Sunday, 29 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O projeto ‘Univespeiro’

Uma das causas da greve atual da USP, segundo os alunos, se deve ao fato daquela universidade querer implantar um projeto de ensino à distância, inclusive em nível de graduação. Não quero julgar a greve. Uma vez que ela tem um motivo que, em princípio, é a melhoria do ensino, ela passa em qualquer crivo racional. O problema não é este. O problema, é claro, é o projeto que deu origem à greve.

Ensino à distância é algo sério. É algo para pessoas que realmente sabem mexer com isso. Portanto, não é algo para a USP. Não é a USP somente que vai perder se ela enveredar por fornecer graduação à distância, e sim, a própria EAD no Brasil pode sair esfolada. Pois, no final, vamos acabar dizendo coisas do tipo: ‘Puxa, se nem na USP funciona com EAD, então…’

Há três pontos importantes a serem notados sobre esse assunto e se não estivermos de um lado ou de outro da greve poderemos avaliá-los mais friamente e percebermos que o projeto deveria ser abortado. Eis os pontos:

1) A Universidade de São Paulo é ‘pesada’. Ela é burocrática e, para seguir inovações, especialmente no caso de EAD, cujos instrumentos evoluem dia-a-dia, inclusive com elementos que se tornam gratuitos e cada vez mais disponíveis para quem não tem amarras institucionais, a USP precisaria não ser a USP. Colocar a USP para desenvolver EAD é uma coisa; querer que ela forneça cursos de graduação em EAD é bem outra. Conheço bem a USP para afirmar que não deveríamos gastar um tostão naquela instituição para que ela viesse a posar de democrática, caso a via da democratização seja esta. Não dará certo. Ela não tem tradição nesse tipo de atividade e eu não jogaria dinheiro público na USP se há outros lugares, com mais tradição, que talvez pudessem fazer um projeto melhor.

Populismo barato

A USP pode colaborar com projetos de EAD. Todavia, ela própria oferecer seus cursos em EAD é bobagem. A USP não tem condições de fazer qualquer inovação radical em seu tipo de ensino. Forçar isso é o mesmo que colocar o Jotalhão (o elefante do Maurício de Sousa) para participar de uma corrida de 400 metros com barreira, competindo com o Papa Léguas (Road Runner).

2) A Universidade de São Paulo está com o orçamento comprometido com funcionários. Sobra pouco para a pesquisa. Não sobra nada para inovação. Sua manutenção é cara e tem de ser assim. Aliás, deveríamos gastar até mais com ela; pois é uma estrutura que merece investimento – todos sabemos disso. Agora, querer dividir o bolo atual com EAD, sem qualquer aceno do governo de realmente fazer um investimento extra compensador, é algo irracional. O resultado será aquele que vemos nas animações do Papa Léguas com o Coyote: vai explodir.

3) Mesmo que os dois itens acima pudessem ser resolvidos (vamos supor um milagre), há ainda um terceiro problema: os professores dos cursos ‘de ricos’ da Universidade de São Paulo jamais concordarão em trabalhar no regime de EAD. Não há força que consiga criar um projeto dentro da USP que não seja oferecer pedagogia à distância. Ora, quem oferece pedagogia à distância, hoje, sem se preocupar com outros cursos ‘mais caros’, é mal-intencionado. Ou está tentando criar um mecanismo, ligado à reitoria, para carrear dinheiro para um setor, ou então é uma pessoa sem qualquer entendimento das necessidades da educação brasileira. Fazer curso de pedagogia em EAD para dizer que houve democratização da universidade é populismo barato. Para seguir nas imagens dos comics: isso tudo está cheirando ACME!

Professores mal sabem usar e-mail

Quem pensar seriamente nesses três pontos e avaliá-los bem, vai concordar comigo. Talvez aqueles que nunca trabalharam com mecanismos realmente atuais de EAD possam tentar discordar de mim aqui e ali, principalmente quanto ao primeiro ponto. Mas, se vierem ao Centro de Estudos em Filosofia Americana (Cefa), poderão notar que trabalhamos com EAD de uma maneira mais eficiente que países ricos e com gasto quase zero. Pois podemos, a cada dia, abandonar um instrumento e pegar outro, alterando todo nosso esquema de trabalho. As universidades públicas brasileiras não conseguem fazer isso e, quando chegam perto disso, terminam por fazer tamanho esforço que acabam por extenuar seus quadros.

Os cursos regulares de graduação demandam, principalmente na USP, um trabalho que é intransferível para o âmbito de EAD. Para fazer graduação em termos de EAD é necessário, sim, alterar a formulação dos cursos, mas, ainda que isso fosse possível na USP, essa universidade não conseguiria cumprir com o dinamismo exigido por tal modelo de educação. Ela não só não possui tecnologia para tal, ela não só é ‘pesada’, como também não tem quadros no corpo docente para lidar com EAD. Os professores da USP, na sua maioria, mal conseguem usar o e-mail.

Preparando uma colméia

É preciso entender de uma vez por todas essa verdade: não é porque a USP é velha que ela é ‘pesada’ e não pode se adaptar ao regime de EAD. Outras universidades velhas, no mundo todo, fazem EAD – e trabalham de modo exímio nisso. O problema é de tradição de trabalho, de legislação, de cultura. Há uma cultura de EAD no exterior que, aqui no Brasil, não vingou no setor público do ensino, muito menos na USP. Não podemos desconsiderar isso.

Como as pessoas que montaram o projeto uspiano já sabem disso tudo, e já perceberam que para oferecer EAD na USP terão de empobrecer a relação professor-aluno, e que isso irá irritar os alunos inscritos que, enfim, logo perceberão que foram enganados, então, desconfio que há algo mais que não está sendo dito pela reitoria. Quando o projeto começar, logo o aluno verá que foi enganado, que ele não está recebendo, de fato, a USP, mas um arremedo de USP. Tentarão dizer para ele o seguinte: ora, mas no seu diploma, vem ‘USP’. Mas ele saberá que, em termos qualitativos, ele ganhará, de fato, o carimbo ‘Uniselvas’.

Toda essa história de EAD na USP cheira mal. Dado que isso que apontei acima é evidente, é algo que todo mundo sabe, creio que há uma história mal contada na base desse projeto. Estou apostando que esse projeto visa, na verdade, a acertar um lugar para alguns professores que, uma vez nas pró-reitorias ou coisa parecida, querem pousar em outro lugar logo que acabar o mandato da Suely-Auto-Ajuda. Será que não há algum pró-reitor louco por poder e dinheiro por lá, preparando sua colméia ou, melhor dizendo, sua casinha de marimbondo, seu vespeiro? Procurem e acharão o que estou apontando.

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Filósofo, São Paulo, SP