Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O resgate da
Revolta da Chibata

Quase um século após a Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, a Marinha liberou os arquivos do principal articulador do movimento, o ‘Almirante Negro’ João Cândido. A luta pelo fim dos castigos físicos e pela melhoria das condições de trabalho dos marujos teve como palco o encouraçado Minas Gerais, entre outros navios de guerra, ancorados na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, para os festejos da posse de Marechal Hermes na presidência da República. O Observatório da Imprensa na TV de terça-feira (18/03) discutiu a importância do resgate de fatos importantes da história do Brasil.


O historiador e jornalista Marco Morel, neto do repórter Edmar Morel, autor do livro A Revolta da Chibata, a primeira obra publicada sobre o tema, em 1963, participou do programa pelo estúdio do Rio de Janeiro. Morel foi contratado pelo Projeto Memória, da Fundação Banco do Brasil, para pesquisar sobre o movimento e publicará um livro de fotografias sobre a revolta. Também no estúdio do Rio de Janeiro, participou a coordenadora de Pesquisa e Difusão de Acervo do Arquivo Nacional, Maria Elizabeth Brêa. No estúdio de Brasília, esteve o presidente da Fundação Banco do Brasil, Jacques de Oliveira Pena. Fernando Granato, jornalista e escritor, autor de O Negro da Chibata, foi o convidado do estúdio da TV Cultura.


A mídia em três tempos


Antes de entrar no tema do programa, Alberto Dines comentou três fatos relacionados com a mídia desta semana. O primeiro foi a contradição dos jornais de grande circulação de hoje terem sugerido uma grande crise financeira internacional e as bolsas de valores terem fechado o dia com saldos positivos. Para Dines, o fato revela que os especuladores não lêem jornal, preocupam-se com ‘o aqui e o agora’, e que a mídia está exagerando na cobertura da crise.


O lançamento da nova página fixa, a ‘Folha Corrida’, na Folha de S.Paulo foi outro ponto levantado por Dines. A página, elaborada para ser lida em cinco minutos, seria uma estratégia para conter a queda de circulação. A imprensa estaria investindo no modelo da internet, mas ainda não teria encontrado o caminho entre a fragmentação da rede a densidade dos jornais impressos: ‘corrida, ela é descartável também’, disse.


O jornalista também comentou o requerimento apresentado pela deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP) que pedia explicações sobre o motivo do Conselho de Comunicação Social do Senado – órgão criado em 2002 para estudar solicitações encaminhadas pelo Congresso Nacional sobre os meios de comunicação – ainda não ter os integrantes deste ano escolhidos e não ter realizado nenhuma reunião em 2007.


A revolta dos marinheiros


‘Nesta edição, o Observatório vai retomar o assunto que já mereceu diversos livros, filmes e até canções, mas continua praticamente desconhecido do grande público. Não pretendemos reabrir feridas ou reacender ressentimentos quase um século depois. A função da imprensa é relatar fatos e a função do Observatório da Imprensa é provocar reflexões sobre estes fatos’, analisou o jornalista.


Na reportagem que precede o debate, o almirante Leôncio Martins, que é historiador e escreveu o livro A Revolta dos Marinheiros de 1910, avaliou que depois que o Congresso concedeu a anistia aos revoltosos, a imprensa teve um comportamento ‘quase ridículo’, enaltecendo a revolta de João Cândido. O diretor do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, almirante Amando de Senna Bittencourt, acredita que tanto a marinha quanto os revoltosos cometeram erros: ‘Há erros de parte a parte. Sem dúvida é um episódio lamentável. Absolutamente não se pode exaltar alguém que pretendeu fazer justiça com as próprias mãos havendo um país com as instituições constituídas’. O cineasta Marcos Marins, que dirigiu o curta A Revolta da Chibata acredita que o resgate do levante ajudará a promover o orgulho da raça negra através da figura de João Cândido como líder.


As polêmicas memórias do Almirante Negro


Um episódio curioso sobre a imprensa na época da revolta foi a publicação das memórias do Almirante Negro na Gazeta de Notícias, em 1912, logo após o marinheiro ter sido libertado. O jornalista João do Rio, que trabalhava na Gazeta, assim que soube que o líder da revolta estava em liberdade foi procurá-lo e pouco tempo depois as memórias começaram a ser publicadas. Acusado de ter sido o primeiro ghost writer brasileiro (escritor fantasma, em português), ao supostamente formatar o conteúdo como se fosse o marinheiro, o jornalista recebeu fortes críticas de outros órgãos de imprensa do período. O pesquisador João Carlos Rodrigues, autor de uma biografia sobre João do Rio, acredita que João Cândido tenha sido remunerado para permitir a publicação do material.


No debate, Marco Morel comentou que o avô era uma figura muito marcante e carismática, parte de uma geração de grandes jornalistas, a exemplo de Joel Silveira. Um traço de Edmar Morel destacado por ele foi produção de reportagens baseadas em pesquisas históricas, como a do livro Revolta da Chibata. Apaixonado pela profissão, Edmar teria pago um alto preço pela publicação do livro, que teria contribuído para a cassação dos seus direitos políticos durante a ditadura militar. Além da formação afetiva, o avô contribuiu para a formação intelectual do historiador. Sobre a polêmica em torno da memórias publicadas na Gazeta de Notícias, o historiador acredita que foram escritas pelo próprio João Cândido, mas que João do Rio colocou o ‘molho’.


Fernando Granato contou que o levante dos marinheiros sempre o intrigou e que escreveu O Negro da Chibata para despertar o interesse das novas gerações. Granato classificou a obra de Edmar Morel como ‘definitiva’ e disse que usou uma linguagem mais simples e acessível para os dias de hoje. A obra está disponível em cerca de 40 mil bibliotecas de escolas públicas no Brasil, o que para o jornalista é uma honra e representa o ápice da sua carreira. A pesquisa teve como ponto de partida o livro de Edmar Morel, mas Granato entrevistou familiares, consultou diversos documentos, fichas médicas. ‘Senti a poeira dos arquivos’, disse.


Problemas de ontem e hoje


O presidente da Fundação Banco do Brasil explicou que o Projeto Memória, que é editado anualmente há cerca de uma década, escolhe uma personalidade para homenagear e, além do estudo da biografia, analisa a obra e o contexto histórico no qual esteve inserido. Um livro, um almanaque e exposições itinerantes estão planejados, entre outros produtos, para relembrar a Revolta da Chibata. Jacques Pena acredita que a escolha de João Cândido como homenageado é um marco no projeto, porque será a primeira vez que um negro ocupará a posição. Temas como escravidão, monocultura e latifúndio, ligados à sociedade da época e com profundos reflexos no Brasil de hoje, voltariam a ser discutidos por intermédio deste personagem.


Para Maria Elizabeth Brêa, o movimento, embora pertença ao início do século XX, é fruto de um processo anterior de insatisfação e que reflete racismo, falta de participação social das camadas inferiores e passividade. Com a República ainda recente e o processo de consolidação das instituições em curso, valores período imperial como desigualdade social estavam presentes na sociedade. A Revolta da Chibata teria sido uma oportunidade de atores que não tinham espaço na história serem discutidos.


Marco Morel acredita que a posição da Marinha em relação à revolta é retrógrada e precisa ser superada. A instituição deveria pedir perdão para se reconciliar com o passado e ‘virar a pagina’. Morel contou que têm sido tomadas algumas iniciativas para reparar a família de João Cândido, como projetos de anistia póstuma. O historiador afirmou que em outros momentos a Marinha enfrentou movimentos de quebra de disciplina e hierarquia – como a Proclamação da República e o Tenentismo – e que a postura da instituição foi diferente, talvez pelo movimento dos marujos ser uma revolta da plebe.


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Um movimento desconhecido


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 453, no ar em 18/03/2008


‘Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


O Brasil inteiro está mergulhado em 1808. E isto é muito bom. Este reencontro com o passado é extremamente salutar porque uma sociedade que descuida da sua história não sabe corrigi-la nem continuá-la.


Na semana passada, a Folha de S. Paulo recuperou um episódio dramático, mais recente, ocorrido em 1910 e que ficou conhecido como a Revolta da Chibata, uma rebelião – ou motim – de marujos contra os atrozes castigos físicos então em vigor em nossa armada.


Nesta edição, o Observatório vai retomar o assunto que já mereceu diversos livros, filmes e até canções, mas continua praticamente desconhecido do grande público. Não pretendemos reabrir feridas ou reacender ressentimentos quase um século depois.


A função da imprensa é relatar fatos e a função do Observatório da Imprensa é provocar reflexões sobre estes fatos.