Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O poder e a soberba



Dez anos atrás, num domingo ensolarado de inverno, o Brasil acompanhou estarrecido o assassinato de Sandra Gomide, num haras em Ibiúna, em São Paulo. Foram dois tiros certeiros, um pelas costas e outro à queima-roupa, no rosto, desferido por seu ex-chefe e ex-namorado Antonio Marcos Pimenta Neves, sem que tivesse qualquer chance de defesa. Ele atirou e fugiu para evitar o flagrante e depois foi ajudado por amigos. Permaneceu algumas horas escondido até se entregar à Justiça e confessar o crime.


Embora réu confesso, ficou preso por apenas sete meses, a despeito da forte pressão da opinião pública, e desde então, mesmo condenado em primeira e segunda instâncias, permanece em liberdade, graças a um habeas corpus do STJ, concedido em 2007, como assinalou matéria de O Estado de S.Paulo de quarta-feira (19/8), no caderno ‘Metrópole’, assinada pelo repórter Bruno Paes Manso. Pimenta foi condenado em primeira instância a 19,2 anos de prisão, pena reduzida pelo STJ para 15 anos. Teria ainda, portanto, 14 anos e três meses a cumprir.


Com mais 1 ano e 8 meses de prisão, segundo relata a matéria do Estadão, já teria direito ao benefício do regime semiaberto. O processo está nas mãos do ministro Celso de Mello, no STF, com dois recursos extraordinários impetrados pela defesa de Pimenta, pedindo a anulação do julgamento que o condenou em 2006. Neles, a advogada Maria José da Costa Ferreira, que assumiu a defesa de Pimenta, alega que as perguntas formuladas no júri popular foram feitas de forma a influenciar a posição dos jurados. Se o julgamento for anulado, possibilidade que muitos consideram remotíssima (embora, por tudo o que se viu até aqui, isso não seja de se admirar), tudo começará praticamente da estaca zero, com a convocação de um novo júri. Considerando-se que Pimenta já tem 72 anos, fica difícil imaginar que uma nova condenação, seguindo os lentos e burocráticos trâmites judiciais brasileiros, o pegasse ainda com alguma vitalidade para voltar para detrás das grades.


Temos diante de nós um dos mais emblemáticos casos de impunidade do País, fruto de uma justiça incompetente, como disse o advogado da família de Sandra Gomide, Sergei Cobra Arbex, ao repórter Bruno Paes Manso. Sobre a decisão do STJ de manter Pimenta Neves solto após confirmação da prisão em segunda instância, ele comentou ao repórter: ‘Não podemos fazer tabula rasa do princípio da presunção da inocência. Uma coisa é réu de homicídio aguardar em liberdade quando há dúvidas sobre sua culpa. Outra é tomar essa decisão para um réu confesso de assassinato’.


Ao apertar duas vezes aquele gatilho, Pimenta, ao mesmo tempo em que assassinava Sandra Gomide, punha fi m à sua vida social e profissional. Nunca mais se livrou do peso de ser um assassino confesso. Vive recluso e afastado de qualquer atividade profissional (ao menos que se tenha conhecimento público). Foge da imprensa e dos repórteres, que um dia liderou, como o diabo da cruz. Nunca aceitou falar publicamente do caso, deixando em todos dúvidas sobre o que ia em sua alma quando decidiu pôr fim à vida de sua ex-namorada. Ironia do destino, o jornalista que sempre exigiu que em seus veículos fossem publicadas todas as versões do fato, recusa-se a dar a sua versão do crime.


Não é demais recordar que este J&Cia também foi alvo de dois movimentos explícitos de profundo desequilíbrio emocional de Pimenta Neves. No primeiro, cerca de um mês antes do assassinato, ligou para informar que estava se demitindo do Estadão por razões particulares e de doença (alegou que estava perdendo parte da visão), só que não havia avisado ninguém no jornal. Como era verdade, J&Cia soltou uma edição extra com a notícia, que mais tarde viria a ser abortada por interferência direta da direção da empresa. No segundo, já mais próximo da data do crime, ligou para detratar a ex-namorada, dizendo que a havia demitido do jornal por incompetência e por suspeita de que tivesse favorecido uma empresa numa reportagem que fizera. Também falou as mesmas coisas, como todos sabiam no mercado, com vários outros profissionais, de diferentes veículos, com o claro objetivo de obstar a contratação de Sandra por quem quer que fosse.


Pimenta volta agora a ser tema de uma edição extra de J&Cia, desta feita como autor de um crime que, uma década depois de cometido, embora sob condenação em duas instâncias, continua impune. Para reconstituir parte da história e mostrar alguns de seus desdobramentos, pusemos em campo a repórter Nora Gonzalez, que trabalhou por vários anos nos dois jornais dirigidos por Pimenta, nos quais conviveu com várias pessoas que direta ou indiretamente acompanharam o caso. A seguir o seu relato. (Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli)


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A história em si não é muito diferente daquela de Carmen, da obra de Prosper Merimée, ou, em terras tupiniquins, da de Euclydes da Cunha. Basicamente, um homem que se sentiu despeitado, matou a mulher amada – amada segundo a lógica tortuosa que acompanha esses casos. Há dez anos, o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves matava a também jornalista Sandra Gomide.


Além do estupor que um crime dessa natureza gera por si só, colegas, de uma hora para outra, viraram notícia na mídia e outros, fonte. Repórteres procuravam companheiros de trabalho para apurar matéria – algo incomum mesmo para o pouco comum ambiente das redações.


O caso, embora muito conhecido, pode ser narrado em poucas palavras. No dia 20 de agosto de 2000, o diretor de Redação de um dos principais jornais do País, O Estado de S.Paulo, matou com um tiro nas costas e outro perto do ouvido a ex-namorada e ex-editora de Economia do mesmo jornal, Sandra Gomide. Mais difícil é contar as circunstâncias em que o fato ocorreu e o que se seguiu ao crime.


Pimenta e Sandra se conheceram em 1997, quando ele chefiava a Gazeta Mercantil e ela trabalhava na redação. A diferença de idade era de quase 30 anos – e ele já fora casado com uma norte-americana, com a qual tinha filhas gêmeas. O começo do namoro foi relativamente discreto, mas logo começaram a surgir indícios de que o relacionamento não era tão tranquilo.


Talvez o primeiro sinal tenha sido a vertiginosa carreira de Sandra dentro do jornal. Em pouco tempo, ela obteve o que não conseguira em anos na mesma redação. Foi alçada a coordenadora do caderno ‘Empresas & Carreiras’, nivelada a experientes jornalistas como Cida Damasco e Márcia Raposo.


‘Mas a Sandra não conseguiu ser respeitada pelos seus pares, justamente pela pressão que o Pimenta exercia para impor seu nome’, diz um jornalista que trabalhou na Gazeta naquela época. Para outra profissional, também com muitos anos de empresa, ‘Sandra teria sido uma boa repórter, mas não tinha experiência nem bagagem para os seguidos cargos de chefia que recebeu graças ao Pimenta’. Ou seja, no afã de promover a namorada, o efeito obtido por Pimenta era exatamente o oposto do desejado.


Mas não era apenas ascendente a meteórica carreira de Sandra. Quando eles tinham alguma desavença, real ou imaginada por ele, ela era rebaixada – embora, a bem da verdade, nem todas as vezes tenha se concretizado a queda. Certa vez, Pimenta quis puni-la e articulou sua transferência de coordenadora de caderno para subeditora do suplemento ‘Por Conta Própria’, um encarte semanal – cargo, por sinal, que já estava ocupado. Como fez tantas outras vezes, Pimenta mexeu nas peças do tabuleiro para que elas se encaixassem a seu feitio. A subeditora do ‘Por Conta Própria’ passaria a repórter da editoria de ‘Nacional’, mas somente a partir da volta da editora, que estava de férias. Quando isso aconteceu, a raiva de Pimenta já havia passado e o ‘Por Conta Própria’ se viu sem subeditora por algum tempo.


De acordo com o grau de obsessão, ele mandava motoristas do próprio jornal seguirem Sandra. Por mais discretos que fossem, o fato era de conhecimento de boa parte da redação, pois a frota de carros da Gazeta era minúscula. Fora as promoções e os rebaixamentos (concretizados ou não), num momento de despeito, em meados de 1998 Pimenta demitiu Sandra da Gazeta Mercantil. Não houve nenhuma explicação e como a redação já se acostumara com esses rompantes, a vida seguiu como antes.


Brincar de poder


Casos de mudança de função foram frequentes, mas Pimenta não mexia apenas com cargos e pessoas. Certa vez, chamou o chefe da Diagramação, já tarde da noite, e mandou mudar a paginação e mesmo as fontes de títulos e textos da primeira página. Apesar de atônito, o chefe da Diagramação fez conforme ordenado – e o jornal circulou no dia seguinte com uma primeira página totalmente desfigurada e diferente do restante. Não houve pesquisa entre leitores, estudos, provas, mudança sutil, contratação de empresa especializada, nada disso. Ao contrário, foi uma surpresa para todos: leitores e jornalistas da casa. O ato autocrático durou apenas alguns dias e, assim como da primeira vez, de um dia para outro os leitores voltaram a ter seu jornal com a mesma cara na primeira página e nas internas.


Nunca se soube o motivo nem da mudança nem da volta atrás. Mas, como disse Sandro Vaia sobre outro rompante frequente de Pimenta (escolher a foto derrotada pela maioria para a primeira página do Estadão), essa era a forma de Pimenta brincar de poder.


Quando Pimenta saiu da Gazeta e foi para o Estadão é que a deterioração do relacionamento ficou mais evidente. Ele queria pôr Sandra à frente da importante editoria de ‘Economia’ do jornal. Para isso, primeiro se cercou de experientes profissionais, quatro subeditores com grande bagagem profissional: Luiza Pastor, Carlos Franco, William Salasar e Angelo Pavini. Depois, chamou Sandra para o cargo de subeditora de ‘Economia’, para em seguida alçá-la ao cargo de editora, no qual ficou por somente 20 dias, até que outro rompante a fez protagonista de uma ruidosa demissão. Sandra foi dispensada do jornal sem maiores explicações e Pimenta convocou para o auditório do Estadão editores e repórteres especiais para falar sobre mudanças no jornal mas, principalmente, sobre Sandra. Disse que os jornalistas deveriam tomar mais cuidado ao responder às entrevistas de desligamento da empresa – Sandra teria dito, na sua entrevista, que era perseguida por Pimenta, mas como esses questionários eram e são confidenciais, ninguém que não fosse o RH do jornal saberia se isso de fato aconteceu. De concreto, apenas o depoimento de vários jornalistas, que ouviram Pimenta dizer que Sandra o traíra pessoal e profissionalmente.


O cargo de editor de ‘Economia’ foi então ocupado por Salasar. Mas Pimenta insistia em não respeitar hierarquias nem cargos e, passando por cima do mesmo Salasar, que alçara a editor dias antes, demitiu o sub Carlos Franco. Isso se deu três dias antes do assassinato. Alegou que Carlos teria ajudado Sandra a conseguir um emprego, quando, na realidade, ele apenas mencionara o nome dela a uma empresa que pediu uma indicação de profissional. Mas naquele momento Pimenta já passava boa parte de seu tempo ligando para jornais concorrentes e assessorias de imprensa para dizer que não contratassem Sandra. Os motivos eram exatamente os opostos daqueles apresentados por ele para promovê-la na Gazeta Mercantil ou no Estadão. Ironicamente, cerca de duas semanas depois, quando o crime já havia sido cometido e com Pimenta apeado do poder, Carlos foi readmitido no Estadão.


Mas atitudes desse tipo eram típicas do Pimenta Neves que os jornalistas da Gazeta e do Estadão viram por bastante tempo. Por mais estranhas que possam parecer, especialmente depois da tragédia da qual ele foi autor, não eram indicativos de surtos nem de que ele estava a ponto de explodir.


Apenas alguns comportamentos anteriores é que se acentuaram nas semanas que antecederam o assassinato de Sandra. ‘Depois do que aconteceu, apareceu um monte de gente dizendo `eu já pressentia que algo sinistro iria ocorrer´. Pimenta andava mais estranho do que o normal, mais sorumbático, mas ele era assim mesmo’, diz William Salasar, que foi levado ao Estadão por Pimenta para ser subeditor de ‘Economia’ e chegou a ocupar o cargo de editor, mas saiu logo depois do crime.


Comportamento imperial


Suspeita-se que Pimenta tenha chegado a aparecer armado no jornal. Ninguém confirma, mas há quem jure tê-lo visto portando revólver. A situação mais exótica em que foi flagrado, aconteceu num sábado, quando apareceu na redação do Estadão de botas de montaria depois de cavalgar, como gostava de fazer naquela época. E se justificou à equipe dizendo que foi checar algo no jornal. O ato lhe valeu algumas risadas irônicas pelas costas.


‘Pimenta disse alguns dias antes do crime que estava preocupado com a saúde de uma das filhas, que estaria com câncer’, diz um jornalista que trabalhou com ele no Estadão. A isso se atribuiu um azedamento maior do que o normal nas relações dele com a redação. Mas é fato que Pimenta também enfrentava reações adversas dentro do jornal e com a família Mesquita. Em outro episódio turbulento da passagem dele pelo jornal, tornou pública a própria demissão, no dia 28 de julho de 2000, conforme testemunhou J&Cia em edição extra, em informação passada diretamente por ele, numa conversa de mais de duas horas. Mas avisou por último os Mesquita, que, já cientes de que alguma coisa não ia bem, recusaram o pedido. Preocupados com o estado mental do diretor de Redação, sugeriram que ele tirasse uma licença médica e iniciasse um tratamento, que Pimenta teria chegado a iniciar.


Também virou folclore alegar que Pimenta começara a aparecer na redação de óculos escuros antes do crime, mas o real motivo era um glaucoma, operado tempos depois. De concreto, apenas a agudização de um comportamento que sempre foi imperial.


‘Quando ele me comunicou a demissão de Carlos Franco, gritava histericamente, mesmo diante de outras pessoas’, conta Salasar. ‘Mas conheci muito chefe de Redação temperamental, genioso, mercurial e vaidoso’. Atire a primeira pedra o jornalista que já não viveu uma situação em que o chefe berrasse com alguém.


Estranho mesmo foi o comportamento de Pimenta após o crime. Depois de matar Sandra no Haras Setti, em Ibiúna (São Paulo), ele desapareceu, com a ajuda de amigos, por cerca de 24 horas, até se hospedar na casa do publicitário Enio Mainardi. Nesse ínterim, aconteceram algumas coisas dignas do realismo fantástico de escritores como Jorge Luis Borges ou Julio Cortázar. Mesmo foragido, para evitar o flagrante, Pimenta ligou para o jornal na terça-feira para reclamar com José Maria Mayrink sobre a cobertura que o Estadão deu ao crime. Segundo Pimenta, teria sido demasiado favorável à vítima e esquecido de que ele ainda era diretor do jornal. Melhor fizera a Folha de S.Paulo, disse, e ainda pediu que nas notícias seguintes o jornal ‘melhorasse a pontaria’.


Discurso duplamente irônico esse, para alguém que disparou contra outra pessoa. Provavelmente, Pimenta gostou mais dos comentários que os Frias fizeram na edição do dia seguinte ao crime, na qual foi enaltecido como jornalista. Não é por nada que o escritor e também jornalista argentino Tomás Eloy Martínez (mais conhecido no Brasil pelo livro Santa Evita) discorre num capítulo inteiro, em O vôo da rainha, sobre o crime de Pimenta, com nomes e datas:


‘A solidão ou o poder – ou talvez uma combinação dos dois – fizeram dele um homem despótico e arrogante. Acreditava que tudo era possível, e acreditava também que nada lhe devia ser negado’, diz o escritor. O livro faz parte de uma série sobre os pecados capitais. O volume de Martínez trata do pecado da soberba.


Day after


Depois das negociações com a Polícia, Pimenta se entrega à Justiça. Confessa, mas também há testemunhas do crime. Seguem-se então depoimentos, uma overdose de calmantes que o leva a ser internado num hospital de São Paulo, visitas da ex-esposa e dos filhos e de alguns amigos. Poucos fazem questão de prestar solidariedade ao jornalista: Klaus Kleber, Roberto Müller, Luiza Pastor, Iris Valquíria Campos, entre outros.


Na redação do Estadão, as semanas seguintes foram, claro, de estupor. Houve reações de todo tipo, desde pessoas preocupadas com uma possível visita de Pimenta (‘nenhum guardinha de segurança vai conseguir impedi-lo de entrar armado’) até a mais pura catatonia. Ao mesmo tempo, o ritmo era frenético, pois além do fechamento conturbado naquele domingo, dia que deveria ser tranquilo, nos dias que se seguiram os telefones não paravam mais de tocar. Eram jornalistas atrás de informações. Profissionais do Estadão que não eram contatados havia tempos começaram a ser procurados por pseudoamigos atrás de alguma dica que fosse. Nunca houve tanto convite para um jantar ou um chope como nos dias depois ao crime.


Na ‘Economia’, a editoria mais visada pelos ávidos por um off que fosse, uma reunião convocada por Cleide Sanchez, pauteira e responsável pela abertura da seção, informou, a pedido de Salasar, que, por decisão da diretoria do jornal, ninguém mais deveria falar do assunto. E não faltaram recomendações para que se redobrassem as atenções, pois não seria difícil baixar a guarda com amigos e colegas, mesmo que inadvertidamente.


Depois disso, a distância entre ‘os amigos da Sandra’ e ‘os amigos do Pimenta’, aumentou ainda mais. Mesmo assim, vários jornalistas que trabalhavam lá naquele momento fazem questão de ressaltar que os Mesquita não segregaram ninguém nem mudaram o tratamento. ‘O escanteio ocorria nos níveis abaixo deles’, diz um profissional levado por Pimenta ao Estadão e que por isso chegou a enfrentar dificuldades para conseguir emprego depois que saiu.


Dificuldades, embora de outro gênero, também enfrentou Daniel Piza, que havia sido levado ao Estadão por Pimenta, depois de ter trabalhado com ele na Gazeta Mercantil. Com um livro editado e impresso, e de lançamento marcado para o final de agosto, foi pego no contrapé pelos acontecimentos. A orelha do livro fora escrita pelo seu amigo e mentor Antônio Marcos Pimenta Neves. A decisão, então, foi manter o lançamento, mas radicalizar na edição: sem tempo para refazer nada, a orelha do livro foi cortada, exemplar por exemplar. O fato, é claro, valeu uma comparação irônica com o pintor Van Gogh.


O aquecimento do mercado e a TPV


Paralelamente, o ano 2000 marcava uma reviravolta no mercado jornalístico no Brasil. A movimentação nas redações era intensa e faltavam profissionais em todas as áreas. Era difícil repor gente. Além da bolha da internet, que fazia com que os sites acenassem com propostas mirabolantes – Maria Christina Carvalho, editora de ‘Finanças’ da Gazeta Mercantil, recebeu o pedido de demissão de um trainee de sua editoria que disse que migraria para a redação de um site para aproveitar e se vender na alta, como se fosse uma ação –, o surgimento do Valor Econômico movimentou todo o mercado. Na época, Cida Damasco, coordenadora do primeiro caderno da mesma Gazeta Mercantil, ironizou a situação dizendo que até trainee era levado para almoçar no Transamérica para negociar a permanência no jornal. Delmo Moreira, então chefe de Redação da Gazeta, dizia que sofria de TPV – Tensão Pré-Valor.


Foram meses de efervescência nas redações. Os profissionais, bons ou não, experientes ou nem tanto, eram disputados a tapa, e quem não recebesse duas ofertas para mudar de emprego num único mês ia diretamente à terapia para tentar recompor o ego. Mas no Estadão as demissões prosseguiam, a pedido ou não. Vários profissionais levados para lá por Pimenta continuaram e alguns estão lá até hoje, como Daniel Piza e Lourival Sant´anna, que saiu e retornou.


No alto comando, os problemas não eram menores. Se no dia 20 de agosto Fernão Mesquita, diretor do Jornal da Tarde e importante membro do clã, acompanhou pessoal e diretamente a edição da matéria sobre a morte de Sandra, os dias que se seguiram foram de disputas internas pelos cargos. Havia paralelamente um vácuo de poder, mas também uma intensa disputa por ele. Em 1º de outubro, Sandro Vaia assumiu como diretor de Redação do Estadão, no posto que fora de Pimenta.


Prioridade não é celeridade


Ao mesmo tempo, a vida da família Gomide mudava radicalmente. De origem simples, Sandra era o xodó do pai, subitamente alçado a porta-voz. Seis anos depois do crime, em 2006, é que Pimenta foi julgado. Um júri popular o condenou por unanimidade, 7 a zero, a 19,2 anos, posteriormente reduzidos para 15 pelo STJ. Mas até agora Pimenta está em liberdade.


Grandes nomes do Direito fizeram parte de sua defesa, numa longa lista de criminalistas. Os primeiros foram Antônio Mariz de Oliveira, que alegou que seu cliente matou porque ‘se sentiu agredido em seus brios’, e Roberto Podval (que recentemente defendeu o casal Nardoni, acusado e sentenciado pela morte da filha Isabella). Mariz desistiu do caso cerca de 15 dias depois do crime, alegando haver ‘excesso de interferência de familiares e amigos de Pimenta’ em seu trabalho. Em seguida assumiram outros advogados de renome: Arnaldo Malheiros e José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça, posteriormente substituídos por Carlos Frederico Müller e Ilana Müller, irmãos entre si e filhos de Roberto Müller, amigo de longa data de Pimenta. Os Müller deixaram o caso e atualmente quem defende Pimenta é a advogada Maria José da Costa Ferreira.


‘Mas isso agora não faz diferença’, explica Sergei Cobra Arbex, que acusa Pimenta, pois o caso está nas mãos do ministro Celso de Mello, no Supremo, que deverá julgar recurso extraordinário da defesa. Cobra Arbex é um reconhecido professor de Direito, diretor da OAB e entrou no caso numa posição que raramente ocupa: a de acusador. Na maioria de seus casos ele é advogado de defesa.


Desde agosto de 2000, Pimenta não dá entrevistas nem declarações. Seus primeiros advogados deram algumas respostas à imprensa, mas depois nem isso. Ele continua morando na mesma casa no bairro do Alto da Boa Vista e vive de duas aposentadorias, uma delas do Banco Mundial, no qual trabalhou até os anos 1980, em Washington.


A família Gomide tem contra ele, além do processo criminal, outro por danos morais. Inicialmente, pediu o montante de R$ 300 mil, recusado pela Justiça e reduzido para R$ 166 mil, valor que Pimenta alega não ter como pagar, por viver apenas das aposentadorias. Quando, em outubro de 2000, ele tentou transferir a titularidade da casa, avaliada em R$ 900 mil, para uma das filhas, os advogados dos Gomide conseguiram o bloqueio da operação na Justiça. Na época, os advogados de Pimenta alegaram que ele tentou doar a casa para a própria filha ‘por desapego à vida’.


Os Gomide ainda aguardam uma decisão desse segundo processo, que tramita também há quase dez anos. Pelo fato de João Gomide ter ultrapassado os 70 anos de idade, tem prioridade no julgamento dos processos. Mas prioridade não significa celeridade.


‘O que mais me irrita é a impunidade’


‘Acredito que até o final deste ano tenhamos uma resposta do Supremo’, diz Cobra Arbex, que está no processo desde 2006, quando assumiu o cargo que fora inicialmente do ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que se apresentou espontaneamente para acusar Pimenta e se afastou ao assumir o Ministério.


Está nas mãos do ministro Celso de Mello decidir se houve ou não cerceamento do direito de defesa e pressão da imprensa. Qualquer que seja o resultado, não cabem mais apelos. Para Cobra Arbex, não há a menor possibilidade de o crime prescrever e Pimenta não cumprir pena por ter mais de 70 anos. No Brasil, crimes cometidos por menores de 18 anos ou maiores de 70 prescrevem na metade do tempo. Como o prazo para homicídio é de 20 anos, Pimenta seria beneficiado se não tivesse sido processado e julgado antes de 2010. Como o júri o condenou em 2006, Cobra Arbex afirma que não há como haver uma reversão. ‘Não há nada que justifique um recurso extraordinário, como alega a defesa. Não há como o ministro Celso de Mello anular o julgamento. Não existe essa alternativa.’


Embora o advogado não acredite na anulação do julgamento, por toda a evolução do caso, na remota hipótese disso vir a acontecer, o novo prazo para julgamento, por conta das interrupções no processo, seria 2012. E aí, de fato, Pimenta voltaria a ter a seu lado a questão do tempo e das manobras jurídicas.


Descrente na Justiça, o mecânico aposentado João Florentino Gomide, pai de Sandra, diz não ter mais esperanças. ‘Somente um milagre fará a justiça ser feita e eu nem sei se terei tempo suficiente de vida para ver isso acontecer.’, afirma. Com a saúde frágil, decorrente de diabetes, de um câncer que o obrigou a uma cirurgia no intestino, e de um enfarte, que lhe valeu a colocação de três pontes de safena, ele desabafa: ‘O que mais me irrita é a impunidade’.


Depois de tanto tempo do crime e mesmo do julgamento sem um encerramento efetivo do caso, sequer iniciativas que pretendiam lutar por justiça se mantêm. É o caso da Associação Justiça para Sandra Gomide, lançada um mês depois do crime com mais de duas mil adesões num abaixo-assinado e o apoio do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. ‘O assunto acabou sendo esquecido, apesar dos apoios que conseguimos no começo’, lamenta Luis Henrique Amaral, amigo de Sandra desde os tempos da faculdade. No entanto, está na web um site, www.pimentaneves.com.br, com depoimentos favoráveis a Pimenta mas sem nenhuma notícia – nem responsável, nem contato.


‘O caso Pimenta Neves foi um divisor de águas para as relações de poder nas redações’, diz Carlos Franco. Falta, agora, um desfecho para essa história.

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Jornalista