20 de outubro de 2004. Veja estampava na capa a foto de cinco agentes federais e o título ‘Os intocáveis’. Era uma exaltação ao trabalho conduzido pelo delegado Paulo Lacerda, diretor-geral da Polícia Federal, com direito à ‘Carta ao leitor’, escrita pelo diretor de redação, Eurípedes Alcântara. No pé, o jornalista definia a reportagem como ‘a história de um grupo de indivíduos que tenta mudar para melhor as feições de uma instituição’. E, internamente, o texto dos repórteres terminava apontando que o Brasil tem na Polícia Federal ‘um exemplo a ser seguido’. Era quase um cheque em branco, passado pela revista brasileira de maior circulação, à organização encarregada de combater o crime no país.
Passaram-se só dois anos e a relação entre esses dois importantes pólos de poder – Veja e Polícia Federal – mudou radicalmente. O que antes era amor virou ódio. E, dos beijos, chegamos aos tapas. Hoje mesmo [1/11], os jornais trazem o relato da suposta intimidação sofrida por três profissionais da revista – Júlia Dualibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro – que foram chamados a depor na PF. É possível que Veja, em sua próxima edição, dedique várias páginas a uma eventual escalada autoritária em marcha no país. E é também provável que a revista se coloque como vítima do arbítrio e de um ataque à liberdade de imprensa.
No entanto, é também lamentável perceber que a defesa de princípios nobres pode variar ao sabor das circunstâncias. Em setembro de 2004, quando Veja caminhava de mãos dadas com a PF, a revista tentou incitar a ação dos policiais contra um jornalista de uma editora concorrente. Era como se dissessem ‘vai lá, prende, mata e arrebenta’.
Valores e princípios
Isso ocorreu quando Lauro Jardim, titular da seção ‘Radar’, anunciou a ‘Operação Gutenberg’ da PF – aquela que pegaria ‘bagrinhos e peixes graúdos da imprensa envolvidos em venda de reportagens’. Depois, diante dos rumores sobre os alvos da operação, Jardim informou, em nova nota, que seriam os jornalistas envolvidos na cobertura do ‘caso Kroll’. Para quem não se lembra, também no fim de 2004, a PF deflagrou uma ação contra Kroll e Opportunity, na chamada ‘Operação Chacal’. E como eu fui o único profissional da mídia a contestar os métodos utilizados pela PF naquela ocasião, estava claro que o recado era para mim. Por sorte, no meio do meu caminho, havia um juiz de bom senso, que barrou as ações intentadas pela PF.
O curioso é que, dois anos depois, todos os pólos se inverteram. No início de outubro deste ano, o colunista Diogo Mainardi publicou na Veja o artigo ‘Notícias da Itália’, em que revela as investigações em curso na Procuradoria de Milão. Diz Mainardi que a Telecom Itália tinha um ‘esquema de pagamentos ilegais a autoridades brasileiras’. Ele afirma ainda que alguns pagamentos eram direcionados ‘à cúpula da Polícia Federal’. E aponta que isso teria ocorrido no contexto da disputa empresarial entre Telecom Italia e o grupo Opportunity. Será que isso teria alguma relação com a ‘Operação Gutenberg?’ Veja, naturalmente, não coloca essa questão. Até porque, para eles, Polícia Federal no olho dos outros é refresco.
Dois anos atrás, quando fui alvo de uma descabida investigação da PF, incentivada abertamente pela revista Veja, cheguei a publicar alguns artigos no Observatório da Imprensa e no Comunique-se, onde sustentei os mesmos valores e princípios que a Editora Abril hoje defende, ou seja, a liberdade de imprensa e de expressão. E disse que, ‘se hoje sou eu, amanhã serão eles’. Para o meu desgosto, a profecia se cumpriu.
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Editor das revistas IstoÉ Dinheiro e Dinheiro Rural