Dizem que a comédia sempre consegue dizer o que é necessário disfarçando temas espinhosos em meio ao riso. Uma das cenas mais interessantes do filme Date Night (traduzido no Brasil como Uma Noite Fora de Série), estrelado por Tina Fey e Steven Carell, acontece durante a reunião de um clube do livro, formado por donas-de-casa típicas da classe média alta americana num subúrbio de Nova Jérsei.
A obra em discussão nada mais é do que uma paródia do best-seller A Cidade do Sol, de Khaled Hosseini, também autor de O Caçador de Pipas. Hosseini vendeu milhões de livros no mundo todo ao colocar o Afeganistão e o regime talibã como cenário para narrativas familiares dramáticas, aproveitando a curiosidade que se seguiu sobre o novo inimigo após 11 de setembro. Na cena em questão, Carell é o único homem presente e lê em voz alta o trecho em que a personagem principal, uma menina afegã, caminha pelo deserto e percebe que menstrua pela primeira vez. Uma das integrantes do clube, totalmente desconcertada pela passagem do livro, chora copiosamente dizendo ao membro masculino da reunião, em tom de crítica: “Você não tem a menor ideia do que é ser uma adolescente tendo a sua primeira menstruação acossada pelo regime talibã.” Ao que o personagem de Carell retruca imediatamente: “E nem você.”
Essa cena do filme resume perfeitamente como nós, ocidentais, nos posicionamos em meio ao choque entre o nosso modo de vida e o que foi descortinado ao mundo depois que os EUA e as forças da Otan entraram em guerra contra os talibãs. O que sabemos realmente sobre o cotidiano vivido pelos cidadãos afegãos, homens, mulheres e crianças, sob tamanha repressão religiosa e política? Fora algumas pinceladas na literatura, no cinema e em reportagens especiais de grandes redes de televisão internacionais, como a CNN e a BBC – na maioria filtradas pelas lentes do sensacionalismo ou pelo jogo de esconde-esconde das autoridades – pouco sabemos realmente sobre o que acontece lá com as pessoas comuns.
A violência contra as mulheres
Um dos princípios da notícia é a proximidade: é inerente ao ser humano interessar-se pelos acontecimentos marcantes em sua comunidade, estado ou país. Por isso, a crueldade e o desrespeito aos direitos humanos de um regime tão distante de nós quanto o talibã, numa guerra em que o Brasil não está envolvido diretamente, pouco desperta o interesse da maioria dos que vivem aqui atualmente. Contudo, o jornal Zero Hora, na edição de 31 de julho de 2011, utilizou uma espécie de subterfúgio da lei da proximidade para tornar a realidade afegã notícia novamente e o resultado merece todos os elogios possíveis. O repórter Luiz Antônio Araújo localizou um catarinense, com familiares gaúchos, entre os marines norte-americanos que permaneceram setes meses em missão de paz no sul do Afeganistão. A estratégia de ter o relato de “um de nós” sobre uma cultura tão distante funciona como abrir a janela de nossas casas e ver o que acontece lá longe com nossos próprios olhos. Falta, geralmente, um “ver com os próprios olhos” para entender a dimensão deste choque cultural entre um povo estagnado em práticas medievais e o que temos feitos nos últimos séculos na Europa, na América e aqui no Brasil, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade.
O olhar do marine Alexandre Danielli, 29 anos, que hoje vive na Califórnia, é o mesmo que muitos leitores de Zero Hora – em sua imensa maioria gaúchos e catarinenses, como Danielli – teriam ao deparar com uma realidade completamente estranha ao nosso dia-a-dia. Em seu depoimento, percebe-se que o terror naquela região não é uma exceção, é a regra. Danielli mostra-se absolutamente chocado, por exemplo, com a violência contra as mulheres, contando como uma delas teve as duas mãos cortadas por apenas ter acenado aos soldados e como outra teve o nariz decepado pelo marido porque estava espiando a movimentação das tropas na janela.
O islamismo e a cultura patriarcal
O marine de Santa Catarina observa que, mesmo diante de horrores como este, são instruídos a “não interferir na cultura ou na religião deles”. Entra-se aqui num dos grandes dilemas de nosso tempo: é admissível que, por respeito à identidade cultural de um povo, se permitam atrocidades como esta contra as mulheres? Se uma violência gratuita como essa acontecesse em nosso bairro, como reagiríamos? As mulheres afegãs são mães e são filhas. Portanto, como se sentem esses soldados naquela terra assistindo a tudo isso, sabendo que se suas próprias mães e filhas lá vivessem sofreriam mutilações por motivos banais?
A reportagem especial de Luiz Antônio Araújo é pertinente, mesmo passados dez anos do 11 de setembro, porque nos leva a refletir sobre o que pode ser aceito ou não como mera diferença cultural. Estando a salvo da intolerância religiosa completamente cega, nos permitimos apenas lamentar o destino das mulheres afegãs, mas seu sofrimento não chega a ocupar as manchetes. Aqui, no ocidente, fanáticos extremistas e frios, como o norueguês Anders Behring Breivik – que assassinou dezenas de pessoas ironicamente para “protestar”, entre outras coisas, contra a presença de islamistas na Europa – e o atirador do Realengo – por sua vez, um fanático pró-Islã – são tão raros que se tornam notícia imediatamente em todo o mundo. Na verdade, o islamismo e a cultura patriarcal afegã em si não são o problema. O problema é usar a desculpa de que as diferenças devem ser respeitadas para virar as costas às monstruosidades que lá ocorrem diariamente.
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[Candice Soldatelli é bacharel em Comunicação e tradutora, São Marcos, RS]