como contrapropaganda ao programa Tardes Quentes, do apresentador João Kleber. O programa foi tirado do ar por uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público Federal em parceria com organizações da sociedade civil – entre elas o Intervozes – que denunciava a violação de direitos humanos pela programação que, na época, era veiculada na Rede TV!
Propõe também a suspensão do patrocínio e da publicidade oficial em meios que veiculam programações atentatórias aos Direitos Humanos. O movimento de comunicação sempre pensou na publicidade como um possível mecanismo indutor de transformações. A Campanha pela Ética na TV: quem financia a baixaria é contra a cidadania chama atenção justamente para isso. Financiar programações que violam direitos humanos é uma forma de contribuir para que os abusos continuem sendo feitos por uma programação que não está submetida a qualquer tipo de critério ou avaliação que a condicione ao interesse público.
Ou seja: o PNDH transforma em propostas concretas algumas reivindicações históricas e algumas práticas bem sucedidas do movimento de comunicação. Sabemos bem que se trata de um plano. E sabemos bem que planos precisam de muita mobilização e acompanhamento para sair do papel. Justamente por isso, precisamos ficar de olho nestas propostas e fazê-las valer.
Fica o desejo de que possamos ter voz e vez para fazer o contraponto às lamúrias da mídia comercial corporativista, que afirma que participação popular em comunicação é censura. Que 2010 seja um ano de lutas e conquistas para o movimento de comunicação. O Plano aponta neste sentido.
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As propostas do PNDH que envolvem o Minicom e as Comunicações
Reconhecimento da educação não formal como espaço de defesa e promoção dos Direitos Humanos.
Ações Programáticas
d) Apoiar e desenvolver programas de formação em comunicação e Direitos Humanos para comunicadores comunitários.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério das Comunicações; Ministério da Cultura
e) Desenvolver iniciativas que levem a incorporar a temática da educação em Direitos Humanos nos programas de inclusão digital e de educação à distância.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Educação; Ministério das Comunicações; Ministério de Ciência e Tecnologia
Diretriz 22
Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para a consolidação de uma cultura em Direitos Humanos.
Objetivo Estratégico I
Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos.
Ações Programáticas
a) Propor a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça; Ministério da Cultura
Parceiro: Ministério da Ciência e Tecnologia Educação e Cultura em Direitos Humanos
Recomendações:
Recomenda-se inserir a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados na discussão sobre outorga e renovação de concessões públicas.
Recomenda-se ao Ministério Público assegurar a aplicação de mecanismos de punição aos veículos de comunicação, autores e empresas concessionárias.
b) Promover o diálogo com o Ministério Público para proposição de ações objetivando a suspensão de programação e publicidade atentatórias aos Direitos Humanos.
Responsáveis: Ministério da Justiça; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
c) Suspender patrocínio e publicidade oficial em meios que veiculam programações atentatórias aos Direitos Humanos.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça
d) Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça
Recomendação: Recomenda-se aos estados, Distrito Federal e municípios fomentar a criação e acessibilidade de Observatórios Sociais destinados a acompanhar a cobertura da mídia em Direitos Humanos.
e) Desenvolver programas de formação nos meios de comunicação públicos como instrumento de informação e transparência das políticas públicas, de inclusão digital e de acessibilidade.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça
Recomendação: Recomenda-se aos estados, Distrito Federal e municípios o incentivo aos órgãos da mídia para inclusão dos princípios fundamentais de Direitos Humanos em seus materiais de redação e orientações editoriais.
f) Avançar na regularização das rádios comunitárias e promover incentivos para que se afirmem como instrumentos permanentes de diálogo com as comunidades locais.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça
Parceiro: Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República
Recomendação: Recomenda-se aos Municípios o incentivo às rádios comunitárias.
g) Promover a eliminação das barreiras que impedem o acesso de pessoas com deficiência sensorial à programação em todos os meios de comunicação e informação, em conformidade com o Decreto nº 5.296/2004, bem como acesso a novos sistemas e tecnologias, incluindo internet.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça
Objetivo Estratégico II
Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação.
Ações Programáticas
a) Promover parcerias com entidades associativas de mídia, profissionais de comunicação, entidades sindicais e populares para a produção e divulgação de materiais sobre Direitos Humanos.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério das Comunicações
Parceiro: Secretaria-Geral da Presidência da República
b) Incentivar pesquisas regulares que possam identificar formas, circunstâncias e características de violações dos Direitos Humanos na mídia.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
Parceiro: Ministério da Educação
c) Incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares, voltada para a educação em Direitos Humanos e que reconstrua a história recente do autoritarismo no Brasil, bem como as iniciativas populares de organização e de resistência.
Responsáveis: Ministério das Comunicações; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Cultura; Ministério da Justiça
Parceiros: Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
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Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), doutoranda em Educação (FE-USP) e integrante do Intervozes; autora de Um Mundo de Mídia (Editora Global) e assessora da ONG Ação Educativa