Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O processo de extinção

A Folha de S. Paulo traz na edição de quinta-feira (23/5) reportagem sobre novo caso de abusos contra a população indígena. O jornal relata o desmantelamento de uma quadrilha que explorava sexualmente crianças e adolescentes de quatro etnias que vivem na região de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Concluindo uma investigação que foi chamada de Operação Cunhatã (menina, em tupi), a Polícia Federal prendeu nove pessoas acusadas de organizar um “comércio de virgindade”, tirando proveito da pobreza de meninas de 12 a 16 anos.

A reportagem traz um retrato sucinto da situação no município, que faz fronteira com a Colômbia, onde o crescimento do núcleo urbano e da agropecuária causa grandes impactos na vida das populações nativas. Entre esses povos vivem remanescentes de tribos originárias do tronco linguístico arauaque, a linhagem que recebeu Cristóvão Colombo no Caribe, além de comunidades da família tucano.

A população indígena da região tem sido prejudicada pelo crescimento da cidade e pela ação de madeireiros e traficantes, o que vem exigindo a permanência de forças federais, que realizam periodicamente ações de repressão como a que levou ao caso relatado pela Folha.

São Gabriel da Cachoeira é considerada a cidade mais indígena do Brasil, por causa da predominância dos nativos na população. No entanto, só muito recentemente seus representantes conseguiram chegar ao poder político local, depois de longas negociações entre líderes das duas etnias dominantes. Por isso, surpreende de certa forma que as condições de vida dos indígenas tenha se deteriorado tão fortemente.

Por outro lado, a Operação Cunhatã apenas revela o trabalho que precisa ser feito em outras regiões onde o convívio forçado com os brancos está dizimando a população indígena.

A questão indígena não costuma sensibilizar as redações das grandes cidades do Sudeste. Em geral, a chamada grande imprensa trata de casos pontuais, como a operação policial em São Gabriel. No entanto, o rastreamento de algumas notícias recentes pode levar à conclusão de que está em andamento um processo organizado para reduzir as áreas destinadas às populações nativas e reverter a política de proteção adotada nos últimos anos.

Jornalismo reacionário

Esse processo pode ser observado a partir de uma reportagem publicada no dia 10/5 pelo Valor Econômico, na qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, se vê obrigado a desmentir notícias de que a mudança anunciada no processo de demarcação de terras indígenas enfraqueceria a Funai.

Dois dias depois, o Conselho Indigenista Missionário denunciou o que chama de “retrocesso histórico” – o plano da ministra chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, de atender aos interesses da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), ao pretender alterar o modelo de demarcação.

Na Funai, comenta-se que a ministra estaria buscando uma aliança com o agronegócio do Paraná, onde viria a ser candidata a governadora.

Uma semana antes desse embate, a coluna “Painel”, da Folha de S. Paulo, havia publicado nota afirmando que “após ouvir protestos de produtores rurais no Mato Grosso do Sul e no Paraná contra estudos de demarcação de terras indígenas pela Funai, a presidente Dilma Rousseff decidiu mudar a cúpula do órgão. Os ruralistas reclamam que o órgão incentivou a invasão de fazendas por índios em áreas onde não viviam antes do início dos estudos”. A nota da Folha não questiona a origem da informação e o jornal não se interessou em verificar se a acusação era fundamentada. O alvo dos ruralistas, agora também visado pela ministra Hoffmann, é a presidente da Funai, Marta Azevedo, considerada intransigente pelos representantes do agronegócio.

No dia 16/5, a agência de notícias Reuters distribuiu reportagem sobre conflitos em Mato Grosso do Sul envolvendo fazendeiros e índios Terena. O texto afirma que a política indigenista do Brasil é considerada uma das mais progressistas do mundo, mas a violência cresce desde que o país se tornou uma superpotência agrícola mundial.

O agronegócio não atua apenas por suas entidades representativas: além de contarem com o apoio explícito da mídia em geral, os ruralistas divulgam material jornalístico pelo site Questaoindigena.org, registrado em Bellevue, estado de Washington, nos Estados Unidos, sob domínio protegido.

Há, claramente, um esquema para minar o sistema de proteção das populações nativas, e a imprensa faz parte dele ou está se omitindo. O pensamento oficial dos ruralistas pode ser sintetizado em reportagem publicada pela revista Veja há três anos, sob o título “A farra da antropologia oportunista”, um verdadeiro clássico do jornalismo reacionário.

Nem mesmo o mais radical defensor da expansão ilimitada do desmatamento e da extinção dos indígenas faria melhor.