Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O PT e a catedral

Há três semanas, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, deixou sua encabulada reclusão para tentar reassumir a posição de pró-homem da República e saiu disparando farpas contra tudo e todos. Não especificou alvos, mesmo que tenha recheado suas declarações com ameaças indiretas aos adversários de sempre (a oposição política e, ao que tudo indica, a imprensa). Algumas preciosidades no nosso Armand-Jean du Plessis (o conde e cardeal Richelieu), entre outras, merecem menção: ‘Estão namorando com o perigo’ e ‘querem desestabilizar nosso governo’.

Farpas e ameaças não são novidade na história do PT. No Rio Grande do Sul, à época do governador Olívio Dutra (1999-2002), a retórica diversionista ameaçadora, além da perseguição a jornalistas, era usual. O governo Dutra mereceu dois registros internacionais por adotar tais expedientes: no Informe 2002/Reporteros sin Fronteras, p. 25, e no Informe 2002/Ataques a La Prensa, de Periodistas – Associación para la defensa del periodismo independente (Buenos Aires), nas páginas 164-5, que relatam dois fatos destacados: os jornalistas Nilson Mariano e Altair Nobre, de Zero Hora, foram pressionados a revelar suas fontes por delegados do gabinete do chefe de polícia, depois de publicarem matéria, em 10 de fevereiro de 2001, sobre denúncia de corrupção envolvendo o então corregedor da Polícia Civil. Na época, o chefe de gabinete da chefia de polícia, delegado Carlos Santana, afirmou, referindo-se aos jornalistas: ‘Ao ocultarem uma informação que é juridicamente importante para nós pode ser que tenham cometido falso testemunho. Nesse caso, calar a verdade, pois sabem quem entregou o documento’.

Nas páginas 185-6, o Informe 2002/Ataques a la Prensa trata de matéria sobre as relações do governo Dutra com operadores da jogatina, caso semelhante ao que waldomirizou a política brasileira. Publicada na revista IstoÉ, em 17 de maio de 2001, a matéria ‘Aposta dobrada’ foi alvo de tentativa de censura do governo Dutra, por meio da assessora de imprensa do governador, Denise Mantovani. A tentativa fracassou e a reportagem foi publicada quando a CPI da Assembléia Legislativa revelou as hoje famosas conversas de Diógenes de Oliveira – um dos homens-chave da arrecadação de recursos para a campanha de Olívio – com o chefe de polícia, Luiz Fernando Tubino. Depois de sua publicação, a reportagem deu origem a uma sucessão de versões governistas aparvalhadas, pseudodesmentidos e bravatas, comandados pelo chefe da assessoria de imprensa do governo, Guaracy Cunha. Pelas violências que cometeu, foi, assim como Denise Mantovani, condenado pela Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas do RS. A jornalista, hoje, trabalha com Luiz Gushiken, na Secretaria de Comunicação do Planalto.

Reação ao estilo ‘contra tudo e todos’ (imprensa, Congresso e Ministério Público) também ocorreu quando os quadros hoje no poder em Brasília saíram em defesa da intangibilidade do partido depois do assassinato do prefeito Celso Daniel, de Santo André, em 2002. O assassinato foi encomendado pelo principal assessor do prefeito e a ele se seguiram mais sete mortes ainda não esclarecidas, de envolvidos com o assessor. Lembro-me até de marcha petista organizada em Santo André para fazer frente à sanha difamatória que se lançava contra a incólume legenda. José Dirceu participou. Pensou-se em marcha semelhante, no Waldomirogate, de desagravo a José Dirceu, mas o PT recuou. Sinal dos tempos.

Tais reações ocorrem quando se denuncia a ligação do PT com atividades clandestinas. Nos casos do governo Dutra no RS e do super-ministro Dirceu – e de seu ex-assessor de ex-extrema confiança –, elas têm origem nas relações entre a jogatina e o financiamento de campanhas petistas. Dirceu permanece no Ministério Lula, agora sem os poderes dos quais dispunha antes do escândalo. Foi abafado. Segundo as reiteradas declarações do economista César Benjamin, seu ex-correligionário, Dirceu introduziu o pragmatismo de resultados eleitorais no PT pelos idos de 1995. Já o estilo de contra-atacar segue o manual do abafa, da bravata e da demagogia improvisada. Corruptos, mal-intencionados, conspiradores. São estes que denunciam, mesmo quando apresentam as vozes gravadas de um Diógenes ou de um Waldomiro como prova.

No dia 30 de março passado, a base governista revelou que a conspiração, que sempre ronda a catedral petista, tinha um comandante: José Roberto Santoro, subprocurador geral da República, que tentou obter as fitas originais das conversas de Carlos Cachoeira com o corruptólogo Waldomiro. Santoro estava convencendo Cachoeira, que domina a Loteria do RS desde a época do governo Dutra, a entregar as fitas originais; em troca, oferecia a ‘Waterfall’ a condição de réu-colaborador no processo, coisa que, aliás, promotores fazem de hábito em suas investigações.

Isto não é crime. Pelo menos não era. No Rio Grande, até 2002, era constante entre representantes do Ministério Público Estadual, que formavam na Força-Tarefa contra o Crime Organizado, criada por Olívio Dutra. Mas a ação de Santoro tem fumaça de conspiração, sob a ótica da catedral. O subprocurador está sob suspeita. E o escândalo Waldomiro? Vai se abafando, colocado no rol das manobras que visam desestabilizar o governo Lula.

A luz se esvai

No Rio Grande, denúncias contra o governo eram ligadas mecanicamente a uma aliança da ‘mídia brittista com a banda podre da polícia’. Os sebastianistas instalados no Piratini a faziam reverberar pelas ruas, e a força-tarefa investigava as forças do mal, sem dar bola a horários de expediente. A força-tarefa de Olívio parecia mais a turma do filme Caça- fantasmas, e o resultado de seus apurados métodos de investigação ninguém conhece até agora.

Dutra, apesar da pose de maragato inconformado, quis mesmo legalizar a jogatina proibida na base do decreto, esquecendo-se de que seu governo deveria cumprir as leis da República. Tudo sob o manto protetor da unidimensional ética petista. O tempo passou, Dutra foi indiciado por prevaricação pelo MP Federal e terminou ministro das Cidades. Lá, a pedido do então engavetador-geral da República, Geraldo Brindeiro, seu processo foi arquivado no STF. Depois Waldomiro apareceu, para não falar do filho do governador Brizola, e alguns esqueletos mal-acomodados saltaram de certos armários.

Fatos podem ser abafados, mas não podem ser desfeitos. E são fatos que a Casa Civil tinha Waldomiro Diniz como assessor no Congresso; que a especialidade de Waldomiro era conectar a administração com a clandestinidade e que José Dirceu fora alertado de suas transações no Rio de Janeiro, onde Waldomiro presidira a Loterj. Como o Planalto atropelou, sob a batuta do presidente do Senado, a CPI que poderia investigar os fatos, as relações de Diniz com Dirceu e o nível de compromisso do próprio Planalto com a antes prevista e anunciada legalização da jogatina, o Compresso está impedido de agir. E, sem CPI, o bravatismo e o conspiracionismo produzem suspeitos de sombrias maquinações contra o governo Lula.

Maquinações que já justificaram, inclusive, agendas positivas embaladas por propaganda orçada em R$ 8 milhões. A primeira peça de embalo produzida pela agência de Duda Mendonça (o marqueteiro de Lula) foi paga à Resolution, uma empresa subcontratada pelo mago do transformismo político. Exibida no dia 29 de março, foi retirada do ar por problemas de veracidade, depois de matéria elucidativa publicada na Folha de S.Paulo no dia seguinte.

A imprensa é importante, não há dúvida. Mas é o Supremo que vai esclarecer se a Constituição prevê CPI só de brincadeirinha, como o ilustre e imortal Sarney pensa. Se decidir que o instituto da CPI existe para ser instalado, atendidas as exigências de lei, há uma luz democrática no fim do túnel das agendas positivas encomendadas ao mago Duda. Entretanto, se o STF extinguir, como quer o PT, o instrumento de investigação parlamentar criado pela primeira vez na República de Weimar e consagrado, entre outras, na nossa Constituição, a luz se esvai e a democracia brasileira, que já não é lá essa transparência, vira, no máximo, enredo para comercial de cerveja. Um caso para o Zeca Pagodinho.

Mais dúvidas

Sem CPI, lemos os jornais e esperamos. Os eleitores de Lula, em especial, querem saber detalhes de algumas coisas que a imprensa noticiou e que, até agora, só quem sabe são alguns seletos freqüentadores da catedral, ou melhor, do Palácio do Planalto. Algumas delas:

1) Como e por que, depois de trabalhar como alto executivo da Gtech (entre 2000 e novembro de 2002), o senhor Graciano dos Santos Neto terminou nomeado presidente da Cobra Tecnologia (controlada pelo Banco do Brasil;

2) Qual a razão para o senhor Antônio Carlos Lino Rocha, outro ex-alto executivo da Gtech, que negociou com Waldomiro Diniz em 2003, ter sido demitido pela mesma Gtech e nomeado representante de uma tal Polcard no Brasil, uma operadora de cartões de crédito sediada na Polônia, que pertence (surpresa) à Gtech;

3) A Caixa Econômica Federal sabia, desde setembro de 2002 que, ao fim do contrato da Gtech, outra gigante do mercado de jogos, a Lotex, com sede na Espanha e nos EUA, associada da Motorolla (EUA) e da Lotomatica (Itália), entraria na licitação para operar, gerenciar e explorar os jogos da CEF? A propósito: a Lotex e sua proposta, apresentada à CEF, em setembro de 2002, nada têm a ver com a BET Company, associada de ‘Charles Waterfall’.

Como não houve licitação, a Lotex está esperando, como se diz, a banda do Waldomiro passar. Motivos técnicos fizeram com que o contrato com a Gtech fosse prorrogado no governo Lula por 25 meses. Motivos nada convincentes para o Ministério Público Federal, que denunciou a cúpula da CEF por gestão fraudulenta e temerária, concussão, corrupção ativa e passiva.

Os executivos denunciados não gostaram. Terão oportunidade de se defender no processo, mas não perderam o hábito da catedral. Em nota oficial, espernearam e lançaram suspeitas sobre a ação do MP Federal. Dizem os executivos da CEF que, de lá, ninguém os tira. Leitura complementar: de lá não serão tirados. Afinal, o que representa uma estranha (segundo a nota) denúncia do MP Federal sobre corrupção e outros crimezinhos? Da mesma forma, o que representa a ação de um mero corruptólogo que trabalhava no Planalto, para a imagem da catedral? Waldomiro nem filiado ao partido era.

Mais dúvidas: o ministro da Fazenda, Palocci Filho, sustentáculo do gradualismo monetarista, teve lá seu assessor incapaz de distinguir entre coisas públicas e privadas. Era o ex-seminarista Rogério Tadeu Buratti, que reapareceu agora, denunciado pelo ‘suspeito’ MP Federal, juntamente com a cúpula da CEF. O ex-executivo da Gtech Antônio Lino Rocha disse que Buratti tentou propino-intermediar a renovação do contrato da multinacional com a CEF, por indicação de Waldomiro. Ele deixou a função de secretário de Governo do então prefeito de Ribeirão Preto devido a denúncias de favorecimento de empreiteiras. Grave? Nem tanto. Depois de afastado de Ribeirão, fez carreira e muito dinheiro, como sócio de empreiteiras e consultorias, contratadas por outras prefeituras petistas. E reaparece nessa confusão da jogatina com a CEF.

É preciso orar

Buratti tem relações com Ralf Barquete Santos, assessor especial da CEF (de novo!) para recursos humanos desde fevereiro de 2003 (início do governo Lula). Ambos, segundo a Folha de S.Paulo (21/3/2004), trabalharam juntos na Prefeitura de Matão, entre 1996 e 2000; ambos foram secretários de Palocci na prefeitura de Ribeirão. Barquete, entre 2001 e 2002, foi secretário da Fazenda de Palocci; e ambos são ligados ao grupo Leão Leão, maior doador de dinheiro para a reeleição de Palocci, em 2002.

Seria suficiente parar por aqui, mas não dá. O governo Lula está precisado com urgência de um descarrego. Seus descuidos são muitos. A imprensa ainda não se deu conta de que o atual ministro da Educação, Tarso Genro, por exemplo, não fez sua brilhante carreira apenas na política. Tarso é um excelente advogado e era sócio de um grande escritório de advocacia no RS, especializado em direito trabalhista e administrativo. O escritório patrocina dezenas de causas contra universidades federais, inclusive para associações de docentes. É claro que o ministro está licenciado da OAB e certamente desligou-se da sociedade no escritório. Mas o escritório do qual se afastou continua atuando fortemente e há muitos precatórios de ações de docentes já transitadas em julgado, favoráveis aos seus ex-clientes, atendidos atualmente pelos seus ex-sócios, a serem pagos pelo governo do qual Tarso Genro é ministro da Educação.

Circunstância política imprevista e o destino, talvez, fizeram com que Lula nomeasse o competente e habilidoso cardeal do PT gaúcho para o MEC, em substituição ao dispensado by celular Cristovam Buarque, de quem, aliás, Waldomiro também foi assessor. Mas o ministro Tarso poderia relatar ao presidente sobre o seu ex-escritório, os ex-sócios e as ações contra as instituições que ainda apresentam seu nome como patrocinador. Para conferir basta entrar no site do TRF da 4ª Região e, no espaço de busca, digitar o número da inscrição da OAB do ministro: RS005627. Talvez o ministro o tenha feito e o presidente, por sua vez, tenha entendido o relato sobre os ex-negócios de seu auxiliar sob uma perspectiva natural.

Problemas não faltam e nem sempre dá para colocar a culpa na mídia. Nós, jornalistas, sabemos que fato não se inventa. Com CPI, haveria condições para conhecermos as razões de o presidente, antes do escândalo Waldomiro, querer incluir no Orçamento da República receita advinda da ‘regulamentação’ dos mesmos bingos que, depois do terremoto Waterfall, ele não só proibiu por medida provisória, como chegou a comparar à exploração da prostituição infantil. Descontado o exagero, é certo que Lula mudou de opinião em prazo recorde, pois fez constar suas intenções de legalizar bingos na mensagem que enviou ao Congresso, no início deste ano legislativo.

Que o PT nunca foi mesmo aquele que dizia ser não é difícil concluir. Simples exercício de raciocínio político escancara seu defeito ideológico principal: o moralismo retórico, que é sempre autofágico. A prova está aí, agora grudada na imperspicuidade ideológica e administrativa. Sabemos hoje, mais do que em qualquer outro tempo, que o PT não era bem o PT. Mas era de se esperar que fosse menos descuidado no item ‘princípios’, porque assumiu o comando do país com uma grande esperança. Como só se preocupou com o superávit primário, relaxou de coisas importantes a um governo. Agora, não basta mais só torcer para que Lula dê certo. Nem fazer passeata de desagravo ou culpar a mídia. Como dizia Roberto Jeferson, ex-líder da tropa de choque de Collor no Congresso e hoje companheiro na catedral petista, é preciso orar.

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Jornalista e professor da UFRGS