Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O preço da redução de custos

 

Uma empresa que enfrenta na China ameaças de suicídio coletivo de empregados promete criar 200 mil empregos no Brasil. Nenhum veículo de imprensa do país discute algo além do tamanho do investimento e dos incentivos que o governo prometeu para não deixar escapar o que considera uma grande oportunidade.

A presidente Dilma Rousseff anunciou na China, em abril de 2011, que a taiwanesa Foxconn, fabricante de iPads, investiria US$ 12 bilhões, em cinco anos, para se habilitar a montar no Brasil tabuletas e celulares. O então ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, fez anúncio idêntico.

Desde o primeiro momento o aspecto negocial foi questionado pelo Valor, em reportagem de André Borges, que escreveu: “O diretor de uma grande multinacional chegou a classificar o anúncio de ‘farsa’”.

Fábrica em disputa

Em maio, o assunto foi requentado a partir de declarações do presidente da Investe São Paulo, agência do governo estadual, Luciano Almeida. Com direito a foto do ainda vivo Steve Jobs segurando um iPad.

Almeida disse à repórter Talita Moreira, do Valor, que seis milhões de iPads seriam fabricados por ano quando a fábrica da Foxconn, possivelmente uma unidade já existente em Jundiaí, interior paulista, atingisse sua capacidade plena, o que demoraria três a quatro anos. Estariam então empregados quatro a cinco mil funcionários.

O comandado de Geraldo Alckmin – que se reunira em fevereiro com dirigentes da Apple, contratadora da Foxconn – acenou com ritmo urgente: “De acordo com Almeida a nova linha de produção precisa estar montada até junho para entrar em atividade em novembro”.

O tempo parecia curto, mas Almeida explicava que não haveria produção. A Foxconn seria apenas uma montadora de produtos. O ministro Mercadante fora mais otimista: o início da produção seria em setembro.

Pouco antes do Natal, o governo do estado do Rio de Janeiro anunciou que uma área de Campo Grande, na Zona Oeste da capital, próxima ao porto de Itaguaí, poderia sediar a fabricante. A notícia saiu no Globo.

Com incentivo do governo

Em 26 de janeiro, o Estado de S.Paulo noticiou: “Foxconn recebe benefício para fabricar iPad”. Era notícia curta, que trazia no final suave questionamento a respeito das intenções da firma taiwanesa, dona de várias fábricas na China continental: “Em viagem à China em abril de 2011, a presidente Dilma Rousseff anunciou um investimento de US$ 12 bilhões da Foxconn no Brasil em cinco anos. A empresa, no entanto, nunca deu detalhes sobre o projeto”.

A Folha deu uma nota mínima. Na véspera, o Valor informara:

“A Foxconn recebeu liberação do governo federal para produzir tablets no Brasil com incentivo fiscal. A medida, publicada no Diário Oficial de hoje, era um dos passos necessários para a produção do iPad no país. A segunda etapa agora é a inauguração da fábrica da companhia na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo.”

Depois de se referir à previsão feita por Mercadante, o jornal citou o Sindicato dos Metalúrgicos de Jundiaí. O sindicato predissera que as atividades só teriam início em 2012, “já que a fábrica da Foxconn não estava pronta para operar”. Nada a respeito de condições de trabalho.

Suicídios na Foxconn

Eis senão que o New York Times publica uma reportagem arrasadora sobre as condições de trabalho em unidades da Foxconn na China. O tema não era inédito no noticiário brasileiro. O Valor publicara em 12 de janeiro reportagem sob o título “Foxconn enfrenta ameaça de suicídio coletivo”, segundo a qual 150 entre 300 funcionários da fábrica da empresa em Wuhan, na província de Hubei, que haviam feito um protesto, ameaçaram suicidar-se coletivamente “caso a empresa não cumpra um acordo feito no início do mês”. Tratava-se de uma linha de montagem contratada pela Microsoft.

A notícia, assinada por Cibelle Bouças, contrastava a barra pesada com a alta produtividade:

“Desde 2010, a Foxconn enfrenta problemas por conta do tratamento dispensado aos seus funcionários e aos baixos salários na China. Há dois anos, 14 pessoas se suicidaram nas fábricas da companhia. Na terça-feira, a Microsoft anunciou que a colocação de 66 milhões de unidades de seu console de jogos Xbox 360 nas mãos dos consumidores tornou o equipamento o primeiro em vendas no mundo. O dispositivo sensor de movimentos Kinect, por sua vez, atingiu mais de 18 milhões.”

Antes mesmo, no Estadão de 16/10 (“Labor sem rosto”, entrevista de Ricardo Antunes a Mônica Manir com chamada na capa do caderno “Aliás”), a questão do suicídio de trabalhadores na China e alhures havia sido mencionada. Disse Antunes, sociólogo da Unicamp:

“(…) Até um ano atrás, a China não tinha legislação social do trabalho. O discreto charme do trabalhador e da trabalhadora chinesa é a intensa exploração do seu trabalho. Pois há uma empresa que obriga os candidatos a emprego a assinar um documento em que está escrito que não vão se suicidar. Se se suicidarem, o pecúlio que ficaria para a família será perdido. É tentar impedir o nível de suicídio no país, que começa a ser alto, como é alto na França e na Coreia.”

O NY Times denuncia

A reportagem do New York Times, publicada resumidamente em encarte do jornal americano que saiu com a Folha de 30 de janeiro sob o título “Aonde foram os empregos do iPhone”, é um enunciado de barbaridades.

O texto mostra a Apple como empresa pouco interessada na criação ou manutenção de empregos nos Estados Unidos. A apuração dos repórteres não poupou o recentemente canonizado Steve Jobs (1955-2011).

Em trecho não reproduzido na edição em português (a reportagem original tem quase 470 linhas de 70 caracteres, ou mais de 5 mil palavras), os autores, Charles Duhigg e David Barboza, escrevem:

“Em 2010, Steven P. Jobs discutiu a relação da companhia com fornecedores numa conferência do setor. ‘Eu na verdade penso que a Apple tem um dos melhores trabalhos no nosso segmento, e talvez em qualquer segmento, no entendimento das condições de trabalho na nossa cadeia de produção’, disse ele. ‘Você vai a esse lugar, é uma fábrica, mas, meu Deus, eles têm restaurantes e cinemas e hospitais e piscinas; quer dizer – para uma fábrica, é uma bela fábrica’.

“Outros, inclusive trabalhadores de dentro dessas fábricas, confirmam as cafeterias e instalações médicas, mas insistem em dizer que as condições são penosas.

“‘Nós estamos realmente tentando melhorar as coisas’, disse um ex-executivo da Apple, ‘mas a maioria das pessoas ficaria muito perturbada se visse de onde seus iPhones vêm’.”

No original, o título da matéria é “Na China, custos humanos estão embutidos no iPad”.

Cenário arcaico

Não se trata de insinuações ou denúncias vagas:

“Funcionários trabalham por períodos excessivamente longos, em alguns casos sete dias por semana, e vivem em dormitórios abarrotados. Alguns dizem que ficam em pé tanto tempo que suas pernas incham até que praticamente não consigam andar. Menores de idade participaram da montagem de produtos da Apple, e fornecedores da companhia livraram-se impropriamente de lixo tóxico e falsificaram registros, segundo relatórios da empresa e grupos de defesa de direitos de dentro da China que são geralmente considerados monitores independentes e confiáveis.

“Mais perturbador, dizem os grupos, é o descaso de alguns fornecedores com a saúde dos trabalhadores. Dois anos atrás, 137 operários de um fornecedor da Apple na China oriental sofreram ferimentos após terem sido obrigados a usar produtos químicos venenosos para limpar telas de iPhones. Em sete meses de 2011, duas explosões em fábricas de iPads, incluindo uma em Chengdu [onde se passam episódios graves descritos antes], mataram quatro pessoas e feriram 77. Antes das explosões, a Apple havia sido alertada para as condições perigosas da fábrica de Chengdu, segundo um grupo chinês que publicou o alerta.”

Afaste-se a hipótese de que a reportagem tenha relação com alguma manobra antichinesa. O alvo principal, tanto quanto a Foxconn e assemelhadas, é a Apple. Mas também não se trata de algo do interesse de concorrentes da empresa californiana: “Condições inóspitas de trabalho foram registradas em fábricas que manufaturam produtos para Dell, Hewlett-Packard, IBM, Lenovo, Motorola, Nokia, Sony, Toshiba e outras”.

A denúncia contra a admirada empresa é contundente:

“‘A Apple nunca se interessou por nada além de aumentar a qualidade do produto e diminuir os custos de produção’, disse Li Mingqi, que até abril trabalhou na gestão da Foxconn Technology, uma das mais importantes fabricantes parceiras da Apple. (…) ‘O bem-estar dos trabalhadores não tem nada a ver com seus interesses’, ele disse.

“Alguns executivos da Apple dizem que existe uma tensão não resolvida dentro da companhia: dirigentes querem melhorar as condições dentro das fábricas, mas o empenho falha quando se choca contra as relações com fornecedores estratégicos ou a rápida entrega de novos produtos. Na terça-feira (24/1), a Apple anunciou um dos mais rendosos trimestres de qualquer empresa na história, com US$ 13,06 bilhões em lucros sobre US$ 46,3 bilhões em vendas. E as vendas teriam sido maiores, dizem executivos, se as fábricas no exterior tivessem sido capazes de produzir mais.

“Dirigentes de outras companhias falam de pressões internas similares. Esse sistema pode não ser bonito, argumentam, mas uma retificação radical tornaria mais lenta a inovação. Os consumidores querem novos aparelhos eletrônicos surpreendentes todo ano.”

Lógica implacável

O miolo explicativo da questão aparece neste trecho:

“Na última década, a Apple se tornou uma das mais poderosas, ricas e bem-sucedidas companhias no mundo, em parte por ter dominado a fabricação globalizada. A Apple e seus pares em tecnologia de ponta – assim como dezenas de outros setores de negócios americanos – alcançaram um ritmo de inovação quase sem comparação na história moderna.

“Entretanto, os operários que montam iPhones, iPads e outros aparelhos frequentemente trabalham em condições duras, segundo empregados dessas fábricas, advogados trabalhistas e documentos publicados pelas próprias empresas. Os problemas incluem ambientes de trabalho pesados e sérias – às vezes mortais – questões de segurança.”

(A íntegra da reportagem do New York Times está aqui.)

Esquematicamente, a equação ficaria assim: 1) a Apple precisa lutar entre gigantes para ter rentabilidade e atrair investimentos; 2) uma parte decisiva dessa luta consiste em gastar o menos possível para produzir o melhor produto possível, que possa ser vendido pelo preço mais alto possível; 3) embora afirme ser parte de sua filosofia fazer o que estiver ao seu alcance para melhorar as condições de trabalho nas fábricas onde seus produtos são montados, ou nas dos fabricantes de componentes, a empresa não é capaz de contrariar o que lhe dá a dianteira e, claro, lucro.

Consumidor, investidor, trabalhador e cidadão

Uma explicação desse contexto globalizado é dada em artigo de Robert Reich, secretário do Trabalho no governo de Bill Clinton (1993-2001), publicado pelo Financial Times em 16 de janeiro na abertura de um material sobre a crise do capitalismo (para cadastrados e assinantes).

Reich diz que cada indivíduo (dos países ricos) é ao mesmo tempo consumidor, investidor, trabalhador e cidadão. “Num nível mais profundo, esta crise marca a vitória dos consumidores e investidores sobre os trabalhadores e cidadãos”, afirma.

Ele descreve como hoje é fácil encontrar na internet as melhores pechinchas. “Consumidores e investidores nunca tiveram tanto poder”, constata.

“Mas essas pechinchas prejudicam nossos empregos e salários, e produzem crescente desigualdade. Os produtos que desejamos ou o retorno que buscamos para nossas aplicações podem muitas vezes ser produzidos mais eficientemente no exterior, por empresas que oferecem salários mais baixos e menos benefícios. Eles são produzidos às expensas de nossas ruas principais [onde fica o comércio tradicional], que são os eixos de articulação de nossas comunidades.

(…)

“Podemos obter um preço baixo ou alto retorno porque um produtor cortou custos contratando no Sul da Ásia ou na África crianças que trabalham 12 horas por dia, sete dias por semana, ou sujeitando pessoas a condições de trabalho que representam risco de morte. Como trabalhadores e cidadãos, a maioria de nós não escolheria essas consequências, mas somos responsáveis por elas.

“E mesmo que tivéssemos sido totalmente alertados a respeito, nós ainda assim escolheríamos as pechinchas e as melhores aplicações porque sabemos que outros consumidores e investidores fariam o mesmo. Não faz muito sentido para um indivíduo isolado dispensar um bom negócio para tentar inutilmente ser ‘socialmente responsável’. (…)

“A melhor maneira de equilibrar as demandas de consumidores e investidores com as de trabalhadores e cidadãos tem sido obtida por meio de instituições democráticas que moldam e refreiam os mercados. Leis e regras oferecem alguma proteção para empregos e salários, comunidades e o meio ambiente. Embora algumas regras possam ser custosas para nós como consumidores e investidores porque se interpõem ao melhor negócio, elas são concebidas para tornar mais próximo aquilo que nós como membros da sociedade estamos dispostos a sacrificar em nome dos outros valores.”

Reich diz em seguida que a tecnologia supera a capacidade das instituições democráticas de contrabalançá-la. Que os problemas são internacionais, mas os governos agem dentro de fronteiras nacionais. E, finalmente, que “o dinheiro das empresas mina as instituições democráticas em nome de melhores negócios para consumidores e investidores”.

“Como resultado disso [uso intensivo de dinheiro empresarial para influir em legislação e políticas públicas], consumidores e investidores estão em situação cada vez melhor, mas a insegurança no trabalho cresce, a desigualdade aumenta, comunidades se tornam menos estáveis e a mudança climática piora. Nada disso é sustentável a longo prazo, mas ninguém até agora conseguiu descobrir como recolocar equilíbrio no capitalismo. Culpe a finança global e empresas do mundo inteiro tanto quanto você queira, mas guarde um pouco desse ímpeto acusatório para os consumidores insaciáveis e os investidores que habitam quase todos nós, que somos inteiramente cúmplices.”

Déficit de contextualização

A imprensa raramente faz as necessárias conexões entre assuntos que aborda em suas páginas. Disso resulta um déficit de contextualização que o Observatório da Imprensa critica desde suas primeiras edições, em 1996. Alguns casos, porém, vão além do que se pode cavalheirescamente atribuir às difíceis condições de trabalho em redações enfraquecidas ou a uma falta de atenção rotineira. São um atestado de leseira em causa própria.

Isso não quer dizer que a velha mídia deva ser anatematizada. Foi a velha e boa mídia que deu aos leitores a oportunidade de perceber essa falta de conexão entre informações que ela mesma veiculou. É assim mesmo quando ela não consegue juntar os pontos para traçar a figura. E mais ainda quando consegue.